Era prática corrente da propaganda do antigo regime a exibição contínua e manifestamente exagerada das pequenas vitórias caseiras. Estas deveriam provar, dentro e para fora das fronteiras, que se éramos pobres e «felizmente atrasados», como Salazar chegou certa vez a descrever-nos, expondo sem artifícios a sua conceção rural e imóvel do mundo, tal não nos impediria de ser melhores que os outros em modestas mas honradas áreas de atividade. Mas por aí deveria ficar o limite da nossa ambição. (mais…)
O pior dos tempos terríveis que estamos a atravessar é a ausência de esperança. Seria bem menos doloroso passar por tudo isto se pudéssemos pensar que se tratava somente de uma circunstância infeliz, de um transe, de uma passagem necessária, ainda que demorada, para uma situação melhor ou menos incerta. E ainda pesaria menos se pudéssemos vislumbrar uma alternativa política, uma viragem, em condições de devolver, se não todos os direitos perdidos e o quinhão de futuro que conquistámos e nos foi roubado, pelo menos uma gestão profundamente diferente e menos dolosa da coisa pública. Associada a uma política mais solidária e mais justa, menos cínica e insensível, que restituísse a tranquilidade e a segurança que nos fogem a cada manhã que passa. O drama, grande drama, é pois a ausência de uma possibilidade real de pôr termo ao estado comatoso em que a direita neoliberal pôs o país, as nossas vidas e o futuro coletivo. É ela que afasta a esperança e alimenta o desespero. E é ela também que propaga uma perigosa indiferença. (mais…)
Até ao início dos anos oitenta, principalmente na Europa e nas Américas, dois setores sociais mostravam-se particularmente sensíveis aos processos de crítica e de reforma da ordem do mundo, neles jogando um papel muitas vezes decisivo enquanto forças dinâmicas dos tempos de mudança. Pela natureza da sua formação e da sua associação ao mundo do conhecimento, da dimensão essencialmente reflexiva da sua atividade, da sua natural abertura ao mundo e das suas expectativas históricas, os intelectuais – pensadores, artistas, escritores, jornalistas – e os estudantes mostravam-se mais naturalmente dispostos a intervir como fator nuclear, estímulo ou apoio no domínio da reflexão crítica, do conhecimento e da atividade cívica. (mais…)
«Não sou filósofo, e por isso não posso falar senão daquilo que vivi. Vivi o niilismo, a resistência, a violência e a vertigem da destruição. Ao mesmo tempo, festejei o poder de criar e o esplendor da vida. Nada me autoriza, por isso, a julgar de uma forma sobranceira a época com a qual sou inteiramente solidário. Julgo-a a partir do seu interior, confundindo-me todos os dias com ela. Mantenho, no entanto, o direito de dizer sempre aquilo que sei sobre mim e sobre os outros, na condição única de que tal não sirva para aumentar a insuportável infelicidade do mundo, mas sim para designar, nos muros obscuros que vamos tacteando, os lugares ainda invisíveis ou as portas que podem ser abertas.» (Albert Camus, Actuelles II, 1953)
Nasci e vivi até aos dezasseis numa vila do interior beirão. Na época, não existiam por aqueles lados, como não existia em praticamente lado algum, estradas decentes e rápidas. Uma reta de cem metros era tão rara que parecia uma pista de ensaios para fanáticos da velocidade. Notavam-se mais ainda esses limites quando se vivia numa região de montanha que transformava qualquer jornada numa pequena aventura. O trajeto que leva hoje 45 minutos a fazer durava então o dobro, por vezes mais. Além disso, poucos possuíam automóvel e ninguém sem profissão estável e razoavelmente remunerada tinha sequer carta de condução. O isolamento era aí, sobretudo aí, a condição natural da existência, agravado pelo facto da informação que chegava ser parca, lenta e filtrada pela censura. Era o país possível, no qual tudo decorria modelado por aquele «viver habitualmente», sem o calor da novidade ou do desassossego, que à imagem do rústico temeroso das cidades Salazar quisera para todos. (mais…)
Não se percebe qual o espanto por os serviços secretos americanos terem escutado conversas telefónicas mantidas por diversos líderes europeus. Como o terão feito com dignitários asiáticos, dirigentes africanos ou governantes sul-americanos. Pelo menos. Tal como as autoridades inglesas, francesas, alemãs, israelitas, iranianas, russas ou chinesas espiam e escutam toda a gente que conta para as suas contas. E mais alguma por atacado, para o que der e vier. Isto faz-se, com o devido distanciamento tecnológico, pelo menos desde o aparecimento dos Estados. Aliás, só mesmo se fossem completamente incompetentes é que o não fariam. Os trejeitos de contrariedade de Frau Merkl são mero teatro e a indignação hiperfocada em Obama não cola aqui.
Os meses que antecederam as eleições autárquicas decorreram como se de repente tivéssemos mudado de país. A intervenção errática e hostil do governo sobre a nossa vida e as nossas esperanças afrouxou significativamente, deixando que nos concentrássemos no território de proximidade administrado pelo poder local. Nem tudo, porém, correu pelo melhor. Apesar de existirem naturalmente diferenças, algumas significativas, entre as listas concorrentes, os seus programas, os processos de aliança que incorporaram ou a qualidade e o perfil dos candidatos, o seu padrão foi demasiadas vezes nivelado por baixo. No Facebook, uma página de «tesourinhos deprimentes das autárquicas», rapidamente popularizada, revelava em tom bastante jocoso um panorama tão extravagante quanto catastrófico. (mais…)
Numa entrevista assombrosa que concedeu ao diário i – assombrosa pelo vendaval de futilidade, desconhecimento e espírito mercantil que exibe, mas também pelo caráter desestruturado e algo rústico do próprio discurso – o jornalista, professor e so-called escritor José Rodrigues dos Santos saiu-se com esta: «Ah, uma pintura de Picasso é bonita? Não, não é bonita. Nem Picasso queria que fosse. Ele está a cultivar o feio. Stravinsky faz música que são guinchos. O truque está justamente aí. Isto contagia a literatura. Ler o Ulisses do Joyce é um exercício de masoquismo. Ele leva duas páginas a descrever um armário.» Não estão em causa os interesses de Santos ou os gostos das muitas pessoas que apreciam os seus romances, muitas vezes a única escrita que reconhecem como literatura. Mas já é inaceitável, para alguém que tem um perfil público e, além disso, é docente universitário, a apresentação de uma crítica da estética do modernismo tão primária e, ademais, superada há já perto de um século. Desvalorizando, como se nada se tivesse entretanto passado na história da cultura, a dimensão positiva da subjetividade nos processos de produção e de consumo da obra artística ou literária. Mostrando-se indiferente, com a ligeireza do ignaro, aos criadores e aos públicos que a recolheram, viveram ou vivem como uma dádiva. Uma observação projetada, afinal, na dimensão do que era ainda o senso comum e do que definia a estética dominante no tempo dos nossos bisavós. Já quanto à obra de Joyce que menciona, talvez pela complexidade monumental da teia de palavras, referências e jogos que ela oferece, por certo areia em demasia para a camioneta que conduz, mais valeria a Santos manter-se em silêncio.
Os resultados do Bloco de Esquerda nas eleições autárquicas têm suscitado algumas leituras críticas aceitáveis, mas também, e sobretudo, um vendaval de observações infundadas e de vaticínios de um desaparecimento à vista. A verdade é que a maioria dos analistas políticos mais lidos e comentados tem manifestado a propósito do tema uma inesperada cegueira, olhando aquilo que é certo e seguro – os números, quase todos eles realmente maus – mas não o que se coloca, como cenário, muito para além das circunstâncias imediatas. A morte anunciada do Bloco é pois, sob esta perspetiva, claramente exagerada. E se por hipótese ela pudesse vir a ocorrer, traria consigo, com toda a certeza, consequências muito negativas para a vida democrática, para o nosso futuro comum e até para as expetativas de muitos dos que vêm agora no BE um pássaro de asas cortadas. (mais…)
É sempre difícil fazer uma apreciação dos resultados das eleições autárquicas fundada apenas em operações simples feitas com a máquina de calcular. A dificuldade é imposta pela intervenção de fatores pessoais (como as capacidades ou o prestígio público de determinados candidatos), circunstâncias locais (entre eles as redes clientelares ou a existência de problemas regionais muito concretos) e particularidades orgânicas (sobretudo no que diz respeito à apresentação de coligações eleitorais e, agora, também ao crescente papel das listas de independentes). Por isso, nada como tentar transformar o complexo em simples e olhar as eleições não na mera perspetiva dos números, mas sob um ângulo mais amplo, capaz de permitir a observação de algumas das suas dinâmicas. (mais…)
1. Voltou a reacender-se o interminável debate público sobre as «praxes académicas». Trata-se de uma discussão quase sempre bastante crispada, opondo os que nelas vêm uma forma de viver a academia e, presumem, de salvaguardar as suas tradições, aos que as recusam liminarmente como inúteis, obtusas e detestáveis. Deste debate autoexcluem-se infelizmente os atuais estudantes «praxistas», que a põem em prática de forma automática, quase sem qualquer preocupação crítica com as suas origens, formas, significados e consequências. Deixo claro que não sou neutro neste debate, pois rejeitei-as há muito, antes até de ser estudante universitário, não tendo mudado de opinião. Não o faço, porém, a partir de uma atitude cega e intransigente. (mais…)
Viver numa cidade de tamanho médio como o é Coimbra, que possui além disso marcas históricas, sociológicas e culturais muito próprias, leva-nos ao confronto com uma gestão autárquica que tem, frequentes vezes, demasiadas vezes, caminhado a contracorrente daquilo que essas marcas reclamam. O que impõe o anseio e a necessidade de uma mudança rápida e substancial. (mais…)
Mais que qualquer outra cidade portuguesa, a meio de setembro Coimbra reanima-se com o regresso às aulas. É verdade que já não se nota tanto a diferença, ainda percetível há uma vintena de anos, entre o deserto que eram as férias do verão e o movimento que depois delas ia lentamente regressando. Muitas coisas mudaram entretanto: o número de residentes disparou mas o dos alunos universitários manteve-se idêntico, e o crescimento da classe média, dos serviços, do comércio e do turismo fez com que a urbe passasse a depender menos dos estudantes. A própria vida universitária sofreu uma mudança, ampliando-se a rede de vivências e de relações com outras regiões e tornando-se menos exclusiva a ligação dos universitários com a cidade. No entanto, quem nela mora ou frequenta as suas áreas mais ocupadas pela vida estudantil continua a dar conta de que, de repente, quando o verão se aproxima do fim, há um novo ruído no ar e ocorre uma metamorfose da paisagem humana. (mais…)
António Guerreiro escreveu há dias numa crónica para o Ípsilon, que «o analfabetismo funcional, próprio das classes baixas», é agora «parte da panóplia de atributos das chamadas elites». É verdade que Guerreiro se serviu da frase para tratar um tema muito objetivo – o significado simbólico do padrão de linguagem utilizado nas caixas de comentários das edições online dos jornais – tendo em conta a incorporação, por parte de certos responsáveis editoriais, de alguns dos valores, dos códigos e das palavras utilizados por pessoas maioritariamente semiletradas e sem grande capacidade analítica. Intervindo naqueles espaços, elas têm agora direito a uma palavra que ali lhes estava vedada, a um espaço que não fazia parte do seu universo de comunicação, rebaixando ou impedindo qualquer debate mais complexo e fundamentado. Vou servir-me da ideia ampliando o seu alcance como chave interpretativa de uma outra situação. (mais…)
À medida que nos aproximamos das eleições autárquicas, áreas nucleares da paisagem urbana de cidades e vilas – as suas praças e rotundas, as principais vias de acesso, os espaços de utilização comunitária – estão a ser ocupados por gigantescos cartazes de propaganda das candidaturas. Herdeiro do antigo design construtivista russo e da escola da Bauhaus, o cartaz sobreviveu à manipulação pelos regimes totalitários e ao surgimento das novas técnicas de comunicação oferecidas pela televisão e pela Internet, sendo profusamente utilizado pelas democracias. É fácil perceber porquê: sob a forma de outdoor é um instrumento de acesso fácil, impõe-se por si mesmo e não precisa ser descodificado, integrando slogans de captação rápida, otimizados para ficar na memória de quem os observa num piscar de olhos ou em movimento. (mais…)
Resulta sempre difícil defender a liberdade da crítica e lamentar ao mesmo tempo o uso que dela é feito em determinados espaços de comunicação. Mas existe uma diferença muito grande entre aceitar as opiniões dos outros, por mais avessas que elas possam ser às nossas próprias convicções, uma diferença entre defender o direito à expressão de quaisquer pontos de vista, e admitir que tal seja feito recorrendo a meios de comunicação que, pelo seu prestígio e alcance, legitimam a incoerência dos argumentos e mascaram a falsidade ou a desonestidade das afirmações. (mais…)
Nas últimas linhas de um dos derradeiros textos que ditou para a New York Review of Books, quando as palavras ainda lhe corriam fluídas pelo cérebro enquanto sentia já dificuldade em pronunciá-las com a clareza que sempre procurou, Tony Judt reflectia sobre os problemas da comunicação contemporânea: «Se as palavras se deterioram, o que poderá substituí-las? Elas são tudo aquilo que nos resta.» Não se referia, porém, ao seu problema pessoal, ao fim à vista da sua capacidade para comunicar, que sabia irrevogável: no artigo «Words» falava principalmente da preocupação com o recuo do antigo modelo de educação humanista, que tanto tem vindo a ser desacreditado pelos arrogantes campeões do «saber técnico». Falava da perda de voz dos que usam a língua, central nesse modelo que formou o seu e o nosso mundo, para conhecer sem coacções, para ocupar os espaços públicos do debate, para transformar a controvérsia num factor de dignidade e de liberdade. Falava da perda do lugar central da «fala pela fala», como processo de aproximação e de verdadeiro conhecimento. Dessa perda que, neste tempo que promove o triunfo do prático, do lógico, do eficaz, do «útil», muitos de nós sentimos, todos os dias, com dor e com preocupação. Dessa perda que Tony Judt observava mesmo em lugares, como as universidades, originalmente concebidas justamente para impedi-la de ocorrer: «A “profissionalização” do discurso académico – e a deliberada apreensão por parte dos humanistas da segurança da “teoria” e da “metodologia” – favorece o obscurantismo.» Judt via nas palavras, no uso e no abuso das palavras, na sua troca sem compromissos, o espaço ideal de resistência perante a incompreensão e o individualismo impostos pela falta de vozes críticas ou pelo ruído daquelas que tanto falam e nada dizem.
Republico este post no dia em que, se por cá estivesse a aturar a corja e a dar-nos força para a pôr a andar, José Afonso perfaria 84.
Não, não vou invocar uma relação de proximidade com José Afonso. Falei com ele uma única vez, por curtos instantes, e ouvi-o cantar uma dúzia, se tanto, sempre com a cábula por perto. Ouvi-o desafinar. Vi-o até tocar violão, coisa que, como lembra Rui Pato e posso confirmar, fazia pessimamente. Mas mais nada. Por isso não o chamo de Zeca, tratamento carinhoso e plebeu que sempre olhei como um exclusivo dos seus íntimos. Gostei medianamente de alguma da sua música (das primeiras baladas, de forte carga simbólica mas ainda demasiado próximas, para o meu esquisito gosto, do fado de Coimbra), muito de outra (com aquelas linhas poéticas inesquecíveis), muitíssimo de dois ou três discos, tão bons, tão bons, nos textos e nas composições. Vejo Cantigas do Maio, arranjado por José Mário Branco, como um dos três maiores álbuns de sempre da música popular portuguesa (a par do Com que Voz, da Amália, e do Mudam-se os Tempos…, do mesmo José Mário). Mas aquilo que sempre olhei como um seu lado singular, estimável e verdadeiramente exemplar foi o bravo quixotismo, a perene inquietude, o pendor para a anarquia, a atitude crítica, o modo poético de falar, de pensar, até de parecer, a capacidade para fazer amigos (lembram aqueles que o foram), a coragem que o fez circular pela vida sempre sobre parapeitos, o antidogmatismo pelo qual foi criticado por parte dos que agora, numa vaga de unanimismo acrítico, o incensam como um dos seus (nem sempre foi, sabiam?). Será esse lado independente e solidário, simples e desassossegado, convicto mas aberto à fantasia, que, tanto quanto a sua música, dele podemos recolher ainda como exemplo. Faz-nos falta. Faz, faz, porque isto agora, José…