Arquivo de Categorias: Atualidade

Um ano de sofrimento, hipocrisia e esperança

Completa-se hoje um ano sobre o início da guerra na Ucrânia, determinada pela súbita invasão russa imposta pela política imperial e belicista de Vladimir Putin. Um ano que, na altura, apressados analistas, alguns deles oficiais generais, anunciavam ir durar «no máximo, uma semana». Um tempo determinado em primeiro lugar pela sistemática e brutal destruição de boa parte do país invadido, pelo imenso sofrimento do seu povo, pela devastação de vidas e de esperanças, e por um número, ainda indeterminado, mas na escala dos largos milhares, de mortos, entre civis e militares. Contando-se também entre estes muitos cidadãos russos, alguns deles mercenários e ex-presos de delito comum incorporados com a promessa de um perdão, embora a maioria sejam recrutas e reservistas incorporados à força, às dezenas de milhar, pelo regime de Moscovo.

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    Atualidade, Democracia, História, Opinião

    Para além e para aquém de Kiev

    Ao longo de vários séculos a população da Europa viveu atormentada por uma sombra ameaçadora que os historiadores designaram «o medo do turco». Isto é, o constante receio subjetivo de uma conquista otomana que virasse o seu mundo ao contrário. Ao mesmo tempo, setores da elite cultural ocidental foram alimentando uma dimensão de fascínio por esse universo, instalado a oriente, que a maioria desconhecia tanto quanto temia. Num e noutro dos casos, o sentimento dominante era o de grande estranheza perante hábitos, crenças, valores e formas de organização política e social substancialmente diversos daqueles que, apesar da pluralidade de regimes e sociedades, eram basicamente compartilhados pela generalidade dos europeus.

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      Contextualizar contextualizar

      Uma das maiores dificuldades que ocorre de forma muito habitual nas abordagens da história e da memória – obrigando a uma permanente vigilância da parte de quem a escreve ou a transmite -, e que perpassa em todos os processos que envolvem a comunicação pública do passado, é a disseminação do anacronismo e, pior que este, da tendência para ignorar os contextos. Olhar escolhas e momentos do passado, seja o pessoal ou o coletivo, no lugar onde hoje vivemos ou a milhares de quilómetros dele, no território das ideias ou no dos costumes e decisões, pelos olhos e valores da cultura agora dominante e da diferente sensibilidade que hoje detemos.

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        As circunstâncias dos abusadores

        Dois apontamentos mais sobre a revelação, agora em Portugal, de um número bastante elevado – ainda assim, sem dúvida, muito inferior aos dos casos não testemunhados ou que foram e são recorrentemente silenciados, que jamais verão a luz do dia – de vítimas de abusos sexuais praticados nas últimas sete décadas com a completa impunidade da generalidade dos seus perpetradores e da instituição eclesiástica que os enquadrou e lhes conferiu o poder para poderem abusar. Uma instituição, forçada pelo ar do tempo e pelo próprio papa a enfrentar o tema, e que agora vem lamentar o ocorrido sem todavia abordar com clareza formas de punir os criminosos ainda vivos e de compensar minimamente as suas inúmeras vítimas. Não serão, por certo, apenas desculpas e piedosas orações a resolver o seu terrível lastro.

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          Promiscuidade entre política e negócios

          Apesar de determinada por episódios recentes envolvendo dois ou três membros de segunda linha do governo do Partido Socialista – de uma forma que, sendo inaceitável, foi artificialmente ampliada pelas oposições, em especial as de direita, empenhadas em generalizar as críticas a partir de casos singulares – existe nas democracias contemporâneas, e na nossa também, um problema sério que pode ser relacionado com esta situação. Diz respeito ao modo como certo número de pessoas, em lugares de responsabilidade pela coisa pública, e que deveriam colocar em primeiro lugar o espírito de serviço à comunidade que determinou a sua eleição ou escolha, se envolvem ao mesmo tempo em atividades que visam sobretudo o rápido enriquecimento pessoal, tornando-se esta uma das fontes da crescente opinião «antipolíticos».  

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            O estalinismo e quem o alimenta

            O estalinismo representa a maior perversão do grande ideal de socialismo, justiça e progresso que o movimento operário do século XIX duramente construiu. Tomou na antiga União Soviética, sobretudo a partir de 1928-1929, a forma de um regime unipessoal e de culto da personalidade, de uma ditadura feroz e sanguinária, de um sistema rigidamente policial e censório, e também de uma forma de fazer política que colocou os objetivos do partido único, como suposta vanguarda, acima das pessoas que um dia proclamou servir.

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              A democracia e as feras

              O factor mais impressionante de toda a barbárie que passou por Brasília, e que tende a emergir noutras paragens, consiste em a espécie de seres que a protagonizou – tendo a nem lhe chamar gente – apenas reagir aos slogans vagos que lhe inculcam e ser «anti» algo que nem sabe explicar. Não tem reivindicações objetivas, não possui um manifesto, não é capaz sequer de respeitar os valores patrimoniais comuns, como se viu na destruição indiscriminada de valiosas peças de arte, de mobiliário, de computadores e dos próprios edifícios públicos. Lula disse ontem, durante a visita que fez ao local após uma reunião com os governadores estaduais, que «a democracia é a coisa mais complicada para a gente fazer, porque exige gente suportar os outros, exige conviver com quem a gente não gosta.» Palavras justas, sem dúvida, mas construí-la e mantê-la terá de ser sempre com homens e mulheres, na sua diferença, jamais com feras ululantes, incapazes de agir fora do bando e que apenas respondem ao instinto.

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                Totalitarismo: um conceito plural e útil

                Usado hoje de uma forma constante em artigos de opinião, notícias e reportagens, mas também em campos do conhecimento como a história, a ciência política, a filosofia ou a sociologia, o conceito de totalitarismo é, ao mesmo tempo, útil e questionável. Para ser útil deve utilizar-se em contexto, e não como um chavão aplicado indiscriminadamente, segundo formas que chegam a tocar o absurdo. Exemplificando, ainda há pouco tempo encontrei uma referência ao estilo de direção pouco dialogante do presidente de um grande clube de futebol caraterizando-a como «totalitária», o que é, obviamente, tão impreciso quanto disparatado. Já a sua dimensão questionável depende do caráter não consensual da pluralidade de significados que realmente encerra. A mesma que faz com que parte da esquerda o rejeite liminarmente e certa direita dele se sirva de uma forma politicamente obscena.

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                  Semente de esperança vinda do passado

                  Dizia-me alguém, num registo ao mesmo tempo pedagógico e trocista, que «iluminismo não é palavrão». Não posso estar mais de acordo. A afirmação cega de um relativismo radical, assente na ideia absurda segundo a qual a tradição cultural europeia – sem dúvida associada também a formas de injustiça, opressão e desigualdade – é pobre e nociva, levando muitas pessoas sectárias ou sem informação a ignorar o papel emancipatório dos princípios basilares dessa corrente cultural laica que se afirmou no século XVIII. Na direção contrária, sectores do pensamento contemporâneo, defensores de formas de autoritarismo e de controlo dos cidadãos, olham-na como instrumento fundador de um conceito de liberdade e progresso municiador nos séculos seguintes de dinâmicas democráticas e revolucionárias, que rejeitam e pretendem destruir. 

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                    Cheias: ditadura e democracia

                    Quem mora na região de Lisboa está a sentir com especial gravidade, também devido à concentração populacional, os efeitos desta chuva intensa e que não para, mas grande parte do país vive idêntico problema. Após largos anos de seca, com aguaceiros intermitentes, tínhamos esquecido por cá o poder das verdadeiras tempestades. Tento recordar um temporal destes em Portugal e preciso recuar até aos anos 70, para recuperar algo assim. Os meteorologistas é que têm os dados certos, mas é esta a imagem que tenho.

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                      A «ortodoxia suave» do PCP

                      Talvez mais em resultado da conjugação dos astros que por um efeito do mero acaso, no mesmo dia desta semana de dezembro os jornais «Público» e «Diário de Notícias» atribuem um grande destaque ao que consideram ser sinais de moderação, ou de distanciamento e de suavização da ortodoxia, por parte do PCP. Os sinais que referem não permitem, no entanto, inferir com clareza essa dinâmica, e apontam a aspetos que até nem seriam os mais importantes num processo de eventual e efetivo «aggiornamento» do partido. Os articulistas, porém, entendem que assim é.

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                        Contra o referendo sobre a morte assistida

                        Salvo em momentos de total bloqueio político, sou absolutamente contrário ao recurso, em democracia, à experiência do referendo. Se nos colocarmos no plano estrito dos princípios, ele pode, sem dúvida, parecer uma forma de democracia direta que completa as da democracia representativa. Todavia, tende a minimizar a reflexão e o debate, cingindo-se a respostas primárias, de «sim» ou «não», face a perguntas muito simples, o que tenderá sempre a dar maior poder de decisão aos setores menos informados e mais despolitizados. Por isto mesmo é uma arma perigosa, sempre bastante apreciada pelos populistas.

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                          O Catar, nervo político e «novo normal»

                          Apesar das objeções colocadas logo em 2010, quando a FIFA anunciou a sua escolha, nas últimas semanas tem sido especialmente contestada a realização do Mundial de futebol no Catar. As razões são múltiplas e persistentes, embora aqui deixe de parte as que têm uma natureza desportiva e as que se relacionam com casos de corrupção logo denunciados quando da escolha do local e da altura da prova. Centro-me antes em três questões de uma natureza política: a levantada pela caraterização do regime que governa aquele país do Golfo Pérsico, a que envolve a forma como os mais importantes responsáveis políticos nacionais a têm encarado e a que respeita ao modo como esta situação interpela a atividade e a consciência de quem se preocupa com os dilemas da «polis».

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                            Experimentalismo e vanguarda… ou nem por isso

                            Na arte, como na política e na vida em geral, o novo requer sempre impulso, ousadia, experimentação, por vezes a árdua capacidade de provocar, de remar contra a corrente ou de saltar sobre ela. Durante duas décadas e meia organizei todos os semestres na minha faculdade, em aulas de disciplinas de história cultural contemporânea, três horas de exposição e debate sobre o nascimento e o papel das vanguardas ocidentais sensivelmente entre 1910 e 1970. As estéticas, as filosóficas, as políticas e as vivenciais. Costumava alertar os alunos, todavia, sobre como sempre foi fácil – e mais ainda no tempo mais próximo – elas serem recuperadas pelo sistema de mercado e pelo pensamento dominante. Ou então transformadas, geralmente por ignorância, em formas de repetição do que se fez há já algumas décadas atrás.

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                              Encontrar a felicidade na melancolia

                              Na Anatomia da Melancolia, de 1631, o escritor inglês Robert Burton lançou as bases para entender os estados depressivos, dos quais, aliás, ele próprio padecia. Acreditava que a causa principal desse mal estaria na ociosidade, no que acompanhava aquilo que, sensivelmente pela mesma época, escreviam os tratadistas de arte militar empenhados em evitar estados de espírito que prostrassem os soldados e os afastassem da firmeza necessária na guerra. Declararam repetidamente esses autores que a melhor forma de manter os homens em estado de prontidão para o combate seria impedi-los de pensar em excesso na sua vida e no seu desgraçado destino. A imposição de tarefas constantes e severas que os ocupassem o tempo todo seria a melhor forma de os preservar desse mal inibidor da capacidade para agir.

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                                E agora, Brasil?

                                Logo no dia após a vitória tangencial de Lula, colunistas e jornalistas de todo o mundo começaram a elaborar listagens dos «problemas» e dos «desafios» que a partir de 1 de janeiro de 2023 terá pela frente a nova presidência do Brasil. Não repito esse esforço, em regra bastante completo, mas anoto os meus oito principais temores e desconfianças em relação ao que aí vem. Acreditando que serão partilhados por bom número de pessoas, muitas delas apoiantes ou votantes do candidato do PT.

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                                  Brasil: vislumbre do ódio

                                  Os portugueses que na noite eleitoral de ontem prestaram atenção aos canais nacionais com reportagens e espaços de comentário sobre as eleições no Brasil puderam ter um rápido e eloquente vislumbre daquilo que, nos últimos anos, brasileiros e brasileiras pacíficos e de bem tiveram de suportar diariamente no seu próprio país, ao ponto até de tantos terem decidido emigrar ou de terem deixado de expressar publicamente os seus pontos de vista. 

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                                    Há alguns dias, perante uma fotografia dos membros do novo Comité Central do Partido Comunista Chinês rigidamente perfilados na tribuna do Congresso destinado a estender e reforçar o mandato de Xi Jinping, senti um frémito de horror. Não é preciso ser semiólogo para ler aquele rebuscado cerimonial, a fixidez dos corpos robotizados, a impassibilidade dos rostos, a coreografia de cores e gestos, incluindo-se nestes a exclusão forçada, diante das câmaras, de Hu Jintao, o anterior presidente caído em desgraça. Mais que traduzir «uma especificidade cultural», como certas boas almas julgarão, eles visam impor internamente a aceitação incontestada da autoridade e, no plano externo, o reconhecimento da força. Se ao cenário juntarmos a quase ausência de mulheres, temos a imagem perfeita de um poder misógino e arbitrário que se celebra a si próprio. 

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