E agora, Brasil?

Logo no dia após a vitória tangencial de Lula, colunistas e jornalistas de todo o mundo começaram a elaborar listagens dos «problemas» e dos «desafios» que a partir de 1 de janeiro de 2023 terá pela frente a nova presidência do Brasil. Não repito esse esforço, em regra bastante completo, mas anoto os meus oito principais temores e desconfianças em relação ao que aí vem. Acreditando que serão partilhados por bom número de pessoas, muitas delas apoiantes ou votantes do candidato do PT.

1. A HERANÇA DO BOLSONARISMO. Anos demolidores deixaram marcas profundas no que respeita à construção de muros quase intransponíveis entre cidadãos, à disseminação de uma imagem externa do país extremamente negativa, ao culto da mentira e da deturpação como arma de política, à instalação de uma clientela diretamente dependente do Palácio do Planalto. São sinais que demorarão muito tempo a diluir-se. Para além de que não pode avaliar-se ainda a extensão da influência de Bolsonaro e dos seus próximos nas forças armadas e policiais.

2. O PESO DO «CENTRÃO». Perante o amplo conjunto de deputados que se alinha sempre com o presidente de momento em exercício, seja este qual for, em troca de cargos e de verbas – foram essas negociações, como se sabe, a gerar escândalos como o Mensalão, no primeiro governo de Lula, e o Bolsolão, na gestão de Bolsonaro, sempre com elevados prejuízos para os cofres públicos – será muito difícil, dado o estreito apoio do novo presidente no Congresso e nos governos estaduais, escapar a pressões dessa natureza que adulteram a democracia.

3. UMA CORRUPÇÃO ENDÉMICA. Este é um problema brasileiro de longa duração que não vai desaparecer de uma forma milagrosa. Para um grande número de detentores de cargos públicos, e também de pessoas que a eles concorrem, receber dinheiro a troco de favores políticos ou de desbloqueios administrativos tornou-se prática comum, quase «natural», muitas vezes associada à manutenção de estruturas clientelares, e qualquer governo acaba por se ver forçado a gerir expetativas neste domínio, em detrimento da transparência e da própria democracia.

4. O LUGAR DO LAICISMO. No início e no final do discurso público da vitória, o presidente eleito agradeceu veementemente a Deus o resultado alcançado. A referência não pode deixar de ser um sinal, não de um súbito acesso de fé, mas do reconhecimento do influente papel da religião, e em particular das igrejas evangélicas fortemente politizadas e implantadas no terreno, que inevitavelmente condicionará a tomada de medidas, como a expansão do ensino público laico e o desbloqueamento do direito ao aborto, essencial na sociedade brasileira e que durante a campanha foi formalmente rejeitado por Lula.

5. HESITAÇÃO EM POLÍTICA INTERNACIONAL. Como no passado, vai ser difícil ao novo governo equilibrar uma posição na qual o respeito pelas democracias liberais muitas vezes acompanhou uma compreensão por regimes ditatoriais formalmente apresentados como «de esquerda» ou anti-imperialistas. A posição de Lula perante a guerra de invasão da Ucrânia pela Rússia, formalmente complacente para com a posição defendida por Vladimir Putin, apenas porque este é formalmente um opositor do imperialismo norte-americano, ou mesmo perante a China, envolve riscos e ambiguidades que devem ser esclarecidos.

6. CRESCIMENTO E DISTRIBUIÇÃO. No discurso de vitória, Lula apelou ao investimento dos empresários nacionais e estrangeiros, mas também lembrou a necessidade de uma maior redistribuição dos apoios públicos em favor dos mais necessitados e da justiça social. Um equilíbrio que os anteriores governos do PT nem sempre geriram da melhor forma, e sobre o qual existem dúvidas sobre como irá ser organizado.

7. O PROBLEMA DA ECOLOGIA. O compromisso ecologista do novo presidente, em particular aquele que diz respeito à urgente recuperação da floresta amazónica, essencial para a saúde do próprio planeta, é para levar a sério, espera-se. Todavia, ele irá ter pela frente fortes interesses instalados que no terreno tudo irão fazer para o sabotarem. Uma área que será particularmente difícil e problemática.

8. DIFICULDADES NA COMUNICAÇÃO. Como é sabido, Lula e o PT têm má imprensa, em regra fortemente crítica das suas propostas e de muitos dos seus rostos. Além disso, sabe-se como a direita e a extrema-direita populista têm utilizado o tão útil quanto perigoso instrumento que são as redes sociais. Sabendo-se da magnitude das tarefas que o presidente eleito e o novo governo terão pela frente, será particularmente importante uma grande atenção a prestar aos processos públicos de comunicação. Não o fazer será desastroso. 

Naturalmente, estes são apenas alguns dos problemas. Para além dos que têm sido listados e de outros que resultarão das circunstâncias. Sabendo-se, como verdade de La Palice, que jamais existirão governos perfeitos ou que agradem a toda a gente. É claro que o meu desejo é que tudo dê certo.

Rui Bebiano

Fotografia de Pedro Godoy
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