A «ortodoxia suave» do PCP

Talvez mais em resultado da conjugação dos astros que por um efeito do mero acaso, no mesmo dia desta semana de dezembro os jornais «Público» e «Diário de Notícias» atribuem um grande destaque ao que consideram ser sinais de moderação, ou de distanciamento e de suavização da ortodoxia, por parte do PCP. Os sinais que referem não permitem, no entanto, inferir com clareza essa dinâmica, e apontam a aspetos que até nem seriam os mais importantes num processo de eventual e efetivo «aggiornamento» do partido. Os articulistas, porém, entendem que assim é.

Esses sinais são basicamente quatro: em primeiro lugar, o facto, apontado como «novo», de a atual direção estar a fazer um grande esforço para reorganizar setores mais estáticos do partido e para se aproximar das suas bases; em segundo, o propósito de regressar com maior impacto à reivindicação e à luta de rua; em terceiro, o apelo a que retornem ao partido alguns dos que recentemente, por causa da guerra ou do voto contra no Orçamento de 2022, se afastaram; e por fim, em quarto lugar, o reconhecimento formal da guerra de agressão de Putin contra a Ucrânia como sendo de facto uma invasão, ao que um daqueles diários chama «novidades no discurso».

Salvo em relação a este último aspeto, que corresponde a aceitar que a terra é redonda e gira ao mesmo tempo sobre si própria e em torno do sol, os outros três são circunstanciais e em nada podem servir de prova para explicar a tendência que aqueles jornais apontam. Não existem alterações visíveis na tática interna, na rude linguagem de pau, nos rígidos fundamentos éticos, no relacionamento agressivo com outros partidos democráticos de esquerda ou no campo da política internacional e do entendimento dos atuais equilíbrios do mundo contemporâneo, que permitam inferir que ela se verifica.

Ao mesmo tempo, quem tem contactos dento do partido ou está atento à sua história, às suas escolhas e ao que dizem e escrevem publicamente muitos militantes seus, sabe bem que é precisamente entre as gerações mais novas que se encontram hoje sinais mais fortes de retrógrada ortodoxia, de mitificação do lado negro do passado do «socialismo real» e de resistência a formas e vias de abertura política e ideológica. Não se percebe, pois, este súbito vislumbre de uma «abertura» que por certo seria bem-vinda. Embora quem anda nisto há algum tempo saiba que estas «notícias» coincidentes não tombam do céu.

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