O Catar, nervo político e «novo normal»

Apesar das objeções colocadas logo em 2010, quando a FIFA anunciou a sua escolha, nas últimas semanas tem sido especialmente contestada a realização do Mundial de futebol no Catar. As razões são múltiplas e persistentes, embora aqui deixe de parte as que têm uma natureza desportiva e as que se relacionam com casos de corrupção logo denunciados quando da escolha do local e da altura da prova. Centro-me antes em três questões de uma natureza política: a levantada pela caraterização do regime que governa aquele país do Golfo Pérsico, a que envolve a forma como os mais importantes responsáveis políticos nacionais a têm encarado e a que respeita ao modo como esta situação interpela a atividade e a consciência de quem se preocupa com os dilemas da «polis».

Em primeiro lugar, importa relembrar a forma como o Catar, governado por uma monarquia absoluta, graças ao petróleo e ao gás natural se tornou, de acordo com o FMI, o país mais rico do planeta, tendo sido visivelmente essa condição a condicionar a absurda decisão da FIFA. Deve também sublinhar-se o modo como, na construção dos estádios e infraestruturas, foi explorado trabalho semiescravo e sem condições de vida e de segurança, levando à morte de pelo menos 6.500 trabalhadores imigrantes e ao brutal sofrimento de muitos mais. Importa ainda notar, num mundo que se pretende mais inclusivo e igualitário, a forma como as mulheres ali são colocadas em lugar de subalternidade e como são perseguidas as pessoas que optam por comportamentos e sexualidades não conformes com a rigidez de um Islão ultraortodoxo.

Em segundo lugar, deve olhar-se a polémica sobre a forma como as principais figuras do Estado português anunciaram e prepararam deslocações ao Catar com o objetivo formal de apoiarem a seleção. Não se prevendo que esta se comportasse pior devido à sua ausência, não existindo ali uma comunidade nacional significativa, e não sendo também prioridade de política externa o estabelecimento de relações fraternas com o emirato, não se entende esta romaria a um Estado justamente contestado no plano dos direitos humanos. Os responsáveis máximos do Estado, do Governo e do Parlamento não poderiam ser impedidos de viajar em representação do país, mas tinham o dever de tomar a iniciativa pessoal de não ir. E nem precisariam fazê-lo através de declarações bombásticas, pois só o gesto definiria uma posição com significado público.

Em terceiro lugar, deve considerar-se de um modo crítico a forma exageradamente «soft» de fazer política que esta tripla iniciativa traduz. Junto de quem detém posições de poder e de representação, existem fatores que integram necessariamente forte dose de pragmatismo, associada à ponderação de escolhas e alianças, bem como à complexa atividade diplomática. Todavia, não pode tornar-se regra, ou uma prática dominante, o cuidado de o colocar sempre em primeiro lugar, transigindo-se para o efeito em princípios essenciais de ética e de defesa da democracia, trocados pela indiferença ou pela complacência. Perde-se então a ousadia, o nervo político, anulando o efeito de exemplo e deixando os cidadãos sem ter em que e em quem realmente acreditar. 

A propósito do impacto deste Mundial e da forma como este coloca um problema que vai além do futebol, escreveu Teresa de Sousa no Público: «Como devem as democracias lidar com os países onde os direitos fundamentais não são respeitados? Quando a democracia está em “recessão” à escala global e quando grandes potências autocráticas ocupam um espaço cada vez maior na cena internacional, responder a esta questão não é fácil. As democracias, que são em geral os países mais desenvolvidos do mundo, não estão em condições de impor as suas regras e os seus valores aos outros, não se podem isolar dos outros, nem sequer isso teria alguma utilidade. Mas têm de defender os seus valores e os seus interesses sem cedências desnecessárias.» De outro modo, acrescento, as tiranias imporão as suas escolhas, transformadas em regras de um «novo normal».

Rui Bebiano

Fotografia de Peter Glaser
Publicado no Diário As Beiras de 26/11/2022
    Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Opinião.