Adeus Maria

Maria

As filas, «bichas» num português de outras eras, nunca foram o meu forte. De cada vez que me meto numa um pouco mais comprida e visivelmente demorada, rapidamente avalio se se justifica a espera e não será preferível trocá-la por uma actividade mais autónoma. Nessas alturas desisto sem ponta de remorso e vou-me embora. Mas não foi isso que aconteceu naquele final de tarde de um Verão dos idos de 75, ali nas imediações das bilheteiras do Cine-Atlântico (ou teria sido no Cine-Miramar?) de Luanda. Munido de toda a paciência deste mundo e do outro, deixei-me ficar bem mais de duas horas na bicha, ou «fila» em português do século vinte e um, que dava a volta ao quarteirão. O objectivo assumido: comprar um bilhete para ver O Último Tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci. Mais do que muitas famílias, libertas da censura pelas liberdades de Abril, seguiam pacientes em formatura, visivelmente interessadas em conhecer a dimensão estética da lubrificação na fantasia sodomita protagonizada por Paul (Marlon Brando) e Jeanne (Maria Schneider). A Maria morreu hoje de cancro e só consigo recordar-me de como estava esplêndida, na pele de uma mulher jovem e desconhecida, naquela noite luandina.

    Apontamentos, Cinema, Memória

    Esperança e desengano

    No Libération de hoje, Bernard Guetta sugere quatro novos vectores de desenvolvimento nos processos de mudança política a decorrerem nos Estados islâmicos. O primeiro refere-se a um despertar do Islão associado à ampliação daquilo a que chama os valores universais da democracia; o segundo diz respeito ao peso adquirido por uma juventude numerosa, descontente e impaciente, que recebe da Internet o impacto cultural da globalização; o terceiro dá um grande valor ao exemplo da actual Turquia, permitindo mostrar que islamismo, laicidade e desenvolvimento económico não são inconciliáveis; e o quarto sugere a instalação inexorável de um novo «xadrez democrático» que vai de uma esquerda activa e moderna a partidos religiosos conservadores mas capazes de superarem os sinais bestiais do islamismo. Guetta é um jornalista sénior, especialista em geopolítica, que conhece razoavelmente o universo do qual fala desta forma tão animadora, e nós, depois de habituados a olhar para aqueles territórios como inapelavelmente esmagados por ditaduras brutais e líderes religiosos todo-poderosos, facilmente olhamos as suas projecções como sinais de uma transformação positiva. Só que este optimismo em versão wishful thinking é perigoso e desarmante, pois nada nos garante que o Islão aparentemente democrático, moderno e urbano, que de repente tirou o véu e mostrou um rosto benigno, não seja rapidamente esmagado, antes ainda de deixar semente, pelas hordas de resignados, facilmente manipuláveis pelos tiranos ou pelos pregadores, que têm atrás de si séculos de uma cultura de submissão e pouco treino nas subtilezas da democracia. Por aqui, no conforto desta Europa por estes dias fria e chuvosa, esperar que aconteça aquilo que mais desejamos – deparar de repente com um Islão afável, de gravata, óculos de marca ou boné de basebol – pode levar a uma desilusão imensa. O jogo está lançado mas o desfecho é imprevisível. E como nada podemos fazer, resta-nos esperar por um bom resultado, sem sabermos muito bem qual possa ser ele.

      Atualidade, Olhares, Opinião

      Entre sombras e silêncios

      Em crónica saída na revista New Statesman, o escritor ucraniano Andrei Kurkov descreveu Sussurros, de Orlando Figes, como «uma fascinante enciclopédia das relações humanas», considerando-o, a par do Arquipélago Gulag, de Soljenitsine, e dos Contos de Kolima, de Varlam Chalamov, como «um dos maiores monumentos literários do povo soviético». Não se trata de uma desnecessária hipérbole, pois esta é, de facto, uma obra soberba e claramente inovadora. Convém à partida desvanecer um eventual equívoco: este não é mais um dos muitos estudos históricos descritivos e estatísticos sobre Estaline, o estalinismo e as suas vítimas proporcionado pela abertura dos arquivos que se seguiu à Glasnost. Mergulhando nas sombras, surge antes como uma abordagem da vida diária das pessoas comuns e da forma como esta foi condicionada pela engenharia social do «homem novo». ler mais deste artigo

        História, Memória, Olhares

        Armadilhas do PowerPoint

        PowerPoint

        Fui e sou um utilizador prudente do PowerPoint. Pareceu-me desde o início um expediente útil mas potencialmente negativo, por simplificar aquilo que é complexo, por transformar com dois cliques o que é trama, o que é novelo, numa fórmula perfeita ou em rede de linhas demasiado regulares. O estilo de operação ao qual o seu utilizador recorre tem passado muitas vezes por «pedagógico» e é justamente aqui que se situa a fonte da minha desconfiança. Debati este tema há algumas semanas durante uma aula de mestrado e por um acaso – ou talvez não – dias depois encontrei na Visão uma entrevista com o jornalista francês Franck Frommer na qual este vem ao encontro das minhas dúvidas. A entrevista saiu a propósito do lançamento, pela La Découverte, de um livro de Frommer cujo título é todo um projecto: La pensée PowerPoint – Enquête sur ce logiciel qui rend stupide (O pensamento PowerPoint – Inquérito sobre este programa que estupidifica). O autor considera-o de facto um dispositivo perverso: «Dá a ilusão de criatividade, mas, ao mesmo tempo, é constrangedor. Pouco permite sair de um fio condutor linear e não favorece a interactividade. Parece muito ‘científico’ embora seja simplista. Como transforma toda a argumentação em listas de pontos, impede o debate. Inventa laços de causalidade artificiais.»

        Algumas pessoas poderão dizer que isto é verdadeiro, mas que, em contrapartida, nas actividades da sala de aula ou durante uma conferência o recurso ao programa responde também às dificuldades de percepção dos alunos ou do público, podendo ainda, como um teleponto, ajudar o orador a ser mais claro, metódico e convincente. Existirá um grau de verdade nisto, sem dúvida. Mas podemos e devemos também colocar o problema ao contrário: não convidará a simplificação induzida pelo recurso sistemático a este dispositivo à preguiça de quem comunica e à passividade de quem ouve? não fará ela com que se vá perdendo o treino na percepção de formas complexas de pensamento e no desenvolvimento de uma capacidade retórica rica e sofisticada, integrando quem assiste num plácido e silencioso rebanho de carneiros? Sei que uma resposta cabal as estas perguntas não pode inferir-se de uma mera opinião individual, mas eu penso que sim. É quase sempre assim que acontece. E por isso vou continuar a usar o PowerPoint muito moderadamente, desligando o projector logo (ou sempre) que possível.

          Atualidade, Cibercultura, Olhares

          Meio milhão

          500.000

          Há dois dias este blogue ultrapassou o meio milhão de visitantes. Em números mais ou menos rotundos isto significa uma média de quase 300 visitas únicas diárias ao longo de um pouco menos de cinco anos. Já a visualização total de páginas por dia, essa ronda as mil. Para um blogue a solo que quase não fala de política local, das chicanas da blogosfera, de sexo explícito ou das transferências do futebol, que mantém um registo relativamente intimista e um padrão de escrita pouco popular, não parece nada mau. Aliás, quando o número de visitantes quotidianos ultrapassa os quinhentos pigarreio um pouco e penso logo que alguma coisa não está bem. Dá portanto para as despesas. Isto é, para manter noite adentro, extorquindo horas ao sono, entre cigarros e bebidas quentes, o prazer de escrever para pessoas que se aqui entram uma vez e depois regressam é porque se sentem bem. É sobretudo para elas – algumas transformadas entretanto em amizades das verdadeiras – que segue um imenso abraço. Acompanhado de um obrigado pela companhia e pela persistência.

            Apontamentos, Cibercultura, Novidades, Oficina

            Perderam o medo

            perder o medo

            Ninguém sabe que caminho tomará e até onde poderá ir a revolta popular que irrompeu na Tunísia e está a alastrar a outros países islâmicos que vivem debaixo de ditadura. A insurreição parece incontida: multidões ocupam ruas e praças, clamando de uma forma intensa, bem audível, profundamente física, por mudanças numa vida colectiva feita de privações, repressão e desespero. A repressão actua e não é afável, fere e mata pessoas, mas não parece ser capaz de conter os efeitos de uma tensão que, percebe-se agora, atingiu os limites do tolerável e acabou por explodir. Os objectivos parecem ser claros e vagos ao mesmo tempo, pois se a maioria talvez não identifique com clareza aquilo que deseja sabe muito bem o que não quer. E não quer, em primeiríssimo lugar, continuar a ver na televisão, em fotografias gigantescas, em estátuas erguidas em espaços públicos, rostos que são sinais da estagnação e da ausência de liberdade. Sim, porque a palavra liberdade é audivelmente pronunciada por muitos dos revoltosos. E a palavra democracia também.

            Ao mesmo tempo, basta-nos seguir as notícias, ouvir os especialistas, ver fotografias e vídeos que vão chegando, para concebermos a diversidade da revolta. Na Tunísia, por exemplo, vemos muita gente da classe média, muitas mulheres e muitos jovens, manifestantes que se percebe terem um certo nível de formação. No Iémen quase só encontramos homens, invariavelmente com sinais da mais extrema pobreza. No Egipto confluem grupos e rostos muito diversos. Alguns sectores estão sedentos de democracia e de desenvolvimento, a outros preocupa principalmente a sobrevivência.  Mas seja para onde for que se caminhe, uma coisa já é certa: esta vaga de rebelião tem vindo a devolver ao mundo islâmico o respeito e a simpatia de milhões de pessoas que não fazem parte dele e dele tantas vezes desconfiam. Estas podem finalmente perceber que a «rua islâmica» não é território exclusivo de homens barbudos, prontos a degolar os infiéis que ousem duvidar da sua fé mas submissos diante dos déspotas. Centenas de milhares, milhões talvez, estão a mostrar ao mundo o que apenas há um mês lhes pareceria absurdo: que perderam o medo.

              Atualidade, Olhares

              «Hoje Battisti, amanhã tu»

              [vimeo]http://vimeo.com/19258838[/vimeo]

              Um grupo de cantores portugueses juntou-se para interpretar esta canção de apoio Cesare Battisti. Pode encontrar aqui mais informação sobre o caso deste homem, perseguido desde há quatro décadas, sempre debaixo de falsas ou tortuosas acusações, principalmente por um dia ter acreditado num mundo mais justo. Um caso de «injustiça poética» que não pode consumar-se.

                Etc.

                Os 178 trabalhos de Cuba

                Cuba

                «É preciso suprimir as preocupações paternalistas que atenuam a necessidade de trabalhar para viver», disse Raúl Castro após mais de 50 anos ligado a um governo que cedeu a tal descuido. Para dois milhões de cubanos, funcionários do Estado, 500.000 agora e mais 1.500.000 a prazo, isto significa uma acusação formal de mandriice. E a obrigação de procurarem um novo modo de ganhar a sua vida. Como? Trabalhando numa das 178 actividades privadas que o governo lhes permite ter, ainda que não possuam formação para qualquer uma delas ou um financiamento básico para lançarem o negócio. A lista – anexo 1, da resolução número 32 de 7 de Outubro de 2010 – parece uma sucessão de deixas para um mau programa de humor. Abre com «reparador de instrumentos de música» e encerra com «alugador de bicicletas». Pelo meio, «poceiro» (o operário que abre poços), «cabeleireiro», «engomadeira», «fabricante de cintos», «polidor de metais», «pedreiro», «vendedor de vinho», «figura folclórica» (imagino o que possa ser), «cartomante» (sic), «vendedor de flores artificiais», «descascador de frutos naturais», «par de dança» ou, acreditem, «dandy» (talvez em Cuba signifique outra coisa). Pode também entrar-se com expectativas na carreira de «estofador de botões» (a pessoa que reveste de tecido alguns modelos antiquados daqueles acessórios do vestuário), «tratador de cães», «carregador de isqueiros», «colector-vendedor de matérias primas» (aquele que remexe no lixo para recolher e revender o que se puder aproveitar), «operador de compressor de ar, reparador de pneus e de câmaras de ar», ou «preparador-vendedor de bebidas não alcoólicas ao domicílio». Como disse o Castro mais novo, «é preciso acabar de vez com a ideia de que em Cuba é possível viver sem trabalhar». Existe agora um mundo novo de possibilidades, bem preciso e bem delimitado, que liberta o Estado dos inúteis e dos preguiçosos e que prepara o futuro do país. Basta solicitar licença para exercer uma actividade que conste do catálogo, aguardar pelo deferimento e ficar à espera do milagre da sobrevivência. Para pelo menos dois milhões de trabalhadores cubanos e para as suas famílias é este o deprimente horizonte.

                Dados retirados do suplemento «Le Mag» do Libération de 23 de Janeiro.

                  Atualidade, Democracia, Olhares

                  A água do capote

                  sofá

                  Quando em 1963 Hannah Arendt publicou Eichmann em Jerusalém, invocando aí o tema difícil da banalidade do mal, provocou uma onda de choque em muitos dos seus leitores judeus ou em pessoas que simpatizavam com as suas causas. O escândalo derivou, como tantas vezes acontece perante uma argumentação lúcida mas complexa, de uma incompreensão profunda e renitente. Na realidade, Arendt, ela própria de origem judia, não tinha declarado ali que os judeus haviam sido cúmplices do seu próprio aniquilamento às mãos da barbárie nazi, como alguns quiseram fazer crer, mas sim que uma certa passividade, ou desinteresse, mantido por muitos perante os avanços do nazismo e do anti-semitismo, os haviam transformado em inevitáveis vítimas. Quando acordaram não tinham alternativa. Sem dramatizar em excesso os resultados das eleições de domingo e pretender, o que seria um absurdo, que a situação política que vivemos tem algo que se compare à da Alemanha durante a República de Weimar – Cavaco não é propriamente Adolf Hitler e continuamos apesar de todos os males a viver em democracia – podemos ainda assim esboçar uma analogia com a explicação da teórica alemã. Olhar para o lado, incitar à indiferença, trouxe consigo, objectivamente, uma derrota que irá lesar muitos dos que por omissão a permitiram ou amplificaram.

                  É que aconteceu o que aconteceu porque um largo sector da «consciência global» da esquerda – um conceito que arrepia muitos dos seus segmentos, mas que existe para além da sua vontade – não só não foi capaz de gerar as condições para produzir uma alternativa convincente e mobilizadora, como se refugiou num desinteresse, numa maledicência, numa abulia que acabaram por favorecer uma direita unida, pragmática e razoavelmente enérgica. Manuel Alegre, de facto, apenas mobilizou os partidários de uma ideia de esquerda cheia de pergaminhos mas talvez demasiado retórica, imprecisa e pouco atractiva. Já os mobilizáveis que não foram mobilizados – leia-se, um bom número de militantes e compagnons de route socialistas – refugiaram-se num rancor absolutamente cúmplice. Agora justificam-se, entre gargalhadas, com um absurdo «eu não vos disse…», mas a verdade é que é fácil afirmar que Alegre foi estrondosamente derrotado – e foi-o – quando de facto tudo se fez para que essa derrota acontecesse, ainda que à custa de uma vitória esmagadora – que o foi – do homem de Boliqueime. A sua apologia da passividade não foi a causa exclusiva da derrota de Alegre, mas foi com toda a certeza responsável pela dimensão do triunfo do candidato da direita. Que não venham sacudir para cima dos outros, aqueles que se moveram, a água do capote.

                    Atualidade, Olhares, Opinião

                    Frio polar

                    frio polar

                    A manhã estava de sol mas estava triste. Votei às dez, depois de ultrapassar uma barreira aparentemente inabalável de pequenos lobitos em calções e lenço à Baden Powell, com as caras vermelhas e contorcidas pelos 2 graus Celsius, que por ali se mantinham comandados por um matulão de dezassete anos devidamente agasalhado. Tentavam vender calendários impressos a jacto de tinta aos cidadãos eleitores, que resistiam a tirar as mãos dos bolsos ou a descalçar as luvas. Não havia fila: entrei directamente para a mesa de voto e ainda me dei ao luxo de conversar durante dois minutos com os esforçados cavalheiros da mesa e a notória companheira bloquista. Sobre trivialidades, claro. Mas aproveitei para me queixar de ter sido deslocado de uma mesa de voto que ficava a 100 metros de casa para outra a três quilómetros bem medidos. Na minha insana sanha anticavaquista, lá depositei então o voto na urna. Não, não foi naquele senhor doutor médico que é todo ele boa pessoa, não foi no chefe da oposição na Madeira, não foi no funcionário cansado, mas sim no outro, aquele do verbo retumbante que o Sr. Lello detesta. O entusiasmo – o meu e o de toda a gente que vislumbrei – era nenhum. Suspeito, julgo que com algum fundamento, que não terá sido por causa do frio polar. Só vi pessoas a circularem de cá para lá, de lá para cá, com cara de quem acabou de tirar da caixa Multibanco um extracto de conta e está a precisar de um café bem forte e bem quente. Tenho a impressão de que não é assim que se levantam futuros, mas às tantas também estou a exigir demasiado da vida.

                    Nota importante – Ao escrever este apontamento constatei que anticavaquista (sem hífen) já consta entre as palavras reconhecidas pelo corrector ortográfico Flip, versão 8, como fazendo parte da língua portuguesa. Valha-nos isso.

                      Apontamentos, Atualidade, Olhares

                      É só fazer as contas

                      ipadnews

                      Se mais razões não existissem para a compra de um iPad – e existem, como já escrevi noutro post – descobri uma há cerca de oito dias. Esta definitiva para um viciado em jornais como eu. Admito que não serei um leitor vulgar: aprendi a ler pelo velho Diário de Notícias e talvez por isso não mais fui capaz de passar um único dia sem diários, semanários, quinzenários, mensários ou similares. Raramente apenas um, em muitas alturas dois, três ou bem mais. Bastantes vezes, fiz quilómetros a pé ou de bicicleta para descobrir quiosque, livraria, café, mercearia ou barbearia que fizesse o favor de me vender um exemplar. Não se tratando de uma mania universal, não é no entanto uma extravagância, pois muitas outras pessoas partilham este género de dependência. A leitura de jornais através do computador pessoal não veio alterar substancialmente este estado de coisas, uma vez que a leitura é ali algo incómoda e parcial. Além disso, para termos acesso às edições completas precisamos quase sempre de pagar sucessivas assinaturas, que muitas vezes nem temos sequer a possibilidade de aproveitar pois não é a toda a hora ou em qualquer espaço que podemos ler o jornal naquele formato.

                      O iPad veio alterar esta situação, colocando-nos em cima dos joelhos, quando e onde quisermos, o jornal ou a revista que pretendemos. Mas por-se-ia ainda assim o problema dos custos, não é verdade? Pois não é não senhora. Para além de assinaturas de publicações autónomas a um preço módico – por exemplo, pago 7 euros mensais por 4 números da edição francesa do Courrier International e acesso total ao arquivo da revista – existe um programa e um serviço para iPad (também existe para smartphones, mas aqui não se lê tão bem) que descobri há pouco e me deixou rendido. O programa chama-se PressReader e permite-nos aceder, por uma assinatura que custa 25 euros mensais, à edição completa, igual à edição em papel e com a possibilidade de copiar, guardar, imprimir ou partilhar qualquer artigo, de cerca de 1.700 publicações de todo o mundo. Como dizia alguém, é só fazer as contas: subscrevo neste momento o Público, o DN, o JN, o Expresso, a Folha de S. Paulo, o Guardian, o Irish Times, o Le Monde (o El País e o NYT ainda não aderiram, mas têm aplicações grátis próprias) por um total de 25 euros. Ora só o Público em papel, comprado no quiosque, ficava-me antes por cerca de 35. Chega para testemunhar a alegria de um viciado, a quem, além do mais, acabam de cortar 10% do ordenado? Resta ter tempo e disposição para esta orgia de informação, mas esse é um outro assunto.

                      [demonstração aqui]

                        Atualidade, Cibercultura, Novidades

                        Reflexão

                        reflexão

                        Sempre vi o «dia de reflexão» que antecede cada acto eleitoral como um disparatado sinal de imaturidade democrática. Como se por decreto nos mandassem tomar um duche frio. Ou desviar os olhos dos outdoors, tapar a boca e fechar os ouvidos às mensagens que chegam de todo o lado. «Pensa bem, rapaz, não te precipites.» «Vá lá, respira fundo e conta até dez.» «Vê lá bem o que fazes.» «Tu tem-me juizinho nessa cabeça.» De certa maneira faz de nós crianças. Ou seres impulsivos e um pouco tolos. Não será agora que vou mudar de opinião. [Que tanta reflexão não vos faça esquecerem-se de votar neste domingo.]

                          Apontamentos, Atualidade

                          A cultura popular do salazarismo

                          cultura popular

                          A Angelus Novus editou no final de 2010, na série de História (que coordeno) da colecção «Biblioteca Mínima», o livro A Cultura Popular no Estado Novo, de Daniel Melo. Este constitui uma excelente e actualizada introdução a um tema sobre o qual o autor vem trabalhando desde há anos. A editora acaba entretanto de divulgar no seu blogue uma entrevista com o historiador. Nesta se fala, entre outros aspectos, da forma como o modelo de cultura popular estimulado ou construído pelo salazarismo serviu na época de «’almofada’ social». Ele oferecia, sublinha Daniel Melo, «um conforto existencial face aos receios que a mudança pode compreensivelmente despertar», mas funcionava também como «pilar ideológico, guia da acção e inculcador de certos valores, práticas, vivências e comportamentos, fortemente unidimensionais.» Pode seguir-se aqui toda a entrevista.

                            Apontamentos, Olhares

                            No olho do vulcão

                            Túnis

                            Nawaat – a palavra significa «núcleo» em árabe – autodefine-se como «um blogue colectivo independente animado por tunisinos que dá a palavra a todos aqueles que pelo seu combate cívico a tomam, proferem e difundem». Tem publicado centenas de textos, fotografias e principalmente vídeos sobre o movimento popular de protesto que desde meados de Dezembro tem percorrido a Tunísia. É independente, não aceitando qualquer subvenção partidária. No ar desde 2004, foi desenvolvendo ao longo destes últimos seis anos a dose de engenho e de arte bastante para contornar a censura imposta pela ditadura de Ben Ali. E foi agora instrumental no lançamento e na organização dos protestos. Editado em inglês, francês e árabe, pode ser visitado aqui.

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                              Bom conselho

                              Chico

                              A esquerda em campanha parece incapaz de falar para os que precisam realmente de campanha. A fazer chover no molhado quando a savana está ali mesmo ao lado. Bate em Cavaco 24 horas sobre 24 junto daqueles que jamais votarão em Cavaco e não precisam de que lho lembrem. Dando ao mesmo tempo a este oportunidades para ir dizendo ao bom povo hesitante que é atacado pelos que «só sabem dizer mal» e que, no fundo, «nada fazem». A esquerda em campanha denuncia as trapaças e as malfeitorias de Cavaco de segunda a segunda como se parte importante do povo eleitor que decide não visse em muitos desses actos actos sinais de uma «esperteza» que cobiça ou lhe é indiferente. Porque não uma preocupação maior em explicar pacientemente e com imaginação, boca a boca, porta a porta, debate a debate, comício a comício, post a post, a tanta gente que hesita ou ainda duvida, AS RAZÕES pelas quais vale a pena votar positivamente no seu candidato? (Quase três da madrugada. Desligo o computador, apago a luz e desço as escadas trauteando a velha canção de Chico Buarque. «Oiça um bom conselho, que lhe dou de graça.»)

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                                Onde estará você a 23 de Janeiro? (2)

                                verderubra

                                Como não me prende qualquer dever de solidariedade para com um partido ou movimento dotado de programa, estatutos ou objectivos a curto prazo – com Albert Camus, reconheço apenas que «se existisse um partido daqueles que não têm a certeza de terem razão, eu faria parte dele» – posso dar-me ao luxo de ser sincero e de falar com quem me lê sem preocupações exageradas com o impacto do que escrevo. Posso dizer, por exemplo, que sendo adepto obstinado de uma intervenção cívica atenta e permanente, neste momento mais facilmente me revejo na expressão resistente da recusa e do protesto do que na associação a propostas programáticas voltadas para a acção organizada. Haverá quem diga que essa é uma posição cómoda, e provavelmente é-o, mas vivendo numa sociedade sem projectos políticos mobilizadores, sem movimentos nos quais confie ao ponto de aderir fisicamente a eles – já que a alma, lamento, essa só ao velho diabo a doarei –, não é nada de particularmente singular que faça parte da multidão de cidadãos politizados que se não revêem na militância de papel passado. Serão tentações de anarquista? Sim, um pouco, pois admito que entre o vermelho e o negro o meu coração já balançou mais. Mas as circunstâncias não carecem de grandes justificações: muito simplesmente, incomoda-me gritar palavras de ordem, vivas, hurras ou morras quando o meu apoio às ideias, instituições ou pessoas às quais elas se aplicam conserva uma razoável distância crítica.

                                Sim, já o disse aqui e repito-o agora: no dia 23 votarei em Manuel Alegre. Dele afasta-me muita coisa. Afastam-me desde logo certos pressupostos culturais e modos de estar. Não gosto da exibição de «moralina», essa palavra inventada por Nietzsche para designar uma arrebatada agitação declamatória, em forma de pregação, que nega a dimensão crítica e convicta da intervenção política. Não me agrada a sua concepção protocolar e estritamente canónica de cultura. Não me agrada o vínculo com um Portugal simbolicamente virilizado, taurino e venatório, que me parece de outras eras. Afasta-me também um trajecto recente marcado por atitudes de hesitação ou pouco claras, apesar da afirmação pública de inegável coragem que tem pontuado a sua vida. Aproximam-nos, todavia, factores que se relacionam com muito daquilo que representa, ou pode vir a representar, que é basicamente a reconstrução de territórios de política solidária, a activação de expectativas de mudança, de prioridades sociais, de uma sensibilidade centrada nas pessoas, que se encontram nos antípodas do que Cavaco Silva exprime. É este o campo de combate que agora interessa, muito mais importante do que o espaço para os gostos e os desagrados de pessoas mais ou menos como eu. Por isto, apesar de não andar por aí em desfiles ou comícios a gritar os tais vivas e hurras – sem nada, mas mesmo nada, contra quem o faz –, agirei a 23 sem hesitações. Não me posso refugiar em esquisitices pessoais, não me posso abster, quando, para além de Manuel Alegre, não existe alternativa capaz de impedir que por mais cinco anos tenhamos de conviver diariamente com a cabeça rústica mas perigosa daquele senhor esguio, azedo e de direita.

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                                  A rua tunisina

                                  Tunísia na rua

                                  Os acontecimentos dramáticos da Tunísia, os duros recontros de rua entre os manifestantes e a polícia, e o seu resultado prático com a demissão compulsiva de Ben Ali, inesperados pelo menos para quem os observa de longe, podem ajudar-nos, nesta época de recuo dos movimentos sociais de natureza não-reformista, a perceber que não é através da instalação da cultura de escape ou do conformismo diante do arbítrio que se combatem a tirania, a injustiça ou a desigualdade. Que se revela a possibilidade da realidade que «é» ser bem diversa daquela outra que afinal «pode ser». Através de um processo de mudança apoiado num esforço para sairmos do nosso acanhado território de salvaguarda, dos nosso medos instalados e do nosso desalento. Da pequena vida ocupada com a sobrevivência em fugidios nichos de felicidade nos quais nos resguardamos para sobreviver.

                                  Será um lição para os povos dos Estados do mundo islâmico, dentro dos quais o poder arbitrário, a desigualdade entre ricos e pobres, entre quem pode sempre e quem apenas deve, a pobreza extrema da maioria da população, a exploração do trabalho, a falta de liberdade, o analfabetismo e a ignorância, a intolerância usada como forma de opressão, são camuflados por uma retórica sectária, nacionalista ou antiocidental, apresentada pelas autoridades políticas e religiosas como vinculada a uma «tradição islâmica» na verdade inexistente. Foi o libanês Samir Kassir quem, num livro que lhe custou a vida – Considerações Sobre a Desgraça Árabe, editado em 2006 pela Cotovia – falou dos crimes dessa gente que se mantém no poder fazendo crer aos seus povos «que não têm outro futuro para além do que lhes destina um milenarismo mórbido», remetendo-os ao culto «da desgraça e da morte». Na realidade, uma alteração de política imposta pela revolta generalizada e pela vitória, ainda que temporária, dos objectivos nucleares dos sublevados, como esta que acaba de acontecer na Tunísia, suscita o exemplo de uma oportunidade, de um trilho, que só pode preocupar as elites criminosas, cujo poder se funda na opressão e se alimenta do ódio ao outro que vive a milhares de quilómetros de distância.

                                  Mas será uma lição também para os povos do chamado ocidente, em particular para os da Europa do sul, contidos por sistemas políticos bloqueados, sem capacidade de renovação e de motivação, e narcotizados por uma comunicação social manipuladora, controlada pelos grupos financeiros, que se esforça para impor a ideia de que toda a perturbação é necessariamente má. Espalhando, como um vírus, a fantasia de que os núcleos concêntricos do poder são imunes aos protestos dos cidadãos e à possibilidade de uma mudança de orientação na organização da economia, na escala dos valores sociais, na escolha das prioridades políticas. A revolta extrema, dura e radical, com contornos por vezes brutais, como aquela que vimos agora nas cidades, vilas e até povoados tunisinos, pode desenhar num horizonte geograficamente alargado, a contracorrente, a percepção de que existe um momento no qual a paz social carece realmente de alguns safanões. Estes movimentos bruscos e perturbantes não são agradáveis – só um tonto ou um louco gosta do cheiro das barricadas em chamas, do ardor dos gazes lacrimogéneos, de sangue derramado –, mas podem ajudar a reencontrar a ideia de que a mudança radical não é um mal em si. E de que ela pode até representar a melhor forma de evitar males bem piores.

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