Longe do Paraíso

Orwell

Publicado em 1933, Down and Out in Paris and London (Na Penúria em Paris e em Londres, em tradução frágil que se tornou «norma») é um pungente testemunho da experiência da pobreza, dos seus efeitos sobre os comportamentos e da própria consciência individual do ser-se pobre. A vivência do desamparo não resultou em Orwell, filho de um country gentleman de Dorset e de uma herdeira do Conde de Westmorland, da imposição das circunstâncias. Foi à sua procura porque queria conhecê-la, buscou-a pois «queria viver entre os oprimidos, estar no meio deles», porque pretendia partilhar, como escritor mas também como militante convicto da causa do socialismo, das condições de existência da maioria dos humanos. A sua percepção de determinados factores associados à condição do indigente – o tédio da existência degradante, a ausência intensamente depressiva de uma perspectiva de futuro, a despersonalização e o individualismo, a violência usada como instrumento de sobrevivência ou até como vestígio de dignidade – jamais deixou de ter a marca inerente à condição social e intelectual que o escritor detinha, mas nem por isso foi menos perturbante, funcionando, a par da experiência colonial na Birmânia, como factor determinante na construção da sua consciência política e do modo de viver que escolheu.

Neste relato circunstanciado e dorido sobressai então, por detrás da miséria humana mais extrema, a decisiva vertente solidária. Deixou gravado um momento de epifania, lembra o seu biógrafo John Newsinger, quando descreveu como em Paris, um certo dia, ajudou um vendedor ambulante a endireitar uma carroça que se havia virado em plena rua. «Obrigado, companheiro», agradeceu-lhe o vendedor com um sorriso. «Ninguém ainda me chamara assim “companheiro” em toda a minha vida – era o efeito das roupas a manifestar-se já», escreveria, falando dos efeitos sociais produzidos pelo seu próprio aspecto descomposto e exaurido. Por detrás do egoísmo imposto pela luta diária pela sobrevivência, encontrou assim um princípio de solidariedade que unia os excluídos, no qual jamais deixou de acreditar e pelo qual continuaria sempre a bater-se, mesmo quando, já perto do final de uma vida curta, se aproximou de um partido então já institucional como o Labour, ainda que o tenha feito junto da ala mais à esquerda.

Talvez valha a pena relembrá-lo nesta altura, quando uma boa parte dos socialistas europeus se separou assumidamente, talvez para sempre, do modelo utópico e solidário no qual a sua família política um dia se fundou. Por troca com um programa desenvolvimentista que vê num capitalismo pudico e bem-educado o menos mau dos sistemas, o único cenário possível depois do bloqueio histórico das narrativas maximalistas e igualitárias. E também quando por estes dias ouvimos repetir que a continuidade dos Estados assenta em primeiro lugar no sacrifício dos mais pobres e na pauperização da classe média, quando o cenário da penúria nos acena já de um horizonte próximo. Aqui, pela orla do velho «primeiro mundo» que se acreditou desenvolvida, em breve os pobres deixarão de ser vistos apenas nos transportes públicos que se movem em vaivém entre os lugares onde exercem os seus empregos subalternos e os bairros periféricos nos quais vivem, se multiplicam e morrem. E muitos deles poderemos ser nós próprios, ou familiares nossos, confrontados com o retorno a uma realidade que um dia associámos a um certo passado, supostamente arcaico e ultrapassado, de miséria e exclusão. Como aquele descrito com precisão e calor no livro de George Orwell.

Versão revista de um texto escrito em tempos para o blogue Vias de Facto.

    Heterodoxias.