O instinto

É nas épocas difíceis que mais facilmente caem as máscaras. Quando tudo se complica e a dúvida se instaura, é mais fácil mostrar aquilo que realmente somos. Nus, sem a protecção das aparências que se cultivam com maior facilidade em tempos menos rudes e opacos, tornamo-nos mais genuínos, o que geralmente significa que cresce a imprevisibilidade e o perigo diante do que somos capazes de fazer. Solitários ou em bando, é preciso que se diga. E isso percebe-se muito bem quando vemos como a maquilhagem democrática de muitos de nós se transvestiu logo que as dificuldades aumentaram dramaticamente e o rumor da legítima revolta, moral ou física, impotente ou indignada, se afigurou no horizonte.

Em quase todo o espectro partidário saltaram os disfarces. A direita que temos, «democrática» e pluralista, deixou cair a verborreia antieuropeísta e os ímpetos «nacionalistas» e ultraliberais que ainda há pouco tempo sobejavam no seu vocabulário. Activamente ou por omissão, tornou-se radical na defesa do intervencionismo externo. A esquerda à esquerda retomou alguns devaneios, queixando-se da crise mas olhando-a ao mesmo tempo como antecâmara da tomada do poder em nome da revolta das massas. Por ela, aceita mesmo associar-se àqueles que da democracia apenas têm uma concepção instrumental. Pelo meio, os socialistas tornam-se ainda mais pragmáticos, tudo fazendo, sem disfarce, para conservar o seu núcleo identitário mais essencial: aquele que gere a conservação do poder pelo poder. Lá atrás, e como sempre, só os comunistas permanecem iguais a si próprios, uma vez que nunca procuraram enganar ninguém com apologias de uma «Europa europeia» fundada numa democracia não adjectivada.

Nesta paisagem, a dificuldade está em nos mantermos lúcidos, na claridade, e não nos deixarmos levar pelos ímpetos. Uma vida melhor, mais digna e mais democrática jamais se construirá tomando a linguagem do instinto como princípio de comunicação.

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