O Bloco e o sentido da vida

Trostky, Lenine e Kamenev

Provavelmente escreveu-se mais nos jornais e nos blogues sobre o sentido da vida do Bloco de Esquerda durante estes dias do que nos últimos dois ou três anos. O tom tem oscilado entre o apocalíptico, o céptico e o afirmativo, conforme corresponda a uma previsão da queda do partido, à percepção da inutilidade da moção de censura do governo ou à ideia de que esta possa ajudar a separar as águas. Situo-me na terceira destas vias, embora não da mesma forma que os dirigentes do Bloco. Não me parece nada que a iniciativa possa servir para demarcar os campos e perceber de que tamanho é a direita, criando condições para uma solução política à esquerda. Já foi dito e redito o que é evidente mas algumas esforçadas declarações têm tentado negar: se a moção fosse aprovada o governo saído de novas eleições seria mais à direita; não sendo aprovada, como irá acontecer, ajudará a estabilizar a autoridade política da actual direcção do Partido Socialista. Pelo meio, a proposta impeliu muitos cidadãos descontentes com o actual governo – gente sem partido principalmente, mas também socialistas críticos e numerosos simpatizantes seus – para uma posição de admissão contrariada da continuidade de Sócrates. Porque à política do «quanto pior, melhor» – da qual, ao contrário do PCP, até agora o Bloco parecia ter-se preservado – as pessoas comuns, sobretudo as que sabem que um governo PSD desmantelará sem piedade o que ainda resta do Estado social construído depois de Abril, preferem um «p’ra pior já basta assim». ler mais deste artigo

    Atualidade, Olhares, Opinião

    Da casa do sol nascente

    95 em cada 100 cidadãos que alguma vez aprenderam, ou tentaram aprender, a tocar guitarra, passaram pelo dedilhar quase imóvel de The House of the Rising Sun. O tema gravado pela primeira vez em 1933, por Clarence e Gwen Foster, que Eric Burdon and The Animals popularizaram em 64 (já que em 61 a gravação de Dylan fora um valente fiasco). No que me toca, de tal maneira me dediquei ao treino que a canção «animal» se me tornou um bocado irrespirável. Pois acabo de receber da fonte, com um pedido de divulgação, uma nova versão dos velhos acordes. A banda hispano-franco-argentina Mégaphone ou la Mort a levar-nos de volta à velha casa do sol nascente.

    Frequentadores habituais d’A Terceira Noite têm-se queixado de falta de música. Com toda a razão. Fica pois a promessa de melhoras. Mas entretanto não se esqueçam de ir ao menu e de clicarem em VÍDEO.

      Etc., Música

      Um genocídio soft

      Todos os meses entro numa farmácia. A doença crónica, que não assassina mas amolece, força a peregrinação. Apanho geralmente com pessoas à minha frente e fico por ali à espera de vez. São quase sempre pobres ou remediados os outros clientes. Poderei frequentar a farmácia errada, mas raramente por lá vejo pessoas com aspecto próspero. Sei que muitas destas também não têm saúde, mas encontrarão sempre quem compre os comprimidos, as gotas e os unguentos por elas. Os pobres não. Os remediados também não. Esses chegam e ficam por ali, pacientes, tristes, calados ou a falarem baixinho, a contarem os cêntimos e as desgraças. Tenho reparado, e não poucas vezes, naquilo que os jornais acabam de relatar como uma novidade filha da crise: pessoas que não levam todos os medicamentos receitados porque não os podem pagar, escolhendo os mais baratos ou aqueles com os quais mais se familiarizaram. Deixando uma parte do tratamento para dias melhores, se é que algum dia esses dias virão. Outros, também já os vi, pedem «para assentar», prometendo liquidar a dívida mais tarde, quando receberem a reforma. Outros ainda pagarão com dinheiro emprestado. O preço, os lucros e as condições de acesso aos medicamentos são dos factores de injustiça e de falta de solidariedade mais perturbantes desta sociedade que vamos partilhando. Daqueles nos quais o Estado – social sem vergonha de o ser – teria a obrigação moral e política de intervir para impedir o genocídio soft e silencioso com o qual pactua por omissão. Daqueles que deveriam ter o lugar de destaque que não têm no combate político e nos movimentos sociais.

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        24 horas de felicidade

        Cairo

        Não há paciência para tanto/a profeta da desgraça a denegrir a revolução egípcia, a tentar descobri-lhe os defeitos, a contar com a intervenção dos seus inimigos, a duvidar de tudo e de todos. Claro que muito em breve surgirão recuos, divisões, falhas, traições, erros, desvios, manobras, manipulações e não sei o quê mais. São as leis da História e nós até já passámos por uma experiência idêntica. Mas tentem ser felizes durante 24 horas só por verem um povo celebrar e ser feliz por 24 horas. E por a palavra democracia ser proclamada sem complexos ou adjectivos.

          Apontamentos, Atualidade

          Equívoco

          equívoco

          Vai por aí grande alarido por causa da moção de censura ao governo que o Bloco de Esquerda irá apresentar dentro de um mês, a 10 de Março. Não vou insistir no que outros já disseram sobre os seus incontornáveis efeitos: se ela for aprovada o país cairá de mão-beijada nas mãos do PSD de Coelho; se não o for, Sócrates e o seu PS ganharão um fôlego mais. Em ambos os casos tratar-se-á de um gesto arriscado e aparatoso que serve mais o circo do que o pão. Quer isto dizer, e é isto que me parece importante, que a direcção do Bloco, continuando a centrar a sua iniciativa nas cartadas parlamentares, se foca no acessório secundarizando o essencial. Isto é, aposta mais no ruído mediático à volta da sua posição formal do que na edificação de um movimento de massas capaz de fazer perceber ao governo, aos partidos do poder e a quem do lado de cá e de lá dos Pirenéus gere o nosso futuro, que há ira nas pessoas, que mora nelas a vontade de trocarem as voltas ao destino, e que não se deve brincar com estes sentimentos. Sem menosprezo da actividade parlamentar, parte fulcral da vida democrática, estamos numa fase em que o protesto e a construção social e cultural da alternativa são muito mais úteis e necessários do que uns quantos discursos de dedo em riste. Para a vida presente e futura dos cidadãos e até para o seu estado de espírito. O Bloco é um instrumento de esperança e não deve esbanjar esse capital.

          Post-sciptum – Entretanto a direcção do BE esclareceu a sua posição sobre os objectivos da moção, apontando-a «contra a direita e contra quem governa com políticas de direita». É um redireccionamento positivo, mas as consequências práticas e a questão de fundo que este post levanta permanecem intocáveis.

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            Isto quer dizer alguma coisa

            Deolinda

            Provavelmente estará tudo dito sobre «Parva que sou», dos Deolinda. Pró, contra e assim-assim. Eu sou pró porque há muita coisa contra a qual é preciso estar. Quem já não é, ou jamais foi, capaz de pensar as dinâmicas do protesto, ou de se indignar com o que vai mal e proclamá-lo sem rodeios, inventa argumentos para desqualificar a canção. Diz que «Parva que sou» tem uma estrutura pobre, simples, sem arranjos elaborados, por exemplo. Ah, pois tem, claro que tem, mas é aí que está em parte a origem da sua pujança e da exaltação que tem despertado. A arte pode ser complexa e ter uma dimensão subversora, como toda a gente sabe, mas em democracia uma canção de intervenção, que é aquilo que esta é, tem necessariamente de ser assim simples, límpida, «dizendo coisas» preto no branco como as diz um panfleto. Não pode ser murmurada. Precisa ser directa para agitar. Diz-se também, por exemplo, que é demagógica quando declara que «para ser escravo é preciso estudar». Como se isto traduzisse um apelo ao menosprezo do valor social do ensino. Só quem já não tem pinga de capacidade para perceber os caminhos da insegurança, ou vive fechado no seu mundinho tutelado, é incapaz de entender aquilo de mau que passa pela cabeça de quem entra nas universidades com o futuro já adiado sine die e o trabalho precário ou o desemprego no horizonte. Não estive no Coliseu do Porto e só ouvi «Parva que sou» através do YouTube. Mas há muito que não pressentia por cá uma cumplicidade tão grande entre a palavra cantada, o público que a envolve, e o mundo agitado e injusto que os aguarda lá fora. De certeza que isto quer dizer alguma coisa.

              Atualidade, Música, Olhares

              Reflexos pavlovianos

              down

              Foram de surpresa as reacções diante dos acontecimentos que ocorreram nas margens sul-leste do Mediterrâneo. Como era possível tanto movimento numa paisagem que parecia suspensa no tempo para sempre? Mas depois da surpresa veio a esperança. E depois desta o cepticismo.

              A esperança fundou-se na percepção de que afinal os cidadãos dos Estados islâmicos não são apenas barbudos com os olhos raiados de sangue, militares brutais, homens ignorantes ou mulheres veladas e submissas. Vemos à frente das câmaras pessoas de todas as qualidades, principalmente jovens, em estado de revolta pura, com a aparência de terem dispensado Deus e os Mestres. Ainda há dois dias, no Público, Paulo Moura relatava a partir do Cairo: «Aqui qualquer um pode inventar uma frase e lançá-la. Não há um partido, nem um sindicato a orientar coisa nenhuma». Tudo parece uma gigantesca festa, embora todos saibamos que as festas têm uma duração limitada e acabam por doer. Mas tudo também parece valer a pena para viver um tempo no qual muitos sentem a História a pulsar. Foi o que fez, por exemplo, com que antigos activistas jordanos e libaneses – invoco dois casos reais que a prudência aconselha a não identificar – deixassem o emprego e o descanso para viajarem até ao Cairo ou Alexandria e passarem noites na rua a bater-se pela democracia. A ausência, ou pelo menos a discrição dos islamitas, contribuiu aliás para determinar o sentimento de confiança.

              Mas na opinião que vai correndo existe também o outro lado, o dos profetas da desgraça que reagem de forma pavloviana. Alguns consideram, por exemplo, que o Egipto irá inevitavelmente seguir um processo «à iraniana». Apoiados na democracia, dizem, os extremistas tomarão conta do poder, como o fizeram em tempos os seguidores do ayatollah Khomeini. Esquecem-se porém de um pormenor: essa é uma experiência com mais de trinta anos e no Irão de hoje o extremismo é claramente minoritário, mantendo-se graças apenas à ditadura. No entanto, de acordo com todas as possibilidades, um Irão mais democrático, que o povo iraniano tem vindo a reclamar, será bem mais moderado que o poder obscurantista de Ahmadinejad. Por sua vez, os actuais governantes de Israel sentem-se também bastante incomodados. Vangloriando-se, com alguma razão, de administrarem a única democracia da região, logo que um grande país vizinho pareça dirigir-se para um tempo de liberdade, esquecem os grandes princípios e o pânico instala-se entre eles, provando que convivem bem melhor com as ditaduras do que com os riscos da mudança.

              Claro que ninguém poderá excluir o pior. A sombra dos Irmãos Muçulmanos, partido da regressão e do fanatismo religioso, está no ar: depois de um alheamento inicial, procuram agora apanhar o comboio da revolta egípcia. Mas, como perguntou no Libération Laurent Joffrin, fará algum sentido que, antes mesmo de o ditador cair e de o povo egípcio exprimir de forma livre aquilo que realmente deseja, deva prevalecer o medo do que poderá vir depois de morta a esperança? Uma atitude desta natureza traduz, a par de um chocante cinismo, uma enorme falta de confiança nos valores regeneradores da liberdade e da democracia. E estes só existem se alguém, em algum momento, se bater por eles.

                Atualidade, Olhares, Opinião

                Tudo ao monte

                RSS

                Como muitos sabem, a tecnologia RSS serve para agregar conteúdos originários de diversas fontes, permitindo aos utilizadores da Internet, através de programas ou de sites vocacionados para a função, reunir num único lugar informações provenientes de serviços que mudam ou se actualizam regularmente. O sistema tem já alguns anos e é extremamente útil para quem deseje estar a par das novidades associadas a sites de notícias, a blogues, etc., sem precisar de visitá-los a toda a hora e um a um. Sirvo-me dele há bastante tempo e tenho a certeza de que se não fosse dessa forma muita da informação à qual consigo aceder passar-me-ia completamente ao lado. Já nem sei, por exemplo, ler blogues de outro modo, uma vez que é impossível visitar, semanalmente sequer, muitos daqueles que me agradam ou que me podem ser úteis. Leio então os cabeçalhos e as primeiras linhas no agregador e depois, se o assunto e o tom me interessarem, viajo até à fonte.

                O processo não me trazia problemas até há pouco tempo, mas agora as coisas mudaram. Explico-me: os computadores tablet permitem instalar agregadores – como o Early Edition ou o Flipboard, para falar dos que tenho no iPad – que se comportam como verdadeiros jornais em papel ou portais de notícias, com uma disposição gráfica e processos de leitura e de apreensão da informação idênticos aos tradicionais. Até aí tudo bem, não fora toda a informação, apesar de condicionada pelas nossas escolhas, surgir ali de uma forma algo aleatória. Significa isto que aparecem referências e notícias chegadas da BBC, da Reuters ou do El País, lado a lado, e sem hierarquia visível, com aquela que é fornecida por um blogueiro da Marmeleira ou um enragé de Almofarizes de Cima (sem ofensa para os enragés de Coimbra). Isto é, novidades provenientes de agências ou publicações credenciadas visualmente misturadas com aquilo que possa escrever, num repente e sem intermediação, um cidadão alfabetizado e infoincluído. Desconfio que isto ainda vai provocar transtornos em muitas cabeças.

                  Apontamentos, Atualidade, Cibercultura, Olhares

                  Adeus Maria

                  Maria

                  As filas, «bichas» num português de outras eras, nunca foram o meu forte. De cada vez que me meto numa um pouco mais comprida e visivelmente demorada, rapidamente avalio se se justifica a espera e não será preferível trocá-la por uma actividade mais autónoma. Nessas alturas desisto sem ponta de remorso e vou-me embora. Mas não foi isso que aconteceu naquele final de tarde de um Verão dos idos de 75, ali nas imediações das bilheteiras do Cine-Atlântico (ou teria sido no Cine-Miramar?) de Luanda. Munido de toda a paciência deste mundo e do outro, deixei-me ficar bem mais de duas horas na bicha, ou «fila» em português do século vinte e um, que dava a volta ao quarteirão. O objectivo assumido: comprar um bilhete para ver O Último Tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci. Mais do que muitas famílias, libertas da censura pelas liberdades de Abril, seguiam pacientes em formatura, visivelmente interessadas em conhecer a dimensão estética da lubrificação na fantasia sodomita protagonizada por Paul (Marlon Brando) e Jeanne (Maria Schneider). A Maria morreu hoje de cancro e só consigo recordar-me de como estava esplêndida, na pele de uma mulher jovem e desconhecida, naquela noite luandina.

                    Apontamentos, Cinema, Memória

                    Esperança e desengano

                    No Libération de hoje, Bernard Guetta sugere quatro novos vectores de desenvolvimento nos processos de mudança política a decorrerem nos Estados islâmicos. O primeiro refere-se a um despertar do Islão associado à ampliação daquilo a que chama os valores universais da democracia; o segundo diz respeito ao peso adquirido por uma juventude numerosa, descontente e impaciente, que recebe da Internet o impacto cultural da globalização; o terceiro dá um grande valor ao exemplo da actual Turquia, permitindo mostrar que islamismo, laicidade e desenvolvimento económico não são inconciliáveis; e o quarto sugere a instalação inexorável de um novo «xadrez democrático» que vai de uma esquerda activa e moderna a partidos religiosos conservadores mas capazes de superarem os sinais bestiais do islamismo. Guetta é um jornalista sénior, especialista em geopolítica, que conhece razoavelmente o universo do qual fala desta forma tão animadora, e nós, depois de habituados a olhar para aqueles territórios como inapelavelmente esmagados por ditaduras brutais e líderes religiosos todo-poderosos, facilmente olhamos as suas projecções como sinais de uma transformação positiva. Só que este optimismo em versão wishful thinking é perigoso e desarmante, pois nada nos garante que o Islão aparentemente democrático, moderno e urbano, que de repente tirou o véu e mostrou um rosto benigno, não seja rapidamente esmagado, antes ainda de deixar semente, pelas hordas de resignados, facilmente manipuláveis pelos tiranos ou pelos pregadores, que têm atrás de si séculos de uma cultura de submissão e pouco treino nas subtilezas da democracia. Por aqui, no conforto desta Europa por estes dias fria e chuvosa, esperar que aconteça aquilo que mais desejamos – deparar de repente com um Islão afável, de gravata, óculos de marca ou boné de basebol – pode levar a uma desilusão imensa. O jogo está lançado mas o desfecho é imprevisível. E como nada podemos fazer, resta-nos esperar por um bom resultado, sem sabermos muito bem qual possa ser ele.

                      Atualidade, Olhares, Opinião

                      Entre sombras e silêncios

                      Em crónica saída na revista New Statesman, o escritor ucraniano Andrei Kurkov descreveu Sussurros, de Orlando Figes, como «uma fascinante enciclopédia das relações humanas», considerando-o, a par do Arquipélago Gulag, de Soljenitsine, e dos Contos de Kolima, de Varlam Chalamov, como «um dos maiores monumentos literários do povo soviético». Não se trata de uma desnecessária hipérbole, pois esta é, de facto, uma obra soberba e claramente inovadora. Convém à partida desvanecer um eventual equívoco: este não é mais um dos muitos estudos históricos descritivos e estatísticos sobre Estaline, o estalinismo e as suas vítimas proporcionado pela abertura dos arquivos que se seguiu à Glasnost. Mergulhando nas sombras, surge antes como uma abordagem da vida diária das pessoas comuns e da forma como esta foi condicionada pela engenharia social do «homem novo». ler mais deste artigo

                        História, Memória, Olhares

                        Armadilhas do PowerPoint

                        PowerPoint

                        Fui e sou um utilizador prudente do PowerPoint. Pareceu-me desde o início um expediente útil mas potencialmente negativo, por simplificar aquilo que é complexo, por transformar com dois cliques o que é trama, o que é novelo, numa fórmula perfeita ou em rede de linhas demasiado regulares. O estilo de operação ao qual o seu utilizador recorre tem passado muitas vezes por «pedagógico» e é justamente aqui que se situa a fonte da minha desconfiança. Debati este tema há algumas semanas durante uma aula de mestrado e por um acaso – ou talvez não – dias depois encontrei na Visão uma entrevista com o jornalista francês Franck Frommer na qual este vem ao encontro das minhas dúvidas. A entrevista saiu a propósito do lançamento, pela La Découverte, de um livro de Frommer cujo título é todo um projecto: La pensée PowerPoint – Enquête sur ce logiciel qui rend stupide (O pensamento PowerPoint – Inquérito sobre este programa que estupidifica). O autor considera-o de facto um dispositivo perverso: «Dá a ilusão de criatividade, mas, ao mesmo tempo, é constrangedor. Pouco permite sair de um fio condutor linear e não favorece a interactividade. Parece muito ‘científico’ embora seja simplista. Como transforma toda a argumentação em listas de pontos, impede o debate. Inventa laços de causalidade artificiais.»

                        Algumas pessoas poderão dizer que isto é verdadeiro, mas que, em contrapartida, nas actividades da sala de aula ou durante uma conferência o recurso ao programa responde também às dificuldades de percepção dos alunos ou do público, podendo ainda, como um teleponto, ajudar o orador a ser mais claro, metódico e convincente. Existirá um grau de verdade nisto, sem dúvida. Mas podemos e devemos também colocar o problema ao contrário: não convidará a simplificação induzida pelo recurso sistemático a este dispositivo à preguiça de quem comunica e à passividade de quem ouve? não fará ela com que se vá perdendo o treino na percepção de formas complexas de pensamento e no desenvolvimento de uma capacidade retórica rica e sofisticada, integrando quem assiste num plácido e silencioso rebanho de carneiros? Sei que uma resposta cabal as estas perguntas não pode inferir-se de uma mera opinião individual, mas eu penso que sim. É quase sempre assim que acontece. E por isso vou continuar a usar o PowerPoint muito moderadamente, desligando o projector logo (ou sempre) que possível.

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                          Meio milhão

                          500.000

                          Há dois dias este blogue ultrapassou o meio milhão de visitantes. Em números mais ou menos rotundos isto significa uma média de quase 300 visitas únicas diárias ao longo de um pouco menos de cinco anos. Já a visualização total de páginas por dia, essa ronda as mil. Para um blogue a solo que quase não fala de política local, das chicanas da blogosfera, de sexo explícito ou das transferências do futebol, que mantém um registo relativamente intimista e um padrão de escrita pouco popular, não parece nada mau. Aliás, quando o número de visitantes quotidianos ultrapassa os quinhentos pigarreio um pouco e penso logo que alguma coisa não está bem. Dá portanto para as despesas. Isto é, para manter noite adentro, extorquindo horas ao sono, entre cigarros e bebidas quentes, o prazer de escrever para pessoas que se aqui entram uma vez e depois regressam é porque se sentem bem. É sobretudo para elas – algumas transformadas entretanto em amizades das verdadeiras – que segue um imenso abraço. Acompanhado de um obrigado pela companhia e pela persistência.

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                            Perderam o medo

                            perder o medo

                            Ninguém sabe que caminho tomará e até onde poderá ir a revolta popular que irrompeu na Tunísia e está a alastrar a outros países islâmicos que vivem debaixo de ditadura. A insurreição parece incontida: multidões ocupam ruas e praças, clamando de uma forma intensa, bem audível, profundamente física, por mudanças numa vida colectiva feita de privações, repressão e desespero. A repressão actua e não é afável, fere e mata pessoas, mas não parece ser capaz de conter os efeitos de uma tensão que, percebe-se agora, atingiu os limites do tolerável e acabou por explodir. Os objectivos parecem ser claros e vagos ao mesmo tempo, pois se a maioria talvez não identifique com clareza aquilo que deseja sabe muito bem o que não quer. E não quer, em primeiríssimo lugar, continuar a ver na televisão, em fotografias gigantescas, em estátuas erguidas em espaços públicos, rostos que são sinais da estagnação e da ausência de liberdade. Sim, porque a palavra liberdade é audivelmente pronunciada por muitos dos revoltosos. E a palavra democracia também.

                            Ao mesmo tempo, basta-nos seguir as notícias, ouvir os especialistas, ver fotografias e vídeos que vão chegando, para concebermos a diversidade da revolta. Na Tunísia, por exemplo, vemos muita gente da classe média, muitas mulheres e muitos jovens, manifestantes que se percebe terem um certo nível de formação. No Iémen quase só encontramos homens, invariavelmente com sinais da mais extrema pobreza. No Egipto confluem grupos e rostos muito diversos. Alguns sectores estão sedentos de democracia e de desenvolvimento, a outros preocupa principalmente a sobrevivência.  Mas seja para onde for que se caminhe, uma coisa já é certa: esta vaga de rebelião tem vindo a devolver ao mundo islâmico o respeito e a simpatia de milhões de pessoas que não fazem parte dele e dele tantas vezes desconfiam. Estas podem finalmente perceber que a «rua islâmica» não é território exclusivo de homens barbudos, prontos a degolar os infiéis que ousem duvidar da sua fé mas submissos diante dos déspotas. Centenas de milhares, milhões talvez, estão a mostrar ao mundo o que apenas há um mês lhes pareceria absurdo: que perderam o medo.

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