Chegou a vez de Jorge, Jorge Semprún (1923-2011). A Wikipédia regista-o como «escritor, intelectual, político e guionista cinematográfico». Foi tudo isso, sem dúvida, mas para várias gerações de antifascistas e de democratas europeus foi principalmente o exilado da Guerra Civil, o resistente torturado transformado no prisioneiro 44.904 do campo nazi de Buchenwald, o dirigente comunista dedicado, expulso do Partido em 1964 por divergências políticas com Dolores Ibarruri e Santiago Carrillo, e o activo e independente ministro da Cultura de Felipe González. Como escreve o El País no seu obituário, «construiu a sua obra literária com os fragmentos da sua própria memória e nela reside, por isso, a recordação dos factos e dos sentimentos de uma vida marcada a fogo por todas as barbáries modernas.» De si próprio disse Semprún em Adiós, luz de veranos…, parafraseando Baudelaire, «tenho mais recordações do que se tivesse mil anos». Há três dias, na última colaboração que enviou para o diário madrileno onde escrevia habitualmente, recordou a última viagem a Buchenwald, realizada havia pouco mais de um mês, já em precárias condições de saúde e sabendo por isso ser a derradeira: «Ahí, en un antiguo campo de concentración nazi convertido en prisión estalinista, es donde debemos celebrar la Europa democrática. Contra todas las amnesias.»
Na Crimeia
Half a league, half a league, / Half a league onward,
All in the valley of Death / Rode the six hundred.
“Forward, the Light Brigade! / “Charge for the guns!” he said:
Into the valley of Death / Rode the six hundred.
Alfred Tennyson, 1885
Comecei ontem Crimea: The Last Crusade, o último livro de Orlando Figes, que comprei em versão e-book para poupar espaço na estante e descansar algum músculo, pois sempre são mais 600 páginas. Leio-o pelo prazer de saber mais sobre um acontecimento que conheci cedo, através de descrições em «livros de quadradinhos», e me atraiu logo por situá-lo então num território vagamente epopeico de acção e aventura, com episódios como a Carga da Brigada Ligeira, durante a batalha de Balaclava, o cerco de Sebastopol ou a acção humanitária de Florence Nightingale. Mas leio-o também por poder seguir de novo um historiador que tem o dom raro e invejável de combinar o rigor e a profundidade da pesquisa com uma capacidade narrativa absolutamente magnética. ler mais deste artigo
Seis notas actuais
1. A vitória da direita – ou do centro-direita, como preferem os benévolos – era esperada, mas foi bem mais ampla que o previsto. É verdade que a abstenção, somada aos votos brancos e nulos, também foi elevada, mas, queira-se ou não, e se contarmos também com os votos no PS, os resultados referendam a manifesta convicção da grande maioria dos eleitores de que as medidas de austeridade impostas do exterior são péssimas mas inevitáveis.
2. Ao contrário, a esquerda que se autoproclama consequente foi incapaz de provar o inverso e de apresentar propostas nas quais uma parte substancial dos cidadãos pudesse confiar como algo de realmente possível, e não apenas de vagamente desejável. Permanecem quase sempre ideias imprecisas sobre futuros melhores sem a apresentação de programas concretos – não a de meros cadernos reivindicativos – e de alianças no terreno capazes de produzirem uma governabilidade à esquerda.
3. A CDU ganhou pouco mas segurou os seus eternos 7 ou 8%. No entanto, festeja com grande alarido o facto de ter «mais força». Às custas do Bloco de Esquerda, como parece evidente. É preciso dizer mais alguma coisa sobre o grande futuro desse indefinido projecto de um «governo patriótico e de esquerda» hegemonizado pelo Partido Comunista Português que ninguém percebe o que seja, como se pode construir e o que nos propõe?
4. O Bloco agiu muito mal na gestão política da crise financeira e no ensaio «a pedido» de uma aliança com o PCP, e isso pesou na deslocação de voto de muitos dos seus agora ex-eleitores. Mas, acima de tudo, diante da alternativa entre um «socialismo verdadeiro» e um «comunismo moderno», tombou para o segundo lado, quando o seu campo natural e o espaço por onde poderia e poderá crescer e afirmar a sua identidade é e será sempre o primeiro.
5. A alternativa futura passará sempre por um PS pós-Sócrates renovado, que corte assumidamente com o modelo neoliberal e erradique tanto quanto possível o caciquismo que o consome e lhe mina o prestígio. Em convergência com um Bloco que se decida entre as duas vias e alije de vez o fardo tardo-leninista que ainda carrega, assumindo o seu papel de partido democrático e europeu, e, ao mesmo tempo, regressando quando necessário à «política de causas» que lhe deu identidade. E com um PCP que perca de vez a cisma da hegemonia «da classe operária», rompendo também com o projecto estatista e totalitário do qual não se viu ainda livre. Isto custa e demora, mas não é impossível, devendo todos mostrar serem capazes de transigir em algumas coisas. Não para unir – esse é um princípio errado e perigoso, com péssimas provas dadas – mas sim para aproximar.
6. A luta social não pode abrandar, mas no plano político e organizativo é melhor a esquerda à esquerda lamber as feridas, reflectir sobre o acidente sem pôr a culpa sobre os ombros dos eleitores mal-agradecidos – como já hoje vi fazer –, e começar a tratar da cura, do que cair na tentação da fuga para a frente, prego a fundo e fé «na luta», isolando-se no plano social e dilatando o tempo de espera para ser possível a construção de uma alternativa de governo capaz, credível e mobilizadora.
Adenda: Votei neste domingo – como o tenho feito desde a sua fundação, mas admito que desta vez com algumas reservas – no Bloco de Esquerda. Daí também a minha preocupação. Regressarei mais desenvolvidamente a alguns destes tópicos.
O romeno que admirava Salazar
Em 1941, Mircea Eliade, o professor e escritor reconhecido como um dos fundadores da história moderna dos mitos e das religiões, foi nomeado adido cultural e de imprensa junto da embaixada da Roménia em Lisboa. Por aqui se manteve até 1944, vivendo por isso em Portugal um dos períodos mais agitados da história europeia do século passado, incluindo-se nesta agitação a vivida então no seu conturbado país, cujo governo por essa altura colaborava activamente com a Alemanha de Hitler. Nesta «terra incógnita» para o romeno comum, vem encontrar um «oásis de tranquilidade», e uma acalmia na sua própria vida, que rapidamente associa à lógica de funcionamento do Estado Novo, ao padrão de vida que este impõe à sociedade portuguesa e à figura tutelar, aos seus olhos providente e benevolamente paternal, de Oliveira Salazar. ler mais deste artigo
Uma história falada
É cada vez maior o número de trabalhos sobre a história recente – a nossa e a dos outros – que recorrem ao depoimento oral como fonte absolutamente decisiva. A tendência não é nova, uma vez que se tornou patente já em meados do século XX quando a irrupção prática e metodológica da abordagem histórica do presente forçou a uma revisão do pressuposto, ainda dominante entre as duas primeiras gerações da Escola dos Annales, segundo o qual um corte com o passado seria garantia essencial para se chegar a um conhecimento seguro do passado. Esta legitimação da oralidade não foi, de início, nada consensual entre a comunidade dos historiadores, para quem os testemunhos, materializados em entrevistas necessariamente mediadas pelo investigador, eram por vezes considerados fantasiosos e tomados como factor negativo de «subjectivação do passado». Jogando um papel decisivo neste processo, os primeiros estudos sobre a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto cedo mostraram que, ao contrário, esse instrumento representa uma forma de recuperação do vivido que nenhum outro documento, seja ele um diário, um relatório, um livro ou uma imagem, está em condições de colocar à disposição dos investigadores e dos leitores. ler mais deste artigo
As eleições na óptica das bases
Uma questão de perspectiva.





Feminismos em Portugal
Uma ideia disseminada considera que o percurso dos feminismos, ou pelo menos o da sua presença visível e com impacto público, é em Portugal relativamente recente, circunscrito às duas últimas décadas do regime democrático. Feminismos – Percursos e desafios, um livro de Manuela Tavares publicado há poucos meses, vem provar o equívoco desse juízo injusto e apressado, mostrando, precisamente em sentido contrário, que o rasto dos movimentos promotores dos direitos das mulheres é afinal razoavelmente dilatado e tem uma agenda própria. Duas das razões que determinaram esse erro de perspectiva são anotadas logo no início da obra: de um lado, a possante influência do regime autoritário do Estado Novo, vinculado a «uma ideologia de submissão das mulheres» que silenciou as ténues mas reais posições de natureza emancipatória projectadas durante a Primeira República; do outro, o peso do «pensamento dogmático das esquerdas políticas», que não souberam «captar a dimensão plural dos feminismos» e aquilo a que a autora chama «as contradições de género na sociedade», sistematicamente subsumidas na lógica da unidade na acção. ler mais deste artigo
queixa não censurada de um democrata do ano inteiro
sei que não são todos iguais, mas a excepção faz a regra. não gosto, não gosto mesmo, de políticos em campanha. por muito honestos que sejam ou aparentem ser, nas suas propostas como nas suas vidas, existe sempre um sorriso a mais, uma palmada nas costas que parece supérflua, um beijinho claramente excedentário, um panfleto que se impõe a contragosto, um cheiro, ainda que ténue, a axila e a demagogia do qual bem podemos prescindir. pior ainda é o espectáculo dado por muitos daqueles que os recebem lá na terra ou no bairro. com banda trajada a preceito, criteriosas palavras de circunstância e uma incontida alegria artificial, lá estão eles nas praças e nas ruas à espera do audi, vestidos de varinas, de bombeiros, de moços-forcados, de noivas minhotas, de judocas, de meio-maratonistas, de zés-pereiras, de mulheres partidárias, de jovens jotas, de povo-povo, com lenço e boné a condizer com a cor da bandeira. e há depois os mega-almoços, com cantores entre o proto-pimba e a pós-intervenção, copos de plástico atestados de sumol de ananás, croquetes marados, feijoadas mete-nojo, azeitonas manhosas e pães com manteiga que todos enfiam na boca atulhada enquanto se tratam por companheiros, por camaradas, por ó pá, ó doutor, ó engenheiro, olhe qu’agora é que vai ser. as campanhas, digo-vos eu, deviam ser interditas a grandes grupos. afinal sempre há a televisão, a internet, os jornais, a caixa do correio, a sessão de esclarecimento, os outdoors identificados, ou o contacto porta-a-porta como o fazem os mórmones, as testemunhas de jeová, os angariadores da cabo-tv e os mordomos das festas da padroeira. deveria criar-se um serviço grátis de desintoxicação eleitoral. e uma ponte aérea para que todos nós, os democratas do ano inteiro, pudéssemos emigrar nestas alturas para uma estância termal nas ilhas faroë. retornando, claro está, a tempo de votar em quem merece. ou quase.
Contra e por
Indignai-vos!, o livro-libelo de Stéphane Hessel, tem servido para defender que a mudança de um real injusto, tantas vezes imposto como inevitável, começa pela capacidade de nos indignarmos perante os poderes que o determinam, rebelando-nos contra eles. E tem servido também para municiar uma insurreição pacífica contra as vozes «que só apresentam como horizonte à nossa juventude uma sociedade de consumo, o desprezo pelos mais fracos e pela cultura, a amnésia generalizada e a competição renhida de todos contra todos». Hessel, hiperactivo aos 93, acaba entretanto de publicar um novo livro, Engagez-vous! (Comprometei-vos!), constituído por uma conversa com o diplomata Gilles Vanderpooten ao longo da qual menciona o beco sem saída no qual pode cair a indignação pela indignação. Defende que esta deve unir-se obrigatoriamente a uma noção de compromisso, de empenhamento para produzir algo de concreto, de objectivo, superando a pura negação através de propostas capazes de unirem e de estimularem uma mudança consistente. «Enfadar-se apenas», diz Hessel numa entrevista ao El País, «não tem sentido para mim», acrescentado que a pura ira «não conduz a parte alguma, deve ser seguida de compromisso.» Uma sugestão vinda de quem anda há quase oito décadas envolvido no combate político e social e claramente dirigida a quem se aplica, criando condições para o rápido retrocesso e a depressão pós-revolta, a indignar-se sem apresentar propostas consistentes e sem dialogar com quem é possível dialogar, de modo a gerar as empatias que autorizam a verdadeira mudança. Um aviso para quem se preocupa principalmente com o «contra», descurando o «por». A indignação pura que leva ao protesto – vemo-lo claramente por estes dias, como há muito não acontecia – é por vezes urgente, dramática, imperativa, mas não pode ser um fim em si. Sob pena de se autodestruir e de levar consigo aqueles que lhe dão a voz.
Na arqueologia do contemporâneo
Parece uma extravagância e provavelmente é-o, mas comecei há uns anos a coleccionar palavras a caírem em desuso. Não me refiro às de um arcaísmo patente, já só conservadas em livros, jornais e cartas antigas, mas sim àquelas que ainda são utilizadas e das quais se servem apenas algumas pessoas das gerações mais velhas, membros de determinados agrupamentos políticos ou cidadãos socialmente agregados por certas práticas e rituais. Apenas um exemplo: a palavra «larápio», à qual ninguém recorre agora quando quer nomear o ladrão, pouco me interessa, mas «gatuno», que já só aparece nas imprecações dos estádios de futebol – naturalmente dirigidas ao infeliz árbitro da partida e intercaladas com ofensas à sua progenitora – ou no discurso político da direita e da esquerda mais arcaicas, é um must. Talvez este seja um tique profissional, forçado que estou a seguir, se não se quiser tornar-me críptico para quem me ouve em aulas e seminários, a mudança cada vez mais veloz e ziguezagueante dos vocábulos e dos seus sentidos.
Entretanto iniciei outra colecção. Desta vez a dos gestos que estão a evaporar-se ou deixámos de encontrar no dia-a-dia deste lado de cá do hemisfério norte. A primeira peça da colecção retirei-a de um filme dos anos 50, a preto e branco, visionado ao acaso no YouTube. Ela documenta o hábito cada vez mais proscrito de fumar fazendo desse acto uma parte importante do jogo social: aquele modo único, pouco higiénico mas que funcionava como marca de à-vontade, de estilo, por vezes de provocação, de apagar o cigarro, dentro de um café, no hall do cinema ou numa repartição pública, atirando-o ainda incandescente para o chão e esmagando-o sem piedade com o tacão ou a sola do sapato. Uma marca de macho ou de «mulher da vida» que, se repararem, quase desapareceu do nosso horizonte. Tal como engraxar os sapatos em público, cuspir para o lado sem qualquer aviso, usar um pente no bolso posterior das calças e servir-se dele com regularidade, limpar os ouvidos com o mindinho ou tamborilar com os dedos em cima do balcão do bar enquanto se espera pela cerveja gelada. Espera-me pois uma missão na arqueologia do contemporâneo. Pouco urgente, mas uma missão.
Outra margem
Se A Terceira Noite se ocupa com a cidadania activa, o movimento das culturas e o curso do quotidiano, heterodoxias|21 é diferente. Dedica-se principalmente ao debate das experiências que expõem a diversidade dos modos e a contestação do uno no território das ideias e da criação. Está aqui e é grátis.
No cinema com Hector Barbossa
Como gosto de filmes de «entretenimento, acção, aventura» e tenho um especial carinho pela figura ficcional do pirata – bem mais pela ficcional do que pela histórica, embora também possamos reconhecer piratas dos verdadeiros com um trajecto assombroso – fui ver «Por Estranhas Marés», o quarto filme da série O Pirata das Caraíbas, desta vez dirigido por Bob Marshall. Resultado: uma desilusão profunda, uma irritante experiência de tédio e a sensação pós-visionamento de 10 euros e 137 minutos de vida esbanjados. A movimentação dos actores, puramente coreográfica, tem algo de jogo para PlayStation, e provavelmente será essa mesmo a ideia, já que deparei, por comparação com os anteriores episódios, com uma clara infantilização do argumento, dos personagens e dos diálogos. Estes são agora deploráveis, primários, com tudo «bem explicadinho», prontos para um público pouco exigente e não preparado para subtilezas e citações. As sequências amorosas – as do casto missionário com a sereia ingénua, ou as que envolvem Johnny «Sparrow» Depp, desta vez com os maneirismos do personagem exagerados até à caricatura, e uma Penélope Cruz que aqui mais parece uma esforçada actriz de teatro amador – são de um bocejo indescritível. E a piorar a experiência, um inquietante sinal dos tempos: como é possível fazer um filme de piratas sem tabaco e quase sem álcool? Salva-se a intervenção da única personagem que conserva uma certa dignidade «pirática» e que é desde o início da série a minha favorita. Sim, refiro-me ao imprevisível, bem-humorado, e tão canalha quanto generoso, Capitão Hector Barbossa, de novo interpretado por Geoffrey Rush, que é de longe o melhor actor de todo o casting. Se querem mesmo ver o filme, então abstraiam-se do omnipresente Jack Sparrow – agora tão enjoativo quanto as pipocas do espectador da fila da frente – e sigam as pisadas do «perna de pau».
Escadas pintadas
Três curtos parágrafos sobre o «caso» da pintura das Escadas Monumentais da Universidade de Coimbra com propaganda eleitoral do PCP-CDU e da manifestação canalha e desproporcionada de uns quantos estudantes universitários, de negro trajados e com o estranho apoio da direcção da Associação Académica, que para a contestar se lhe seguiu.
Qualquer pessoa com alguma sensibilidade estética e sem uma perspectiva politicamente utilitarista que realmente tenha visto a «obra» – já ali projectada, aliás, noutras ocasiões eleitorais – sabe que não é um primor visual. Apesar de ser absolutamente legal, tal como a CNE acaba de confirmar, seria no entanto escusada, uma vez que se trata de propaganda algo agressiva, que com aquelas proporções é ecologicamente desajustada ao local. Não importa quem a realizou: se fosse o Bloco de Esquerda ou o CDS, a situação seria rigorosamente a mesma. Falamos não de um mural mas de uma pintura sobre a via pública, num local de passagem inserido na malha urbana da Universidade, onde todos os dias circulam obrigatoriamente muitos milhares de pessoas de todas as tendências ou opiniões, que não deveria sofrer intervenções desta natureza. Aliás, também não me agradaram as criações pseudo-artísticas e de diferentes origens que ali foram realizadas noutras alturas. Em causa está sobretudo o facto de se tornarem por vezes tão fortes, tão impositivas, tão «gritadas», que impedem os cidadãos de cruzarem a área de forma clean, fazendo a sua vida normal na fruição de uma cidade já de si bastante martirizada no equilíbrio das formas e dos espaços.
Todavia, a posição tomada pelo grupo de estudantes, que se serviu do facto para boicotar um comício do PCP-CDU, já me parece oportunista e absolutamente condenável. Foi, aliás, feita não em tom de crítica, mas sim sob a forma de gritos e de impropérios ofensivos, fazendo com que se perdesse a razão que poderia ser reconhecida a qualquer reparo. Já a posição da organização em causa, ou de alguns dos seus defensores, também foi exacerbada e num desajustado mas recorrente estilo «vitimizante». A mim, o que aconteceu parece antes uma mera expressão de parvoíce e de incultura democrática, vinda aliás de núcleos dessa estúrdia estudantil que nos anos oitenta os próprios estudantes da JCP, antecessores dos actuais, talvez sem o querer ajudaram a recriar. Mas essa é outra história, que fica para melhor altura.
Srebrenica
A capa do Libération de hoje, sobre a captura do general sérvio bósnio Ratko Mladic, o «carniceiro de Srebrenica», é um valente murro. Mas convém levar com ele no estômago para não esquecermos e fazermos de conta que não é connosco.
Indiferença e indignação
Circulam ventos contraditórios. Em sociedades bloqueadas e em estado crítico como aquela em que vivemos, a indiferença e a indignação crescem de forma rápida e significativa. Nada garante no entanto que elas não possam encontrar-se. E que desse encontro não resulte, como já aconteceu no passado, algo que pouco ou nada tenha de bom.
A multiplicação das manifestações, dos movimentos, dos blogues, das petições, dos acampamentos em praças, dos grupos activos nas redes sociais, engana um pouco. Ela congrega um grande número de pessoas, sem dúvida. E aquilo que estas fazem é importante, tem quase sempre motivos fortes e compreensíveis, mas nem por isso elas deixam de constituir uma imensa minoria. À lógica da indignação, ainda há pouco gritada pelo veterano Stéphane Hessel, sobrepõe-se então a dinâmica negativa da indiferença, associada ao desânimo e por vezes à depressão. Basta sair do círculo activista e falar com jovens universitários, para ver como a generalidade permanece desinteressada, se não ignorante, das dinâmicas da mudança e das possibilidades de redenção. A energia negra do neoliberalismo anestesiou as consciências, enquanto uma democracia pobre instalou a convicção de que cada um se deve procurar desembaraçar por si, de que as dinâmicas solidárias são um mal ou mesmo um perigo, de que a política é uma selva povoada de oportunistas e de que é impossível fazer alguma coisa contra isso. ler mais deste artigo
Tecnologia e conflito
Num artigo da Wired de Junho que saiu ontem, o autor, Brendan Koerner, dialoga com um leitor, real ou forjado, que lhe conta ter sido repreendido por um estranho pelo facto de usar o seu iPad num autocarro nova-iorquino, o que o transformaria, de acordo com as palavras um tanto irritadas desse estranho, em alvo potencial, e provavelmente justificado, de um assalto ou mesmo de uma tentativa de homicídio. Nem tanto pelo valor monetário do aparelho, que ainda assim seria fácil vender numa rua menos iluminada por quaisquer 500 dólares, mas antes pelo que representava para o potencial agressor a exibição de uma tecnologia que significa conhecimento, mobilidade e acesso a universos de comunicação infinitos e desejáveis. A repreensão parece fazer sentido, tal como o perigo invocado se afigura verdadeiro, remetendo-nos para um território de violência, urbana e selvagem, no qual pode tornar-se difícil gerir a própria integridade física.
Utilizador regular e intensivo dos aparelhos de comunicação e lazer da tríade i da Apple, percebo o perigo e o mal-estar que esse uso pode causar aos outros. Apesar deles me servirem como instrumentos de trabalho, já me tenho inibido de usar em público o iPad ou o iPhone – o iTunes, o único exclusivamente voltado para o lazer, é o mais humilde de todos e passa facilmente por tecnologia barata – justamente por perceber o seu uso como uma potencial agressão aos cidadãos com quem partilho a sala de espera do centro de saúde ou a gare da estação de comboios. Aquilo que me preocupa, porém, não é ocorrência ocasional da situação, na expectativa desta poder ser alterada pela melhoria das condições de vida e de acesso à tecnologia por parte da maioria das pessoas. É antes a consciência de que, no tempo que agora passa, o fosso entre os que têm muito ou o suficiente (em dinheiro, informação, capacidade para comunicar, direito aos sonhos) e os que nada disso podem ter ou sequer desejar, tende a aumentar, produzindo situações de conflito. Criar-se-á então, numa situação extrema, a necessidade de, para usarmos um aparelho que serve para nos ligarmos aos outros, precisarmos de isolamento em ambientes reservados. Já é assim em Calcutá, no Rio ou em Lima. Provavelmente, em breve assim será aqui também.
70 (Don’t Look Back)
Vamos lá a uma cena um bocado retro. O ano era 1968, com toda a certeza. Do mês não me recordo bem, mas sei que tinha faltado às aulas para ir à matinée. Como já estava um bocado de calor, podemos supor que era Maio. Soa bem contar que isto aconteceu, e provavelmente aconteceu, no final de uma tarde de Maio. De 68. Um casal de namorados, que se tinha sentado umas filas à frente, não aguentara as desafinações de Bob Dylan em Don’t Look Back e fora-se embora a resmungar em surdina. O projeccionista escondia-se no seu cubículo, protegido pelo foco de luz. O arrumador desaparecera. E enquanto em Paris se erguiam barricadas e se marchava pelas ruas aos gritos – «Ce-n’est-q’un-début-continuons-le-combat!» –, fiquei absolutamente só, espectador único na sala escura de um cinema de província malcheiroso e desconfortável, a imaginar mundos possíveis. No Verão, estava decidido, iria estoirar as economias a comprar uma guitarra e uma harmónica. E mudaria de vida. Eu tinha quinze anos e Robert Allen Zimmerman, o rapaz do ecrã, raios o partam, deus o abençoe, faz hoje 70.
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Esboços da utopia
originalmente publicado em heterodoxias|21
O governo soviético da década de 1920 foi o primeiro da História a deter um poder de tal forma pleno e colossal que lhe permitiu conceber de raiz redes de grandes bairros e até cidades inteiras, determinando rigorosamente o número, a dimensão e o desenho dos edifícios e das ruas, bem como a taxa de ocupação em cada área ou estrutura. Podia também escolher sem constrangimentos onde construir, como projectar o crescimento, como articular os novos espaços dentro de um equilíbrio idealizado entre a cidade e o campo, chegando a conceber e tipificar o aspecto, a exacta localização e mesmo o pormenorizado funcionamento das fábricas, dos escritórios, das escolas, dos hospitais, dos armazéns e dos edifícios destinados à habitação. O planeamento urbano num Estado todo ele planificado – que foi aquilo em que a Rússia soviética se transformou a partir de 1928 com a entrada em funcionamento do 1º plano quinquenal – não era uma ocupação menor; tratava-se, de facto, de organizar em larga escala e a partir da base, num esforço de design macro-comunitário, todo um universo que se pretendia radicalmente novo e profundamente dinâmico. Diante de tal projecto, como não compreender o entusiasmo dos quadros políticos, engenheiros, arquitectos, economistas ou geógrafos a quem foi atribuída essa tarefa gigantesca? ler mais deste artigo