Estão a ver aquela criatura alienígena, altamente agressiva, que persegue e mata a tripulação de uma nave espacial no filme Alien, o 8º Passageiro, dirigido em 1979 por Ridley Scott? No enredo, a única forma de lhe sobreviver é destruí-la, já que na sua matriz estão uma agressividade congénita e uma vontade de morder, de matar, impossíveis de controlar, só saciadas do sangue e da carne de um ser humano se encontrarem outro a quem decepar, trucidar, mastigar e sorver. Agora imaginem que o realizador do citado filme de ficção científica era português e chamara Toninho ao monstro intergaláctico. Seria inevitável que em relação a um eventual desejo de vingança pelos crimes que este cometera se contrapusesse, entre os espetadores, um sentimento de culpa por num certo momento lhe quererem mal. Para mais sabendo-se, como se sabe, como quase todos os rapazes maus homónimos, os Toninhos humanos deste mundo, são recuperáveis, desde que se lhes dê, independentemente de serem ou não psicopatas, a dose certa de carinho e mais uma oportunidade. ler mais deste artigo
Ainda Hobsbawm
O desaparecimento no passado outubro do historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012) teve uma repercussão mediática à escala do impacto do seu trabalho. O longo e ativo trajeto profissional contribuiu em larga medida para o quinhão de reconhecimento que determinou esse eco, mas o que ampliou o reconhecimento público que obteve foi principalmente o facto de, como poucos na sua área, ter contribuído para levar o interesse pela dimensão explicativa da História até um conjunto amplo de colegas de outras áreas de saber, de estudantes de diferentes gerações e de leitores ávidos, que sem a sua ajuda mais dificilmente teriam voltado para aí os seus horizontes. Conseguiu-o através de dois aspetos particulares do seu trabalho: o primeiro foi a multiplicidade dos temas pelos quais se interessou, trazendo para a academia, sem descuidar outros mais canónicos, assuntos até então proscritos, como o papel criador dos bandidos e dos rebeldes, a vida verdadeira «dos de baixo», a formação do universo do jazz, o retorno dos nacionalismos ou os modos de «invenção da tradição»; o segundo aspeto prende-se com o facto de, em A Era dos Extremos, uma das obras mais lidas e recomendadas sobre a história humana recente, ter defrontado as cronologias tradicionais definindo um «breve século XX» balizado, entre 1917 e 1991, pelo impacto mundial da Revolução Soviética, do seu apogeu, estabilização e queda. Ao mesmo tempo, a elevada qualidade da sua capacidade narrativa permitiu-lhe ir conquistando para o território do conhecimento histórico um público não-especializado, motivado acima de tudo pelo prazer da leitura. ler mais deste artigo
A responsabilidade da Samsung
Volto ao caso público do vídeo da Samsung que se tornou viral e inflamou uma parte do país nas últimas 24 horas. Em verdade digo, a quem nunca teve desejos fúteis e fetiches por objetos, que atire a primeira pedra à jovem Filipa «Pépa» Xavier por esta ter revelado como maior desejo para 2013 a aquisição de uma mala. Não uma mala qualquer, claro, mas uma daquelas pretas da Chanel, modelo Timeless Classic, que, para além de medonha (gostos não se discutem) e pouco prática, ascende a um custo, consoante o tamanho, que ronda entre os 2990 e os 3750 euros. Se volto a este episódio completamente banal é por me parecer terem os jornalistas e comentadores que o abordaram interpretado a partir do lado errado a onda de gozo e indignação que rapidamente o envolveu. Não, estão enganados, aquilo que caiu mal a muitas pessoas não foi o facto de a moça ter uma certa «gana de mala», que a própria, aliás, reconheceu logo como algo consumista. Nem sequer o ter proclamado publicamente tal raça de apetite num tempo em que a maioria dos portugueses faz contas, ou começa a fazê-las, ao dinheiro para pagar as necessidades mais elementares. Caiu mal e tornou-se confrangedor, sem dúvida, aquela exibição obscena, pretensamente estilosa, de tolice e de falsa politesse, mas o que aconteceu de realmente grave tem passado ao lado dos comentários. Apesar de ser tão simples detetá-lo. Grave e inaceitável foi antes, foi mesmo, o facto de uma empresa como a Samsung apresentar como modelo de um certo charme e como instrumento de apelo à compra dos seus produtos a exibição despudorada de uma total ausência de sensibilidade social.
Nós, albaneses
Apesar de já ter sido mais usada, a palavra «albanização» continua a fazer o seu curso no vocabulário político ordinário. Originalmente, reportava-se a uma vinculação às características do Estado albanês nos tempos da República Popular, proclamada no final da Segunda Guerra Mundial e governada com pulso de ferro por Enver Hoxha e o seu Partido do Trabalho. O território da Albânia, outrora local de um trânsito, nem sempre pacífico mas ruidoso e constante de povos muito diversos, servira de base de apoio nos Balcãs aos fascistas italianos e depois aos nazis. Expulsos estes, passou, após curto período de conflito civil que levou os comunistas ao poder, a fechar-se completamente ao exterior. Uma situação ampliada a partir de 1948 com a rutura completa com a Jugoslávia, à qual se seguiria, em 1961, o corte de relações com a União Soviética, e depois, em 1978, o distanciamento da China. A «albanização» tomou então dois rostos complementares: exprimiu, por um lado, a dimensão de um «Estado-pária», fechado sobre si próprio e que procurou viver de forma autossuficiente, na ignorância das mudanças que ocorriam à sua volta; e por outro, em consequência desses limites e do caráter totalitário do regime, marcou também a instauração de uma política interna de rígida contenção do desenvolvimento económico, cultural e social e de efetivo limite dos direitos individuais. ler mais deste artigo
Portugal, gare de partida

Há pouco mais de um século a figura do «brasileiro», o ricaço fanfarrão recém-chegado do lado de lá do Atlântico, com fortuna incerta, feita de astúcias e aparências, ou efetiva, reunida sabe-se lá como, era notória na paisagem das nossas aldeias, vilas e pequenas cidades. Não que a sua presença fosse significativa em termos demográficos – de facto, surgia um aqui, mais dois acolá, um outro um pouco mais além – mas porque o seu porte extrovertido e esbanjador, e também o seu comportamento moralmente dúbio e um tanto pacóvio, se faziam notar em ambientes nos quais dominava o recato do fato escuro e a moderação dos gastos pessoais e das atitudes públicas. Na literatura portuguesa da segunda metade do século XIX, a pícara personagem surge em múltiplas obras, tendo sido Camilo quem dela traçou retratos mais ásperos e impiedosos, embora forçosamente caricaturais. ler mais deste artigo
Filosofia ao domicílio |4
No quarto post da série, a obra destacada é Tempo e Narrativa, publicada em três tomos, entre 1983 e 1985, pelo pensador francês Paul Ricoeur (1913-2005).
Aberto a todas as filosofias, o pensamento de Paul Ricouer procurou dialogar com as diversas influências que o formaram, esforçando-se sistematicamente para diluir as oposições que entre elas pudessem existir. É no entanto na ação humana que se encontra o fio condutor do seu trabalho. Órfão a partir dos dois anos, Ricoeur interessou-se desde muito cedo pela questão do sofrimento, do mal e da culpa. Nos anos 30 descobriu Edmund Husserl, cuja obra ajudou a divulgar em França através da tradução das Ideias Orientadoras para uma Fenomenologia, que o filósofo checo-alemão havia publicado em 1913. A marca deixada pelo seu pensamento na teoria da fenomenologia será profunda. No entanto, para Ricoeur a filosofia não era uma atividade de natureza narcísica. E foi por isso que o seu espírito de abertura foi também de abertura para aquilo que se passava fora do campo mais específico da sua disciplina. ler mais deste artigo
As duas vias da alternativa
Se não quisermos naufragar no desânimo, temos de mudar de agulha, de procurar outra rota. O empobrecimento da maioria das pessoas, a diminuição do papel social do Estado, o crescimento brutal do desemprego, a redução progressiva das liberdades e dos direitos, a instalação de um clima de medo e descrença, a desconfiança dos cidadãos em relação aos seus governantes, a desvalorização do ensino e do conhecimento, o menosprezo pela criação e pelos criadores, a ausência generalizada de expectativas, a destruição apressada de tudo aquilo que de positivo foi erguido sob o regime democrático, exigem dos cidadãos cientes desta desgraça uma atuação rápida e enérgica. A construção de uma alternativa ao atual governo, mas também de uma mudança clara em relação às lógicas de sistema que delapidaram os dinheiros públicos, instituíram o «aparelhismo» rotativista partidário como princípio de governo e desvalorizaram a democracia. Esta é uma necessidade que ganha, visivelmente, um número cada vez maior de adeptos entre os convictos de que não será com o fatalismo, a desistência e a depressão coletiva que se poderá inverter a situação. Que se poderá voltar a viver num país minimamente justo e com um lugar para a dignidade e a esperança. ler mais deste artigo
Os novos bárbaros
A palavra «bárbaro» deriva, como é sabido, do grego βάρβαρος, significando «não grego». Era dessa forma que os antigos helenos classificavam os estrangeiros e todos os povos cuja língua não era a sua. Começou por ser uma alusão aos persas, cujo idioma de toada gutural entendiam como um estranho e indecifrável «bar-bar-bar». Por extensão, também os romanos foram por eles designados como bárbaros. Depois, já sob o Império Romano, a expressão passou a ser utilizada com a conotação de «não-romano» ou de «incivilizado», aplicada em primeiro lugar aos hunos, aos celtas e aos diferentes povos germânicos, cujo comportamento, reputado como brutal e cruel, era inexplicável e totalmente fora dos parâmetros da sua matriz cultural, parecendo bastante ameaçador. A palavra foi-se mantendo entretanto, ao longo dos séculos, no léxico ocidental. Apesar de contestável na sua dimensão etnocêntrica, o seu uso superou em algumas significações este limite, para se vincular negativamente à classificação de todos aqueles que se opunham, recorrendo à violência ou pela força da ignorância, ao que parecia serem as conquistas partilhadas da humanidade. Ajustado, sucessivamente, a todos os que se afastavam de um ideal de paz, de bem-estar, de saber, de liberdade, de igualdade, de proteção dos mais fracos, de supremacia do interesse da comunidade ou coletivo, de defesa do indivíduo frente ao pensamento único e a todas as modalidades de opressão, de desrespeito das minorias, dos excluídos, dos mais pobres e mais fracos. ler mais deste artigo
Depardieu já não mora ali
Com aquele perfil de Napoleão Bonaparte aquilino, sorridente e bem nutrido, visivelmente menos dado a cavalgadas e a batalhas que o original, Gérard Depardieu, 64 anos, grande ator, realizador episódico e agora empresário de sucesso, oferecia-nos, até há pouco tempo, uma excelente representação visual do «verdadeiro francês». No ecrã, foi o Conde de Monte-Cristo. Foi D’Artagnan. Foi Porthos. Foi Mazarino. Foi Cyrano de Bérgerac. Foi Jean Valjean. Foi até o gaulês Obélix. E ficou para sempre, já do lado meridional dos Alpes, como o inesquecível Olmo Dalco, protagonista pobre do 1900, de Bertollucci. Durante anos viveu também como um homem de causas, tendo apoiado em 1987 a reeleição de François Mitterrand, que lhe aplicou na lapela o emblema da Legião de Honra.
Entretanto engordou bastante, tornou-se empresário vinhateiro e hoteleiro de sucesso, investiu empenhadamente na bolsa, e, em 2007, passou-se para o outro lado da História, apoiando a eleição, e depois a frustrada reeleição, de Nicolas Sarkozy. Pelo meio foi-se tornando um Olmo bem-sucedido na vida, arrivista e colérico, e de tal forma podre de rico que foi um dos alvos da lei Hollande destinada a taxar poderosamente os franceses que juntam muito mais dinheiro do que aquele que conseguem contar. Por isso se mudou para a Bélgica, onde a intervenção fiscal do Estado é consabidamente mais branda. E agora acaba de, apenas em duas semanas, obter de Vladimir Putin a nacionalidade russa. Pode ser que, nas suas queixas de contribuinte, tenha até algumas justificadas razões de queixa. Mas da imagem futura de egoísta, vira-casacas e oportunista já não se livrará mais. E no nosso imaginário partilhado deixou para sempre de representar uma certa «França francesa», heróica, democrática e combativa. Dá pena mas a escolha foi dele.
O ódio
Fragmento de uma das novelas-testemunho mais terríveis que alguma vez li: O Tchekista, de Vladimir Zazúbrin, editado pela Antígona com tradução de António Pescada. O livro, depois de cortado e emendado por imposições do censor, foi originalmente publicado em 1923. Acompanhado de um prefácio saído da pena de um tal Valerian Pravdúkhin, no qual se declarava que a obra «ajudará os verdadeiros revolucionários a cauterizarem definitivamente em si mesmo os “espinhos” herdados do passado histórico, para se tornarem intrépidos engenheiros da transformação inevitável do seu ser». Enquanto «os pequenos-burgueses se assustarão» inevitavelmente «diante deste desenho de traços carregados», pois «não foi para eles que a revolução abriu as suas amplas estradas verdes para os longes radiosos, para o oceano da sociedade sem classes». Zazúbrin, nasceu em Pensa, a sudeste de Moscovo, no ano de 1895, ajudou a preparar a revolução bolchevique, foi o primeiro presidente da União Siberiana de Escritores e, apesar dos elogios que no início da carreira literária o próprio Lenine lhe fizera como escritor «de um novo tipo», terminou fuzilado em 6 de Dezembro de 1938, no auge do Grande Terror estalinista.
Imaginem lá
Lembro-me bem de todas as meias-noites da mudança de ano. Mesmo nos momentos difíceis, ou naqueles mais tristes, sem presságio de futuro ou com morte próxima, elas aconteceram em ambientes partilhados de bem-estar e de esperança. Até aquela, irrepetível, passada enregelado e à luz de uma vela, na casa clandestina, a comer fatias de um bolo-rei minorca misturadas com cerveja choca. Quando a televisão mudou os hábitos e, no tempo do regime velho, se passou a mostrar ao povo o réveillon dos ricos, de fato completo ou vestido de noite – exibindo alegria de circunstância entre cornetas de plástico, serpentinas, chapéus cónicos, pandeiretas e línguas de sogra –, havia ainda assim uns minutos para sair à rua e olhar os artifícios de fogo lá no alto, no céu. E para ouvir os cláxones dos carros, as pancadas nos tachos e nas panelas, os votos gritados de bom ano, os estampidos secos das rolhas, sob o clarão festivo da luz pública.
Este ano, porém, e pela primeira vez, fui à varanda para dar de caras com um quase silêncio, a rua quase deserta, as janelas com as cortinas corridas, uns petardos pobres, isolados e sem graça alguma, a fazer de conta que assinalavam um momento especial. Engoli então a minha dose de passas com uma sensação de perda. Aquilo que estamos a viver faz-nos assim, mais tristes e semi-mudos, menos esperançosos, mais pobres e inevitavelmente inseguros, enquanto escutamos aqueles que escolhemos para organizarem a esperança de todos a prometerem-nos o pior. Se não para todo o sempre, dizem eles de olhos no chão, seguramente até ao fim das nossas vidas. E das vidas dos que vierem depois. Expiando, porque merecemos, o pecado de termos um dia confiado em que a cada trânsito do calendário se seguia um futuro. Um futuro melhor, mais feliz, imaginem lá. Imagine-se lá.
Filosofia ao domicílio |3
Terceiro post da série iniciada há dias, a obra evocada hoje é A Escrita e a Diferença, publicada em 1967 por Jacques Derrida (1930-2004), o filósofo francês de origem argelina e descendente de judeus sefarditas.
Na história da filosofia, Jacques Derrida ocupa um lugar singular. Tendo levado a cabo um longo e minucioso trabalho de releitura de textos filosóficos, fê-lo com a permanente intenção de decifrar, nas margens e entre as linhas dos discursos, um texto outro que se oferecia à leitura. Esse trabalho tem um nome: «desconstrução». Noção utilizada já por Martin Heidegger, a desconstrução nasceu nos Estados Unidos, mas foi a Derrida que incumbiu conceptualizar a sua prática, conferindo-lhe um impacto e uma dignidade académica de dimensão internacional. Longe de constituir um método aplicável segundo regras fixas e claras, a desconstrução é um princípio de arruinamento alojado no coração de todo o discurso e de toda a construção. No entanto, não é uma destruição. Desconstruir um texto é antes interrogar os seus pressupostos para abrir uma nova leitura, uma nova interpretação. Desta forma, Derrida põe os textos a dizerem aquilo que não parecia até esse momento ter sido dito. Em L’Écriture et la Différence, deixou claro que a tradição filosófica jamais deixou de fazer subordinar a escrita à presença da palavra viva, convertendo-a num suplemento técnico e artificial sem substância. De facto, na tradição do pensamento ocidental, desde Platão a Rousseau, sempre se procurou atingir o sentido último das coisas através do logos (a razão, a lei, o discurso) que se exprimiria de uma forma natural através da palavra.
Instapost 1
O dia prometia chuva.
A capital e o país nos anos 60
A historiografia que se ocupa da fase final do Estado Novo tem enfatizado, entre as condições que conduziram à queda do regime, os fatores políticos, militares, diplomáticos, económicos e sociológicos que foram limitando a sua capacidade para se renovar ou mesmo para se manter de pé. Tem sido destacado, com toda a justeza, o papel das oposições organizadas na construção do espaço de resistência e favorável à sublevação que tornou possível, ou inevitável, o 25 de Abril. O que raras vezes tem sido mostrado é que essa dinâmica de mudança teve uma outra componente, ao mesmo tempo subterrânea e aparatosa, traduzida na importação de valores e de hábitos internacionais, já em curso nos países industrializados, na afirmação da uma nova cultura juvenil e na introdução de práticas de consumo capazes de abalar a fortaleza política e moral que, desde a sua já distante génese, o salazarismo e a propaganda do regime tinha procurado defender e apresentar como modelar. ler mais deste artigo
Reabilitar Orwell sacudindo-lhe o pó

Mais de setenta anos após a sua morte, o percurso pessoal, político e intelectual de George Orwell permanece objeto de um escrutínio atravessado ao mesmo tempo pelo aplauso e pelo ódio. No entanto, se o primeiro, associado à sua denúncia militante da desigualdade social, do imperialismo e do totalitarismo como os males capitais do seu tempo, encontrou sempre momentos de reconhecimento público e outros nos quais pareceu confinado apenas a uns quantos admiradores, o segundo estabeleceu-se como uma constante, com uma intensidade que parece até, apesar dos múltiplos esforços de impugnação, ter-se inflamado mais após a morte do escritor. Aquilo que Christopher Hitchens (1949-2011) se propôs fazer neste A vitória de Orwell, escrito há já cerca de uma década mas tão brilhante que resistiu a esta frágil tradução portuguesa, foi olhar para a avalanche de rancor e, de forma sustentada e sagaz, desmontar os mais insistentes argumentos adversos ao escritor, desancando alguns dos seus intérpretes. O que não é de admirar vindo de quem, como aconteceu com Hitchens, foi objeto de comparáveis vilipêndios e incompreensões. ler mais deste artigo
Admirável mundo velho

«Que saudades de uma linha reta!»
A palavra Ostalgie emergiu há alguns anos, na Alemanha, como expressão de uma tendência para reavaliação benévola do passado da antiga República Democrática Alemã. Esta «nostalgia do leste» surgiu, de início, como expressão da dificuldade de alguns setores sociais, particularmente os ligados às gerações mais velhas de «alemães de Leste», para lidarem com as transformações da sua vida pessoal e da sua História coletiva. Mas rapidamente expandiu a sua influência, absorvendo grupos descontentes com a realidade e as desigualdades do capitalismo, chegado de rompante e deixado à solta depois de 1989, ou então incapazes de se adaptarem a novos estilos de vida e a diferentes processos de trabalho. Enquanto os mais velhos passaram a exprimir nostalgia por um passado, o da sua idealizada juventude, no qual, apesar da ausência de liberdade e da penúria generalizada, tinham vivido uma certa experiência de segurança no emprego e de igualdade formal no quotidiano, muitos dos mais jovens começaram antes a idealizar um passado que não viveram, olhando-o como expressão do paraíso perdido ao qual seria bom poder alguma vez regressar. ler mais deste artigo
Filosofia ao domicílio |2
Neste segundo post da série iniciada há poucos dias, o destaque é para O Homem Unidimensional, publicado em 1964 pelo filósofo alemão «marxista heterodoxo» Herbert Marcuse (1898-1979).
Bíblia do pensamento crítico durante os sixties, O Homem Unidimensional procurou fundamentalmente descrever aquilo que Herbert Marcuse designou como «sociedade industrial avançada», tão implantada então no mundo capitalista «livre» quanto do lado soviético. Denuncia aí a burocratização das relações sociais e principalmente a formatação do pensamento através dos média, da publicidade e da propaganda, ou mesmo da imposição de um determinado padrão de moral. Por mais modernas que pudessem ser, as sociedades industriais encaminhavam-se, segundo Marcuse, para uma forma de «pensamento único» que matava à partida toda a possibilidade de divergência. Contra o marxismo ortodoxo, não acreditava mais no papel emancipatório desempenhado pela classe operária, valorizando antes, como instrumentos de subversão do jugo das ideias dominantes, sobretudo os grupos sociais mais ativos na imposição quotidiana da liberdade, fossem eles os intelectuais radicais, os artistas ou as minorias sexuais. Defendia insistentemente, aliás, a afirmação de uma atitude radicalmente crítica, se não mesmo «negativa», na medida em que o pensamento positivo se identificava com o pensamento unidimensional. Editada em França no ano de 1968, a obra encaixou perfeitamente no meio efervescente dos estudantes nessa altura em revolta, alimentando em parte a emergência de uma «nova esquerda» radical e declaradamente antisoviética. Parte da qual integrará algum tempo depois, se bem que com algumas inflexões teóricas, as organizações ativistas de orientação «maoista». [Adaptação de um artigo de Nicolas Journet.]
Imagem, «real» e realidade
Os seis ensaios que este livro de Susan Sontag foram publicados entre 1973 e 1977 na New York Review of Books, e logo de seguida editados em conjunto, rapidamente convertidos em clássicos dos estudos sobre a semiótica da fotografia. Passando quase incólumes pelas últimas décadas, abordam um assunto – o lugar central que a fotografia detém na cultura contemporânea – que não só permanece inteiramente atual, como tem sido reforçado até no seu interesse devido aos progressos ocorridos entretanto no domínio da captação, da reprodução e da disseminação da imagem. Como seria de esperar pelo seu entendimento do papel da crítica, Sontag excluiu de todo uma observação estritamente técnica da prática fotográfica, que pudesse desligá-la do quadro social dentro do qual é produzida e consumida. Abrangentes e reflexivas, as observações que vai propondo dialogam constantemente, de um modo erudito e sedutor, com a filosofia, a sociologia, a história, a estética e a pintura, partindo sempre do princípio segundo o qual, atualmente, «tudo existe para terminar numa fotografia». ler mais deste artigo