Arsène, ladrão e cavalheiro

Arsène Lupin

Jamais possuiu corpo físico, dado ter preenchido a sua inusitada vida como herói dos romances de Maurice Lablanc (1864-1941). Mas Arsène Lupin, fora-da-lei com lugar cativo nos camarotes da Opéra, na Wagons-Lits ou nos melhores hotéis de Paris, Londres e Veneza, teve uma existência intensa. Elegante e sedutor, adepto do vegetarianismo (e no princípio do século passado!), dos banhos turcos e dos pijamas em seda, amigo de Diaghilev, Poincaré e Caruso, evidenciou sempre um sentido de humor que associava sem peso ou medida ao lado pueril que tem sempre o desafio. A inteligência, a destreza e a coragem, essas usava-as para perturbar a ordem da distribuição da propriedade, espoliando os ricos para ajudar aqueles que considerava «perseguidos e inocentes». Tem, por isso, um lugar reservado no estranho panteão dos anarquistas aristocráticos. E também por isso conquistou vida própria.

    Biografias, Ficção, Heterodoxias, Séries

    Memória do tango

    tango

    Ao ver uma pequena multidão de jovens turcos revoltosos a dançar o tango em plena Praça Taksim, lembrei-me deste post escrito há sete anos. Quando a minha e a nossa vida (e, talvez, também a deles) era um pouco menos preocupada.

    Por considerá-lo uma diversão imoral, em 1910 o governo argentino decidiu proibir o tango. Nessa época eram extremamente populares tangos associados a títulos másculos, como «Esta noche me emborracho» e «Metele bomba», ou então bastante ordinários, como «Tocamelo que me gusta!», «Dós sin sacarla», «Dejamelo morir adentro» e «El 69», o que não é de admirar pois o local de eleição dos tangueros e das suas acompanhantes era então a sala comum do prostíbulo. Devido àquela medida repressiva, renovada por diversas vezes até à década de 1950, muitos foram os dançarinos, dançarinas e orquestras de Buenos Aires e de Rosário que se viram forçados ao exílio, levando a música do bandoneón até Nova Iorque, Paris, Londres ou Berlim. Aí o tango foi depurado, maquilhado, transformado em espetáculo de sociedade, regressando a casa mais maduro e asseado, como «pensamiento triste que se baila». Mas jamais perdeu o odor canalha e pouco conforme a uma vida sossegada. Afinal, Carlos Gardel, El Morocho, o maior dos seus cultores, fez a maior parte da carreira cantando com uma bala alojada num pulmão, e estas coisas não se apanham com correntes de ar.

      Apontamentos, Cidades, Música, Olhares

      Um feriado mal passado

      No princípio o 10 de Junho metia-me medo. A partir dos treze ou catorze passei a odiá-lo. Apesar da atitude ter mudado, o motivo era o mesmo: a experiência traumática de ver na televisão de canal único, a preto e branco, a cerimónia integral com a «veneranda figura do Chefe de Estado», de alva farda marítima, ou com os ministros do governo, invariavelmente de escuro cinza, a aporem medalhas de bronze – as de ouro e prata estavam reservadas para os mais dignos – em homens e mulheres trajados de negro, recém-chegados nos seus fatos domingueiros de aldeias recônditas ou de bairros degradados. Lá estavam eles nervosos e chorosos no Terreiro do Paço, com «as tropas dispostas em parada», a receber, ano após ano, em complemento de um cumprimento rápido e ritual, o pequeno símbolo metálico com o qual a Pátria, supostamente reconhecida, premiava os seus filhos mortos, os seus maridos desaparecidos, os seus irmãos que haviam perdido a razão, a alma ou os tímpanos numa guerra sem saída. Mesmo após a instauração da democracia, aqueles que haviam crescido a observar esse rito anual jamais esqueceram as manhãs de verão durante as quais, a cada ano, se transformava aquele feriado num funeral da pátria. ler mais deste artigo

        Atualidade, Democracia, Memória, Opinião

        Coimbra, cidade aberta

        coimbra69
        Coimbra69 – Fot. Fernando Marques «Formidável»

        A partir de hoje passo a reproduzir aqui alguns dos artigos de opinião publicados regularmente no Diário As Beiras, de Coimbra. Por vezes com pequenas revisões. Num caso ou noutro – como acontece com este texto – os temas abordados poderão ter maior relevância para os leitores (ou para os passageiros) da cidade.

        A primeira memória que tenho de Coimbra liga-se a uma frase enigmática do meu pai. Um dia, ao passarmos na Portagem, junto ao antigo Café Montanha, apontou para um grupo de rapazes e de raparigas de roupa negra, muito justa, e avisou-me: «Olha, aqueles ali são os existencialistas». Deve ter acontecido por volta de 1960 e muitos anos depois, ao folhear uma coleção do jornal Via Latina, percebi que nessa época estava de facto em curso na academia coimbrã um combate de ideias entre estudantes católicos mais ou menos conservadores e um grupo de defensores do «existencialismo francês», reconhecendo estes sermos nós os primeiros responsáveis pelo destino que escolhemos. O episódio ficou registado e creio ter sido ele a fazer com que passasse a ver a cidade, apesar da sua estreita dimensão – então menos de metade dos habitantes de hoje –, como um território aberto à novidade do mundo e aos seus dilemas. ler mais deste artigo

          Apontamentos, Coimbra, Democracia, Memória

          A tricana

          Não sei datar com precisão a fotografia que ilustra este velho postal de Coimbra, comprado num quiosque que existiu ao lado da Pastelaria Central. Será, muito provavelmente, dos finais do século XIX ou logo do início do seguinte. Presumo que alguns a observem com um misto de nostalgia e de subordinação à visão de uma cidade profundamente estratificada mas que sem qualquer vigilância crítica tendem a embelezar e a associar a uma certa ideia de tradição. Eu vejo-a como uma imagem quase pornográfica. Como estereótipo, mas também como vestígio de um tempo, ultrapassado embora não apagado, no qual as lavadeiras do Mondego, as «lindas tricanas» das quais ainda tratam certas versalhadas ou legendas de souvenirs locais – eu ainda conheci algumas das derradeiras, já velhas, gastas, pobres e abandonadas –, desempenhavam o papel social que ela tão tristemente documenta.

            Apontamentos, Coimbra, Memória, Olhares

            Chamam um táxi à Álvaro Cunhal

            Álvaro Cunhal

            A partir deste sábado Lisboa passa a contar, junto da Quinta das Conchas, ao Lumiar, com uma Avenida Álvaro Cunhal. Têm-se multiplicado as palavras de aprovação ou de impugnação perante esta iniciativa, numa lógica de frágil debate e de forçada comparação que perde o sentido se observarmos a grande variedade das referências toponímicas a cidadãos que foram políticos e estiveram associados a diferentes convicções, o que é próprio de um país com história e que vive em democracia. Não atribuindo demasiada importância a este tipo de querela sobre o passado comum, concordo em absoluto com esta escolha aprovada formalmente pela Câmara lisboeta. A meu ver, ela justificaria até uma artéria ou uma praça mais central, na qual a designação e a memória do evocado se pudessem tornar mais visíveis e marcantes. Uma rua ou uma praça que percorressem regularmente muitos milhares de lisboetas e forasteiros, por onde pudesse passar a Volta a Portugal em Bicicleta, onde fosse possível marcar encontros amorosos e expressar em alta voz a vontade ou o protesto coletivo dos cidadãos. ler mais deste artigo

              Biografias, Cidades, História, Memória

              O rapaz que olhava os navios

              Memória, ensaio e elegia, eis um livro escrito como história afetiva da cidade que o autor crê habitada «de ruínas e de melancolia». Escolheu observá-la a partir dos sinais de um passado que é o da sua infância e primeira juventude, fazendo-o acompanhar de recordações familiares, fotografias a preto e branco, livros e jornais envelhecidos. Por todo o lado o hüzün, uma variedade de melancolia, de tristeza, aplicada aos istambuleses que padecem de um sentimento de perda por viverem num lugar cujos dias de glória acabaram. Não se trata, porém, de um exercício meramente nostálgico, pois Istambul não foi apenas o território físico de Pamuk: foi também a casa-mãe da sua imaginação, um espaço com o qual manteve sempre uma identificação poética, o observatório privilegiado para a sua percepção das mudanças do mundo. ler mais deste artigo

                Cidades, Leituras, Memória, Olhares

                O Trabalhador da Noite

                Alexandre Jacob

                Do fundo do baú deste blogue, irei recuperar alguns dos posts da série-catálogo «Vidas Exemplares». Estamos todos a precisar de modelos.

                Pelos finais do século XIX, Alexandre Marius Jacob (1879-1954), o autoproclamado «ilegalista pacifista», resolveu dedicar-se a tirar «aos que não produzem nada mas têm tudo» para dar «aos que produzem tudo e não possuem nada». A sua vida de assaltante, iniciada em 1894 com a formação do bando «Os Trabalhadores da Noite», destinado a espoliar os «parasitas sociais», jamais foi a do simples criminoso, pois sempre anunciou que as suas acções se voltavam contra a classe dominante e contra «o mais iníquo de todos os roubos», a propriedade individual. Uma percentagem do dinheiro roubado era destinada à causa anarquista e aos camaradas em dificuldades. «O roubo é a restituição», escreveu uma vez no jornal libertário Germinal, parodiando a conhecida frase de Proudhon que equipara a propriedade ao roubo. Com grande sentido de humor e eterno porte de cavalheiro, virá a tornar-se em 1907, para Maurice Leblanc, no modelo ficcional de Arséne Lupin, o gentleman-cambrioleur que fazia questão de troçar da polícia e dos poderosos. ler mais deste artigo

                  Biografias, História, Memória, Séries

                  O paraíso temporário

                  Joseph Roth

                  Desde 1927, ano em que este livro de Joseph Roth (1894-1939) foi publicado, quatro importantes fatores modificaram profundamente a condição, a vida e o destino dos judeus do leste europeu. O primeiro foi a acentuada expansão do antissemitismo na Europa Central, com esse cortejo de sofrimento, exclusão, fuga e extermínio que culminou no Holocausto e mudou radicalmente a sua geografia física. O segundo foi a formação do Estado de Israel em 1948, consumando a definição de uma nova área de povoamento e, em consequência, a rápida reformulação das tradições e das condições de vida daqueles que ali se foram estabelecer. O terceiro fator foi o retorno das perseguições na antiga União Soviética, visível nos últimos anos de Estaline mas que não se esgotou após a sua morte e criou as condições para um novo êxodo. E o último foi a atitude expansionista e agressiva, progressivamente imperante no Estado de Israel a partir das guerras dos Seis Dias e do Yom Kipur, que alterou o modo de reconhecer os direitos históricos dos judeus. Em pouco mais de meio século, esta conjugação de fatores tornou irreconhecível o universo que o jornalista e escritor austríaco aqui procurou descrever e explicar, dispersando ou transformando para sempre aqueles que o formaram. ler mais deste artigo

                    História, Memória

                    Mario De Biasi

                    Mario De Biasi

                    À medida que o volume de informação vai crescendo e se desdobra, que a sua velocidade de circulação dispara, e a multidão de sound bites e de dados irrelevantes tende a sobrepor-se ao que consegue sobreviver àqueles «quinze minutos de fama» dos quais falava Andy Warhol, tendemos a perder o rastro ao que permaneceu durante décadas como âncora da nossa memória ou como fundação da nossa maneira de olhar o mundo. Se, como sugeriu Marc Augé num pequeno e luminoso texto de 1998, é verdade que sem esquecimento não existe memória, pois de outra forma iríamos perder-nos no sorvedouro imenso de um passado esmagador, também é verdadeiro que a ampliação dos meios de informação e de comunicação tende agora, cada vez mais, embora paradoxalmente, a conservar o que é fugaz e a apagar o que permanecerá na lembrança de mais do que uma geração. Só isto explica que nesta altura deixemos morrer no esquecimento, quase sem uma palavra, homens e mulheres que durante tanto tempo nos acompanharam no reconhecimento do mundo, ou que nele conduziram os que mais de perto nos precederam. ler mais deste artigo

                      Artes, Fotografia, Memória, Olhares

                      Política da amizade

                      Fotografia de Constantine Volo
                      Fotografia de Constantine Volo

                      Ao refletir no posfácio que ocupa quase metade da recém-saída edição nacional de O Amigo, de Giorgio Agamben (n. 1942), o seu autor, António Caselas, sublinha um aspecto que resulta fulcral no texto do filósofo italiano: «A amizade é essencial ao relacionamento político e não um artifício privativo que disfarça uma falta.» E, no entanto, é justamente a confusão entre estas duas leituras, e principalmente o destaque dado à segunda aceção, que denuncia o modo como o conceito tem vindo ser progressivamente vulgarizado, ou mesmo depreciado, no domínio do público. No limite, os conceitos de «amigo» e de «amizade» presentes hoje nas redes sociais são contaminados por aquela presunção segundo a qual eles representam um relacionamento privado e entre indivíduos. Ao mesmo tempo, porém, o próprio conceito de rede questiona esta perspetiva, uma vez que a ligação pessoal é publicamente exposta, a uma escala nunca vista, passando a assumir uma dimensão social que lhe confere um significado inevitavelmente político. ler mais deste artigo

                        Cibercultura, Democracia

                        Já venho

                        A Terceira Noite tem estado quase muda e praticamente imóvel, como não acontecia há muito tempo, há bastas luas, há uma razoável parte da minha vida. Um aviso aux habitués (vai mesmo em francês, para contornar o excesso de linguagem inclusiva que tantas vezes desanca no prazer de ler e de dizer): não, nada de grave aconteceu, não há desânimo, nem falha de corrente, nem existe portaria a ser prometida, e logo desmentida, que me desvie da mania de teclar em público e de bradar aos céus. São só, e mesmo só, as circunstâncias: algum trabalho a mais, calos nos dedos, demasiado terreno agreste por onde dispersar o fraco engenho que a canseira e a teimosia se esforçam por disfarçar. Já venho.

                          Apontamentos, Oficina

                          O nosso Havana Style

                          Havana

                          A decrepitude é um dos mais visíveis sinais da arquitetura civil da cidade de Havana. Há quem nela veja as marcas de uma certa honradez, exibida por quem prefere a caliça a esboroar-se e a água a pingar do teto a ver o regime mudar de azimute aceitando que nem tudo correu bem. Outros chamam-lhe patine, ligando-a à nostalgia da certa grandeza perdida. No entanto, para quem a habita, ela só seria verdadeiramente boa e aceitável se existisse uma possibilidade de escolha, ou pudesse considerar-se a vaga hipótese de mudar para um apartamento pintado de fresco, sem humidade e soalhos a ranger. Se pensarmos em como tanta gente se vê forçada a viver a vida inteira, cruzando aquele cenário de pobreza e decadência a pé ou em viaturas Buick ou Oldsmobile dos anos cinquenta, logo diluiremos a perspetiva romântica da Bela Havana que nos chega em bilhetes-postais selados com o rosto de José Martí. Trata-se afinal de uma beleza desconsolada, que lacera mais do que empolga, como o demonstra a vasta literatura habanera capaz de escapar à previsibilidade do diário Granma e aos estereótipos dos folhetos turísticos. ler mais deste artigo

                            Atualidade, Cidades, Olhares

                            Cavaco, Honecker e as bananas

                            Günter Schabowski, o antigo porta-voz do Bureau Político do Partido Socialista Unificado da Alemanha, ficará para sempre conhecido por, no dia 9 de novembro de 1989, se ter precipitado ao ler numa conferência de imprensa transmitida pela televisão, ainda sem autorização superior, um comunicado oficial segundo o qual a RDA passaria a permitir aos seus cidadãos que viajassem livremente para onde desejassem. Terá sido esse lapso a determinar nessa mesma noite, sem qualquer resistência dos guardas fronteiriços do lado oriental treinados para apertar o gatilho das espingardas-metralhadoras, a queda definitiva do Muro de Berlim. Ora foi Schabowski quem há alguns anos contou a uma jornalista que numa reunião plenária do Comité Central do Partido, efetuada poucos meses antes, no preciso momento em que uma crise económica sem precedentes, a revolta popular e o aumento exponencial da fuga de cidadãos abalavam brutalmente o regime de Eric Honecker, aquele órgão se recusou a debater a situação. Limitou-se na altura a abordar os preparativos para as comemorações oficiais do 40º aniversário da chegada dos comunistas ao poder. Apenas numa conversa de corredor um alto responsável se teria referido vagamente aos protestos, sugerindo uma solução para acabar de vez com o descontentamento dos cidadãos: «Podemos dar-lhes bananas!» As bananas eram então, no território leste-alemão, um bem de consumo particularmente raro e cobiçado. Ao convocar uma reunião do Conselho de Estado para discutir,  por estes dias de derrocada da credibilidade do governo e de brutal escalada no empobrecimento da maioria dos portugueses, o que poderá vir a ser o país depois da troika nos deixar, Aníbal Cavaco Silva está a copiar a atitude autista de Honecker, tratando Portugal como uma república das bananas.

                              Apontamentos, Atualidade, Olhares

                              A luta comum

                              Não configurando a salvação da pátria, a notícia da reunião bem-sucedida entre as direções da CGTP e da UGT, realizada a pedido desta última, é uma boa notícia. O resultado divulgado aponta para «uma grande convergência» de pontos de vista e para «90% de acordo» no que diz respeito a formas de luta comuns a adotar perante as políticas antissociais e de capitulação nacional do atual governo. Independentemente da herança do passado – da sobrançaria de uns, tantas vezes apostados em hegemonizar o movimento sindical; da tibieza de outros, em muitos momentos mais empenhados em assinar acordos «responsáveis» do que na defesa intransigente dos trabalhadores – é muito importante, neste momento dramático para a vida do país e da larga maioria dos que o habitam, que se una aquilo que houver para unir, mais com os olhos nos objetivos partilhados que na contagem calculista das espingardas. ler mais deste artigo

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                                A minha primeira gravata vermelha

                                Posso contar uma experiência em tudo parecida com a que outros contaram hoje nos jornais, nos blogues, nos murais do facebook. Em maio daquele ano fiz o exame da 4ª classe na minha escola primária, a principal, a da vila. Mas os alunos das aldeias em volta tiveram de vir, alguns a pé, nos seus melhores fatos, com o ar mais sério que eram capazes de pôr, cumprir a prova que desde a 1ª classe tanto temiam e para a maioria deles iria encerrar, para sempre, o tempo de estudos. Depois, em junho, como fazia parte do pequeno grupo dos que deveriam entrar no ensino secundário, fui à grande cidade fazer o exame «de admissão ao liceu» com prova escrita e oral. Lembro-me de tudo: do átrio enorme e assustador, dos corredores em cor beije e das salas numeradas, da minha primeira gravata vermelha (com pintas brancas), da cara patibular dos professores e, no final, passada já a grande dor de barriga, de ter comido na rua um portentoso sorvete de morango. Mas não recordo mais nada: das perguntas, da forma como me desembaracei delas, do que aprendi ou inventei para poder passar aquele transe sem grandes problemas. Nada, nadinha, nicles. Hoje compreendo que afinal o essencial não era aprender mais e melhor: era antes assinalar um ritual de submissão à hierarquia dos saberes e ao sagrado lugar da autoridade. E é isso que, na verdade, pretende replicar esta ideia peregrina de ressuscitar no século vinte e um o exame do 4º ano de escolaridade. Industriar os maleáveis cérebros dos pequenos corpos, para além de uma aprendizagem rudimentar, no reconhecimento de que existe um cerimonial de aferição a cumprir. Numa vida inteira a ser-se avaliado e a fazer por passar à frente dos outros. Sabendo muito, pouco ou quase nada.

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                                  As cartas de Piteira

                                  Nas evocações da resistência à ditadura e dos primeiros tempos pós-Abril raramente tem sido dado o justo destaque à vida desinquieta, à intervenção militante e à atividade intelectual de Fernando Piteira Santos (1918-1992). Todavia, ele foi uma das figuras-chave da história do país no século XX, como resistente, intérprete da vida nacional, ou, nos últimos anos de vida, influente «reserva da República». Militante contra a ditadura desde a juventude, Piteira foi membro do Comité Central do PCP entre 1941 e 1950, ano em que foi expulso a pretexto de uma falsa acusação de delação. Antifascista, oposicionista ativo, conheceu por isso os cárceres da ditadura, tendo sido preso por três vezes. Em 1961 colaborou na tentativa de assalto ao Quartel de Beja, vendo-se por esse motivo forçado a passar à clandestinidade e depois ao exílio em Argel, de onde só regressou após a queda do regime. Em 1974 foi Director-Geral da Cultura Popular e Espectáculos, criando e dirigindo depois os Centros Populares 25 de Abril. Em 1977 foi fundador da Fraternidade Operária, criada por dirigentes e militantes do PS descontentes com o rumo político tomado então pelo partido. Professor da Faculdade de Letras de Lisboa, foi ainda, entre 1975 e 1989, diretor do Diário de Lisboa. ler mais deste artigo

                                    História, Memória