Poderia ficar calado sobre este assunto? Sim, claro que poderia. E virá aquilo que vou escrever ajudar a resolver alguma coisa? É claro que não, nada. Implicará o parágrafo abaixo um assacar de «culpas» seja a quem for? Também não, a realidade é o que é, nada mais. Move-me apenas o contrariar da camuflagem da verdade e da reescrita da história que está a ser feita. Talvez seja uma mania de historiador. O assunto: o apoio do Bloco de Esquerda e do PCP ao governo do PS que agora cessa funções. Porque aquilo que aconteceu não foi bem o que está a ser contado como aquilo que aconteceu. Em parte por iniciativa de António Costa, na fase mais agreste da campanha eleitoral, mas também por pessoas que acompanharam mecanicamente as suas palavras. Não falo de cor, ou por uma impressão, mas atendendo a factos e a informações pessoais que me deixam contrariar essa reescrita.
ler mais deste artigoNotas e impressões (sobre as eleições)
Os resultados das eleições não foram surpreendentes. O PS ganhou como se esperava, ainda que sem a maioria absoluta que pretendia; o PSD teve uma descida menor do que aquela que se aguardava, em boa parte graças ao eleitorado fiel e aos ataques personalizados ao PS conduzidos nas últimas semanas; o Bloco de Esquerda manteve a sua importância central, se bem que sem a subida com a qual se contava; o PCP continua a descer, embora não tanto quanto se previa (já os «Verdes», esses evaporaram-se); o CDS caiu até ao limite, embora dentro do previsto; o PAN continua a subir num processo de apropriação de causas que não domina. E depois há os «pequenos partidos», aos quais a presença no Parlamento poderá permitir crescer.
ler mais deste artigoOpinião pública e peso da responsabilidade

O título desta crónica parafraseia o de um livro, O Peso da Responsabilidade, do historiador britânico Tony Judt, publicado em 1998 e traduzido no ano passado pelas Edições 70. Nele se reuniram ensaios de Judt sobre três franceses do século XX – Léon Blum, Albert Camus e Raymond Aron – com percursos e focos diversos, mas que coincidiram na grande influência que exerceram sobre o seu tempo e na forma exigente como interpretaram a responsabilidade particular do intelectual público. Tomada esta num duplo sentido: de um lado, o de quem observa o mundo com permanente atenção e de um modo razoável, liberto dos pesados filtros impostos pelas categorias ideológicas, pelos modismos ou pelos lugares-comuns; do outro, o do sujeito que, agindo e comunicando em função das suas convicções, obtidas através da reflexão e da crítica, as assume de uma forma aberta perante os outros, ainda que tal o possa forçar a colocar-se contra as posições dominantes no seu próprio campo, sendo, por isso, por vezes acusado de apostasia ou traição.
ler mais deste artigoSempre muitos, a vida toda
Seremos nós capazes de ser coerentes a vida toda, ou pelo menos desde muito cedo? Sim e não. É verdade que, estruturalmente, existem traços de nós, aos oitenta, que já construíamos aos oito. Mas ninguém é coerente o tempo todo, por muito que procure dar essa ideia. Como parece acontecer em autobiografias ou biografias encomendadas, por exemplo. Os livros que alimentaram o culto da personalidade dos ditadores tentaram fazê-lo também, embora com o sucesso que se sabe. Na Coreia do Norte o percurso e caráter dos líderes estavam escritos antes até de estes serem concebidos. É também isso que se faz em certos trabalhos académicos, apostados em demonstrar a coerência do autor, da sua vida e da sua obra, bem como a da forma como este as «planeou». Até Marx e Lenine, ao contrário do que já foi escrito, se foram fazendo e contradizendo. E Jesus (Cristo, não confundamos), de igual modo. Ninguém é «isto» ou «aquilo», «assim» ou «assado», a vida toda e para todo o sempre. E mesmo após morrer se pode ir descobrindo que «não era bem o que parecia». Somos é poços de contradições, essa é que é essa. Embora nem todos/as valhamos a mesma coisa.
Uma declaração de voto
Nestas eleições irei votar no Bloco de Esquerda. Entre 1999, ano da fundação, e 2011, colaborei muitas vezes com o Bloco e fui seu eleitor. Nesse ano afastei-me um tanto. Por dois motivos centrais: devido ao voto de desconfiança partilhado com o PCP e a direita que ingloriamente acabou por levar aos quatro anos do governo PSD-CDS; e porque me parecia possível e necessária uma aproximação a setores do PS já então disponíveis para a acolher. Devido a estas escolhas, nas eleições de 2015 participei na experiência de uma «candidatura cidadã» que visava estimular essa aproximação para derrotar a direita. O resultado dessa experiência foi inglório, mas o esforço de convergência viria depois a ocorrer sob a forma da Geringonça, com as conquistas, dificuldades e contradições que se conhecem.
ler mais deste artigoAs redes sociais como barómetro

Esta crónica ocupa-se de um universo que muitos rejeitam ou consideram irrelevante. Não posso discordar mais desta atitude. Como acontece com o telefone ou a televisão, podemos virar as costas às redes sociais, mas não podemos viver sem elas. Oferecem excelentes possibilidades de aprendizagem, partilha e divulgação, bem como de encontros e reencontros, embora, é verdade, abram também espaço para a mentira, a exposição da ignorância e o ódio, levando a que frequentes vezes nos cruzemos com pessoas que na «vida real» evitaríamos. Só que existem, não irão desaparecer, e de um ou de outro modo influenciam poderosamente as nossas vidas. Por isso, não convém ignorá-las.
O enorme sucesso desta ferramenta de comunicação deve-se à facilidade de acesso, ao baixo custo e também a possibilidade de dar voz pública a quem habitualmente a não tem. Ao mesmo tempo, porém, permite que se escreva e se opine sem se ter o hábito de o fazer, podendo qualquer um afirmar o que deseje sem pensar duas vezes ou com objetivos pouco claros. É esta, aliás, a principal origem do seu perigo, sendo também por isso que muitas pessoas as rejeitam.
ler mais deste artigoO perigo e o erro da História «certa»

O regresso da extrema-direita ao primeiro plano do debate político nas sociedades democráticas tem dado um papel de relevo aos chamados «usos da História». Por isso, é um erro atribuir a esta disciplina um lugar neutro, limpo, silencioso, supostamente acima dos interesses e dos conflitos. Se vivemos a era da globalização, permanecemos ainda herdeiros das estruturas políticas nascidas no século XVIII, o que, como notou Marc Ferro, se reflete em muitos dos problemas e dos confrontos que enfrentamos. Estes continuam a passar por batalhas em redor da democracia e da liberdade, do papel do Estado e dos nacionalismos, do lugar da solidariedade e do individualismo, dos direitos humanos e da igualdade, bem como pelos processos de transformação que seguem modelos e ideais contraditórios, associados a diferentes interesses.
ler mais deste artigoAs democracias e o poder dos brutos
As redes sociais servem, como toda a gente sabe, ou então deveria saber, tanto para coisas úteis ou mesmo magníficas, quanto para outras bem horríveis e sinistras. Depende sempre de quem as usa, da forma como o faz, da linguagem que usa, dos interesses que representa ou dos princípios que segue. De entre as coisas boas, apesar de relacionada com outras detestáveis, tem servido para denunciar as decisões, escolhas e imposições de figuras tão insanas e perigosas como Bolsonaro, Trump, Salvini, Orbán e agora, ainda que numa outra escala, Boris Johnson.
O problema que se coloca é que, apesar das proclamações de espanto ou de indignação, quanto mais impensáveis e intoleráveis são as suas afirmações e iniciativas – ou as dos seus acólitos – maior apoio eles têm entre a larga maioria daqueles que os elegeram e apoiam. As democracias parecem estar entregues ao poder dos brutos, dos ignorantes, dos trolls – em parte por intervenção das próprias redes e de uma comunicação social que esquece a sua dimensão cívica – e isso precisa ser rapidamente pensado e alterado. Antes que as trevas nos submerjam a todos.
Social-democracia: equívoco ou solução

Quem se interesse de modo crítico pela história das ideias políticas conhece a ambiguidade que há mais de cem anos acompanha o conceito de social-democracia. Declarações de Catarina Martins ao Observador, nas quais considerou existir uma dimensão social-democrata no programa do Bloco de Esquerda, trouxeram de novo alguma atenção a esse equívoco, tantas vezes alimentado por circunstâncias históricas, mas também pelo desconhecimento e pelo dogmatismo. Nada tem isto a ver com o PSD, partido liberal cuja inadequada designação resultou das circunstâncias de Abril, mas antes com os setores que à esquerda olham o conceito com aprovação ou descrédito.
ler mais deste artigoNa morte de Wallerstein

Durante o meu curso de História vivi algum tempo um equívoco. Como quase todos os teóricos recomendados já estavam mortos ou em vias disso, quando numa aula de história da expansão colonial – muito poucos tinham então a desfaçatez de falar de «descobrimentos» – um certo professor falou de Immanuel Wallerstein (1930-2019) e do sistema de economia-mundo, na minha ignorância dei-o por falecido. Afinal, o sociólogo norte-americano nem 50 anos tinha, e eu estava bem longe de imaginar que três décadas depois ainda viria a assistir a uma conferência sua.
A crítica do capitalismo global e o papel crucial que desde a juventude Wallerstein atribuiu aos movimentos anti-sistémicos, foram entretanto projetando o seu reconhecimento bem para lá do mundo académico, tornando-o uma figura nuclear do movimento anti-globalização e um pensador central para compreender as contradições e dinâmicas do mundo contemporâneo. Desapareceu este 31 de agosto aos 88, mas a sua reflexão continuará a municiar o quadro interpretativo para entender e transformar este lugar do universo que nos cabe.
A opinião e os burros
Publicadas em jornais, blogues ou redes sociais, as crónicas de opinião – tenham a forma de curtos artigos ou de breves notas – são sempre escritas de forma rápida e circunstancial, ao sabor dos acontecimentos ou dos acasos, bem como das impressões por estes causadas nos seus autores. Isto confere-lhes inevitavelmente uma forte margem de transitoriedade, incerteza e imprecisão. São também muitas vezes experimentais, sem tempo para amadurecimento e revisão. No entanto, quem as escreve sabe como são acusadas de tudo: de parcialidade, incompletude ou ligeireza, sendo ainda habitual que os seus autores vejam o que exprimem interpretado muitas vezes de forma abusiva, confundindo-se a parte com o todo e tomando-se como definitivo aquilo que jamais o pretendeu ser.
ler mais deste artigoUm revolucionário e a sua consciência

«Sinto muita vezes que sufoco no interior de um magnífico deserto», escreveu Victor Serge (1890-1947) a partir do exílio no México. Serge, bolchevique internacionalista desde a primeira hora, vivia essa impressão na dupla condição de opositor a Estaline e também ao comodismo dominante na comunidade de exilados que se lhe opunham. Num apontamento de 1943 falava da «cobardia dos intelectuais» – ele, toda a vida um intelectual – e do maior interesse de muitos destes pelas questões teóricas, pelo puro diletantismo, em detrimento do combate diário. Considerava a política como «feita essencialmente de pessoas, não de análises», propondo até ao fim uma atitude de compromisso e iniciativa radicada na melhor tradição bolchevique. Aquela que Estaline destruiu três vezes: primeiro pelo golpismo interno, depois pela violência e pelo medo, por fim pela desmobilização de boa parte dos que se lhe haviam oposto e Serge considerava «desertores». Para ele, todavia, a desistência era impensável, ainda que a sua vida de revolucionário passasse agora pelo «deserto» que referiu, «magnífico» porque feito, contra todas as adversidades e fugas, de convicção e empenho.
Na fotografia: Victor Serge, o poeta dadaísta Benjamin Péret, a pintora surrealista Remedios Varo e André Breton, que Serge considerava o típico diletante (França, 1941)A partir da recente edição crítica de «Notebooks: 1936-1947», de Victor Serge, e de uma nota de leitura de Alex Press
Inventores de passados
Isto de ter memória, e também alguma biografia, transporta consigo momentos contraditórios. No que me toca, e sem qualquer pulsão nostálgica, a maioria é o que foi. Coisas que se aprenderam e viveram, exaltações e angústias, dores e amores, conhecimento e esquecimento, experiência do mundo e dos que o foram povoando. E datas, muitas datas. Mas de um passado que é meu, não de um inventado à medida. De vez em quando, todavia, reparo em pessoas que criam um novinho em folha. Que se dizem, por exemplo, «antifascistas com provas dadas», quando antes de Abril eram conformistas, filhos de papai ou andavam ainda na primária, por exemplo. De vez em quando aparecem-me pela frente, sem se darem conta que vivi aquilo que de facto não viveram. E que sei fazer contas. (Mas relaxem, pois jamais escreverei um livro de memórias.)
Da ténue linha entre silêncio e indiferença

A propósito do encontro de organizações da extrema-direita que decorreu em Lisboa este sábado, voltou a circular uma ideia tão errada quanto perigosa. Aquela que, perante determinados acontecimentos controversos ou escolhas perigosas e condenáveis, ou então diante de boatos e de mentiras, considera que o melhor é não falar deles, não tomar uma posição clara e pública, não enfrentar quem os projeta, sendo preferível deixar passar o momento. Justificando-se esse ponto de vista com a errada lógica segundo a qual toda a referência pública que lhes seja feita estará a oferecer publicidade àquilo que não deveria tê-la. Supostamente, sem essa publicidade permaneceriam insignificantes.
ler mais deste artigoO poder subversivo da sátira

Há poucas semanas, o The New York Times pôs termo à publicação de cartoons. Fê-lo na sequência da polémica em torno de um desenho do português António, que o próprio diário, após queixas de leitores, acabou por aceitar poder ser considerado «antissemita». O trabalho de António tinha sido publicado pelo jornal sem autorização do autor e um dos que se pronunciaram de forma mais violenta contra a sua inclusão no diário foi Donald Trump Jr., o filho mais velho do presidente. O desenho representava o seu pai como um cego vestido de rabino e conduzido por um cão com a cabeça do primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu. A crítica dos leitores poderia ser legítima, mas a decisão foi radical. Vinda de uma publicação de bom nível jornalístico e cultural, que tem defendido a liberdade de expressão e é conotada com a oposição democrata a Trump, ela é particularmente chocante e um grave sinal dos tempos.
ler mais deste artigoO medo como técnica

«Escrito em 1946, este pedaço de um artigo de Albert Camus saído no jornal Combat tem, naturalmente, a marca do seu tempo.» Escrevi isto há sete anos, a anteceder a publicação do texto que abaixo se transcreve. Neste momento já não sei se assim é. Ressalvando a mistura verbal do «homem» e do humano – que hoje fere um tanto os nossos ouvidos – todo ele parece ter também, e muito, a marca destes dias.
«O século XVII foi o século das matemáticas, o XVIII o das ciências físicas e o XIX o da biologia. O nosso século XX é o século do medo. Dir-me-ão que o medo não é uma ciência. Mas, em primeiro lugar, a ciência é de certo modo responsável por esse medo, uma vez que os seus últimos avanços teóricos a levaram a negar-se a si mesma e porque os seus aperfeiçoamentos práticos ameaçam destruir a terra inteira. Além disso, se bem que o medo em si mesmo não possa ser considerado uma ciência, não há dúvida que é uma técnica.
ler mais deste artigoDefender o crime não é opinião

Como qualquer democrata sincero que o tenha lido, senti-me ofendido com o artigo racista, xenófobo e discriminatório, intitulado «Podemos? Não, não podemos», que Maria de Fátima Bonifácio assinou a 6 de julho no diário Público. Pelo seu significado político, no sentido amplo do termo, tendente a exacerbar ódios e incompreensões num tempo já de si tenso e conturbado no que respeita à aceitação da diferença étnica e cultural, mas também por se escudar numa credibilidade académica que lhe dá alguma autoridade e, por isso, o torna particularmente perigoso.
Porém, a verdade é que nem será preciso um grande esforço para constatar que até esta credibilidade é colocada em causa pelo artigo em questão: a referência à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão «decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789», considerando-os excludentes em relação a grupos humanos, nomeadamente a «africanos» e a «ciganos», é um erro histórico clamoroso. Na realidade, o texto-chave da história contemporânea aprovado em Paris, pela Assembleia Nacional Constituinte, apenas cinco semanas após o episódio revolucionário decisivo que foi a Tomada da Bastilha, refere expressamente o caráter universal e igualitário desses direitos. Observados sob uma perspetiva ocidental, é certo, mas que sob a influência dos princípios iluministas e das ideias da Revolução Americana se pretendiam aplicáveis a todos os seres humanos.
ler mais deste artigoRasura da memória e democracia

Vivemos uma inquietante vaga de rasura da memória projetada a partir do apagamento, da reescrita e da trivialização de episódios da história. Uma parte produzida de forma consciente, com objetivos políticos precisos, resultando a outra apenas da leviandade, da indiferença ou da ignorância. Por isso o vínculo entre história e memória está na ordem do dia, seja para quem aproxima estas duas categorias de representação do passado, seja para os que pretendem a sua separação. Olhar com sentido crítico e pragmatismo a relação entre ambas requer um banho de realidade.
Em 2015 duas fundações francesas de investigação divulgaram os resultados de um inquérito subordinado ao tema Mémoires à venir. Envolveu cerca de 32 mil jovens de 31 países – Austrália, Canadá, Estados Unidos, Japão, Índia, Israel, Rússia, Turquia e quase toda a Europa – com idades compreendidas entre os 16 e os 19, e visava conhecer aquilo que os cidadãos educados já neste milénio retêm dos grandes acontecimentos do século XX, com a particularidade de terem sido colocadas as mesmas questões a pessoas de regiões e culturas muito diversas. Os acontecimentos mais referenciados foram aqueles que incorporaram uma dimensão traumática: o Holocausto, as bombas atómicas sobre o Japão e as duas guerras mundiais. Dos episódios mais recentes, destacaram-se os que em 1989-1991 envolveram a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética.
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