O erro da obsessão antiamericana

Após a primeira tomada de posse de Barack Obama, a forte dimensão simbólica de teor emancipatório que representava, a sua integração no combate pelos direitos cívicos, vinda dos anos cinquenta, foi insuficiente para que sectores associados à esquerda mais ortodoxa lhe dessem o benefício da dúvida, começando de imediato a erguer a voz contra o que nesse momento materializava um forte sinal de esperança para o povo americano e boa parte do mundo. Assim voltou a acontecer agora, a partir do próprio dia da tomada de posse de Joe Biden e Kamala Harris. Mesmo ocorrendo esta numa altura crítica, quando os Estados Unidos enfrentam a dupla e grande ameaça, herdada dos anos de Trump, expressa na ausência de uma política coerente contra a pandemia e na iniciativa agressiva da extrema-direita e do suprematismo branco.

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    Antifascismo e violência

    Com o fascismo, tenha ele o rosto que tiver, não existe diálogo possível. Não se pode dialogar com quem o faz apenas para combater os direitos fundamentais e destruir a democracia. E muito menos, pelo mesmo motivo, reconhecer-lhe direitos democráticos irrestritos. Mas também não podem existir contemplações, compreensão, moderação: o fascismo não se observa, não se lamenta, enfrenta-se, e se necessário, como já aconteceu no passado, através da violência. Inclusive a física. A mãe de todas as guerras antifascistas, a Segunda Grande Guerra, não se venceu com flores ou palavras doces, nem com o encolher dos ombros ou o silêncio, mas com dureza e determinação, nos trilhos da resistência ou no fragor do campo de batalha.

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      A linha vermelha

      Já fui, e não foi por pouco tempo, bastante intransigente no que diz respeito à forma de estar, aos valores assumidos, à partilha e à defesa de convicções pessoais. Um tanto intolerante, mesmo, sem dúvida, apesar de desde cedo ser contrário a crenças assentes em absolutos. Nessa época, como acontecia com muitos daqueles e daquelas com quem partilhava percursos e projetos de futuro, para nós e também para a humanidade inteira, incompatibilizei-me mesmo com algumas pessoas, por vezes com razões que ainda hoje considero inteiramente legítimas, embora outras por puro sectarismo e, à época, uma ainda frágil e incompleta compreensão da diversidade, da complexidade e da fragilidade do humano. 

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        A guerra contra a Covid-19 e os partidos

        Começo por uma citação um pouco longa retirada do editorial do Público desta sexta-feira, assinado por Manuel Carvalho, com o qual concordo quase por inteiro: «Tudo o que se tentou evitar até agora está a acontecer. Chegámos ao limite e, se formos muito para lá do ponto em que estamos, corremos o risco de agravar os danos da pandemia com a perda da estabilidade política e social e da auto-estima que sustenta o nervo de um país. Se o confinamento falhar, o preço será altíssimo. Cada um de nós e todos enquanto comunidade temos muitos interesses em jogo nesta ameaça. (…) Resta uma só solução: levar o confinamento muito a sério. Olhar, como pediu o primeiro-ministro, para as regras e não para as excepções. Perceber que a decisão de cada um conta, seja a de um caixa de supermercado ou de um empregado dos serviços que pode trabalhar a partir de casa. Relativizar o perigo é exponenciá-lo. Virar-lhe as costas, por fadiga ou impaciência, por descrença nos políticos ou por dúvidas sobre as prescrições dos especialistas, é fugir à responsabilidade. Ficar em casa é mais do que uma opção individual: é um acto político, uma prova de empenho cívico, um gesto de resistência em favor do bem comum.»

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          A Democracia na América

          O título deste artigo recupera o de uma das mais influentes obras de Alexis de Toqueville, A Democracia na América, publicada em 1835 e escrita após o périplo pelos Estados Unidos que o filósofo, historiador e diplomata francês levara a cabo quatro anos antes, no tempo do presidente democrata Andrew Jackson. Apesar da sua origem aristocrática, Toqueville era um ardente defensor dos ideais de democracia e de liberdade, tendo procurado com o livro dar a conhecer aos seus compatriotas o exemplo de um sistema político que via como avançado. As caraterísticas que mais o surpreenderam durante a viagem foram, por um lado, a forte dimensão de separação e de equilíbrio dos poderes legislativo, executivo e judicial, e, pelo outro, a forma comprometida como muitos cidadãos comuns se interessavam genuinamente por debater os temas que a todos diziam respeito. Fala mesmo de ter assistido a um «permanente tumulto», devido a muitos americanos se empenharem naturalmente em «tomar parte do governo e discutir as suas medidas».

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            A banalização da «opinião» e os incidentes no Capitólio

            Fora dos Estados que vivem sob regimes tirânicos, onde pensar e falar de forma livre é considerado crime, nas últimas décadas a valorização da opinião tem sido constante. Porém, tem ocorrido também uma perigosa degradação do conceito. O que tem ampliado o seu impacto é sobretudo a expansão da educação dos cidadãos, que sempre permite uma maior agilidade do pensamento e da expressão individual, bem como o alargamento dos direitos, entre estes o direito à palavra. Em sentido contrário, o efeito provocado pela ilimitada explosão da comunicação interpessoal, em particular aquela que passa pelo uso da Internet e das redes sociais, tem estimulado a sua desvalorização.

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              O rosto do populismo

              Temos um panorama razoavelmente claro da base social do populismo quando observamos as imagens que mostram a espécie de pessoas que se apresentou ontem no Capitólio para boicotar a certificação da eleição presidencial de Joe Biden. E que, por certo, se lhes tivesse sido permitido – a notória e escandalosa moderação da polícia não foi tão longe -, não teria problemas em linchar membros do Congresso e jornalistas. Olhamos aqueles rostos, a forma de vestir, de gesticular e até de caminhar daqueles indivíduos, maioritariamente homens, alguns com roupas ou acessórios militares, vemos o sentimento de impunidade e a satisfação triunfante que visivelmente exibiam, e damos de caras com o rosto da ignorância e da frustração social transportados na América por uma importante fração de deserdados «brancos».

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                Banalidades necessárias

                Mais uns quantas banalidades. Banalidades necessárias, porém, dado corresponderem a evidências que, justamente por o serem, com frequência acabam esquecidas. O uso da expressão «isso já se sabe», tantas vezes escutada sempre que alguém procura lembrar ao cidadão comum alguns princípios, verdades e lógicas que convirá não esquecer, corresponde sempre a uma combinação de arrogância e de descaso. De arrogância quando exprime uma rejeição do senso comum, sempre indispensável à vida coletiva, embora tantas vezes esquecido. E de descaso quando traduz o encerramento de quem a expressa na sua pequena bolha. A dos que «já sabem» e preferem não tocar no assunto porque isso os aproxima de uma vulgaridade que abominam.

                Isto vem a propósito de uma experiência constantemente partilhada no contacto com os outros, em particular com quem assume posições públicas, seja a que escala for. A experiência de quem prega a justiça, a ética e a coerência, mas apenas em abstrato, jamais as aplicando à sua própria vida, à relação empática com os outros, ou à apreciação do comportamento objetivo do seu grupo ou da sua família política. Encontra-se por todo o lado, bem sei, mas na direita, estruturalmente assente na defesa do individualismo, da ordem e da desigualdade, acaba por ser uma contradição «natural». Nela bem menos chocante, afinal, do que quando ocorre entre pessoas situadas no espectro da esquerda, que é, ou deverá ser, tendencialmente solidária, igualitária e justa.

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                  Liberdade, crime e castigo

                  Quem conhece aquilo que é verdadeiramente combater pela liberdade contra a opressão, e sobretudo quem, pela sua origem, geração, etnia, género, convicção ou escolha, vive ou viveu essa luta na própria pele, não pode deixar de sentir o maior desprezo e a máxima indignação pelas pessoas que em regimes democráticos falam de «falta de liberdade», ou mesmo de «ditadura», quando se referem a tomadas de decisão coletivas que implicam simplesmente a aceitação de direitos e de deveres partilhados. A conhecida frase, da autoria de Herbert Spencer (1820-1903), a recordar que «a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro», não determina formas de censura, mas sim indispensáveis e partilhados modos de responsabilidade e de respeito pelo semelhante. Imprescindivel em sociedades onde o grau de independência, de autonomia, de liberdade, de escolha de cada um de modo algum pode validar o prejuízo dos demais e o do todo. Assim acontece por estes dias de continuada e triste clausura associada às dolorosas limitações relacionadas com a pandemia em curso. Cumpri-las não é autoprivação da liberdade, mas uma obrigação para com os demais e para com o futuro que pertence a toda a gente. Um gesto de proteção pessoal, mas de igual modo de cidadania. E por isso também, combatê-las é grave crime antissocial, no limite merecedor de castigo.

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                    Dois postais de bom ano | 2º Postal

                    Não faço a menor ideia do que pode levar cada pessoa a usar as redes sociais como lugar de comunicação frequente, ou mesmo, em certos momentos, aquele que mais utiliza. Provavelmente, em tantos milhões de humanos que vivem parte dos seus dias ligados a estas máquinas ligadas a outras máquinas, poucos existirão cujas razões repliquem exatamente as dos demais. A mesma coisa no que diz respeito à forma mais ou menos ativa, ou mais ou menos passiva, como as usam, ao que delas esperam, às experiências que têm, às expectativas que podem (ou não) manter ou ir perdendo. Trata-se de um meio difícil, como muito bem sabe quem antes da introdução do digital e do uso das redes se habituara a escrever, a falar, a fotografar, a criar ou a contar com um objetivo de partilha, mas agora o faz sob condições inteiramente renovadas. Este meio dispõe de possibilidades imensas, mas também de armadilhas e de alçapões que dificultam o caminho, podendo levar a tropeções e a quedas. Mais caminhos, já se sabe, implicam inevitavelmente mais hipóteses de os cruzarmos, sempre com as inerentes vantagens e perigos.

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                      Dois postais de bom ano | 1º Postal

                      No último dia de 2013 publicava aqui um postal, a acompanhar os habituais votos de bom-ano, onde se misturavam em dose desequilibrada a esperança e o desânimo. Nessa altura, estávamos no pico da atuação do governo PSD/CDS. Aquele, convém não esquecer, que então respondeu à crise global do capitalismo e dos mercados reduzindo dramaticamente as condições de vida dos trabalhadores – em particular os da função pública e os aposentados -, diminuindo-lhes ou retirando-lhe direitos com décadas de conquista, cortando feriados, forçando muitos milhares de jovens com formação elevada a sair de Portugal, submetendo-se a todos os ditames dos agentes do neoliberalismo que regiam os destinos da União Europeia, colocando o país de mão-estendida perante os outros. Ao mesmo tempo que prometia um crescimento económico assente principalmente na redução do consumo e na exploração do trabalho.

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                        Um Natal sem fé

                        Perdi a fé – falo dessa forma de adesão incondicional a uma verdade não demonstrável considerada inquestionável e estabelecida para todo o sempre – por duas vezes na vida. Sou capaz de datar os momentos em que isso aconteceu, mas prefiro indicar a idade que tinha nessa altura.

                        A primeira vez acabava de fazer catorze e tratou-se da perda de fé nos dogmas da Igreja Católica Apostólica Romana, na sua doutrina e nas suas liturgias. Uma perda que chegou com as minhas primeiras dúvidas sobre o caráter indiscutível de todas as certezas e foi fechada quando tudo aquilo que escutava nas cerimónias religiosas passou a afigurar-se um conjunto de monótonas vacuidades sem qualquer beleza ou capacidade de mobilização. Com essa perda veio também, algum tempo depois, uma outra, que foi a da crença na existência provável de um Deus único e superior, capaz de sobrepor a sua vontade à dos seres humanos.

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                          Nem sacerdote, nem anjo

                          Como historiador profissional que ao mesmo tempo tem uma intervenção pública regular enquanto cidadão e não separa com um cordão electrificado as duas qualidades, de tempos a tempos encontro sempre alguém que, ao discordar de uma opinião que possa ter expresso, justifica essa discordância associando, a razões ou desacordos inteiramente legítimos, uma frase que integra um juízo de valor inaceitável: «parece impossível um historiador escrever isto». Não porque eventualmente tenha expresso algo de errado ou de impreciso do ponto de vista do conhecimento do passado, mas porque a pessoa que emite esse juízo chama à colação uma certa ideia de historiador que o desqualifica se ousar sujar as mãos na realidade do mundo em que vive. Como se fosse um sacerdote, um etéreo oficiante do passado, que teria o dever de se desvincular inteiramente do presente, ainda que muitas das opiniões que neste campo emita o possam ser na sua qualidade de cidadão, não de profissional do «métier».

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                            A ignorância é atrevida e perigosa

                            Tem corrido nos jornais e nas redes sociais uma controvérsia, mais uma, que envolve declarações do conhecido jornalista e responsável por romances de sucesso popular José Rodrigues dos Santos (JRS). Não irei repetir factos e argumentos que a integram e que podem ser facilmente encontrados por quem os desejar conhecer. Direi apenas que ela começou com o que JRS disse durante uma entrevista de promoção do seu último livro na RTP1, e depois repetiu num «esclarecimento», a propósito do caráter supostamente humanitário do gaseamento dos judeus nos campos de concentração e de extermínio nazis. Também não irei preocupar-me com o préstimo literário do autor – questionado por tantos, entre os quais me conto, mas também apreciado por muitos outros –, o que me levaria a um argumento bem diverso daquele que escolhi para esta crónica. Aquilo em que vou insistir, a partir deste exemplo, é no perigo que representa a manifestação da ignorância, em regra acompanhada pela manipulação da ignorância dos outros, por parte de pessoas que detêm um lugar de reconhecimento público. 

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                              Etc., Ficção, História, Memória

                              Pio IX e a Imaculada Conceição

                              Foi em 8 de dezembro de 1854 – há 166 anos, e não «há sete séculos», como hoje pude ler, embora na altura tenham sido invocadas referências bíblicas e dos primeiros textos da Patrística como justificativas para a decisão – que na bula Ineffabilis Deus o papa Pio IX proclamou o dogma da Imaculada Conceição. Basicamente, este dogma considera a concepção da Virgem Maria, «cheia de Graça», como ocorrida sem a mácula do pecado original, na qualidade de um sinal da intervenção da providência divina e de precaução para preparar, através de uma linhagem que fosse pura, a vinda de Cristo.

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                                Três memórias de Sá Carneiro

                                1. Aconteceu ao início daquela noite de 4 de dezembro de 1980. Estava no último ano do curso de História e vivia em Coimbra num quarto arrendado em moradia cuja proprietária, uma professora de piano já de idade avançada, fazia questão de se mostrar todos os dias assumida herdeira de uma família de republicanos, laicos e maçons. Daquela vez entrou quarto adentro sem bater à porta e num riso quase incontido deu-me a notícia da morte, no trágico acidente de aviação que tinha acabado de ocorrer, de Francisco Sá Carneiro, Snu Abecassis e Adelino Amaro da Costa. Não me parece hoje motivo de risota, e nem tal me pareceu naquela altura, mas o facto de ter acontecido o que aconteceu, como aconteceram outros sinais análogos perante o sucedido, pode hoje compreender-se se recuperarmos a memória de um tempo no qual Sá Carneiro era ainda, por muitos cidadãos, tomado como o mais perigoso líder da direita portuguesa.

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                                  O Primeiro de Dezembro e a História «objetiva»

                                  Em Dezembro de 1981, quando, ainda jovem recém-licenciado em História, comecei a dar aulas como assistente estagiário na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, contou-me o à época meu orientador, o professor Luís Reis Torgal, que quando escolheu o seu objeto da tese de doutoramento – intitulada «Ideologia política e teoria do Estado na Restauração» – foi aconselhado a não o fazer por este versar um «tema político» e uma época considerada por alguns professores mais conservadores como «demasiado recente». Parece impossível, mas até à era marcelista a história ali ensinada terminava em regra nos «Descobrimentos», e eu ainda cheguei a conhecer o docente da FLUC que, pela primeira vez, e já depois do 25 de Abril, abordou em aulas regulares esse tema ousado e supostamente atualíssimo que foi (era) a Revolução Francesa de 1789.

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                                    Contra o império da banalidade

                                    Num livro publicado em 1974, Banalidades de Base, à época um razoável êxito editorial, Raoul Vaneigem, a par de Guy Debord um dos principais teóricos da Internacional Situacionista – movimento que entre as décadas de 1950 e 1970 influenciou bastante certos meios da vanguarda artística e intelectual ocidental –, considerou que as sociedades sufocam «sob o manto de banalidades, reproduzidas de geração em geração e adaptadas ao gosto de cada época, que fazem soar através dos séculos a sentença de morte e a vaidade aplicadas aos destinos humanos». Os situacionistas procuravam conferir ao conceito de mudança revolucionária uma dimensão intensamente vivencial, não apenas associada à transformação política, e a frase de Vaneigem procurava dar conta da importância, numa lógica de emancipação, do que havia a fazer para escapar à escravizante ditadura que a banalidade exerce sobre a vida de todos os dias.

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