Tem corrido nos jornais e nas redes sociais uma controvérsia, mais uma, que envolve declarações do conhecido jornalista e responsável por romances de sucesso popular José Rodrigues dos Santos (JRS). Não irei repetir factos e argumentos que a integram e que podem ser facilmente encontrados por quem os desejar conhecer. Direi apenas que ela começou com o que JRS disse durante uma entrevista de promoção do seu último livro na RTP1, e depois repetiu num «esclarecimento», a propósito do caráter supostamente humanitário do gaseamento dos judeus nos campos de concentração e de extermínio nazis. Também não irei preocupar-me com o préstimo literário do autor – questionado por tantos, entre os quais me conto, mas também apreciado por muitos outros –, o que me levaria a um argumento bem diverso daquele que escolhi para esta crónica. Aquilo em que vou insistir, a partir deste exemplo, é no perigo que representa a manifestação da ignorância, em regra acompanhada pela manipulação da ignorância dos outros, por parte de pessoas que detêm um lugar de reconhecimento público.
No mundo contemporâneo este perigo é ampliado por três fatores que se completam. O primeiro deles é o recuo das diferentes ideologias e dos pressupostos éticos que estas sempre contêm, enquanto instrumentos de interpretação global da vida e da história, fornecendo um quadro de valores, e uma dimensão de consideração por quem os assumia, que no passado tendeu a destacar a importância de muitos princípios socialmente partilhados. O segundo é a perda de prestígio da chamada «cultura geral» e de um conhecimento centrado na intervenção das humanidades, capazes de disseminar uma aceitação do valor do exemplo e da importância do saber que geralmente remetia os ignorantes ou os apenas medianos a um lugar de obscuridade e a uma posição de modéstia. Por fim, o terceiro fator foi introduzido, em tempos bastante mais recentes, pela revolução tecnológica vivida pelos meios de comunicação e de informação, em boa parte controlados pelos grupos económicos, que deu voz – muitas das vezes, uma voz de grande destaque – a personalidades que valem pela imagem que vendem e jamais são submetidas a outro escrutínio que não o do «sucesso».
O resultado da interação destes fatores amplia, a uma escala sem precedentes, uma dimensão de destaque social conferida a determinados protagonistas, sejam estes escritores, políticos, pregadores, atores, cantores ou desportistas, que ultrapassa em muito as suas reais capacidades e facilmente, como diz a conhecida frase, «lhes sobe à cabeça». É claro que esta realidade é muito antiga e não nasceu recentemente. Poderia recuar-se aqui muito mais, mas bastará a viagem rápida a uma leitura de As Farpas, as crónicas publicadas na imprensa entre 1871 e 1882 por Eça de Queirós e por Ramalho Ortigão, para aferirmos da antiguidade da crucifixão simbólica de certas figuras, que se observam a si próprias como vultos, projetados pela força de circunstâncias que os beneficiam, e que perdem o controlo da sua própria realidade, mostrando um inaceitável atrevimento. O provérbio «a ignorância é atrevida» tem em parte esta origem: a capacidade de, por desconhecimento dos terrenos que pisa, mas um ego desproporcionado, alguém fazer afirmações que estão muito para além do razoável.
No caso em apreço, esta atitude é particularmente condenável, e não pode passar incólume, porque diz respeito à banalização, que é uma forma de negação, de um dos maiores crimes da história da humanidade. Para mais vazada em livros e entrevistas de grande circulação. Na verdade, JRS apresenta os escritos que assina e publicita por todos os meios como «livros de história», ao ponto de alguns deles serem usados como tal em escolas, ajudando a propagar graves erros e desvios. Naturalmente, a ficção histórica usa o passado como tema, inventando ou recompondo personagens, situações, falas, ambientes, soluções. É sua caraterística fundamental enquanto género, com exemplos de enorme qualidade. Nada contra e, aliás, de pouco resultaria sê-lo, pois existe há séculos e permanecerá no futuro. Mas tudo a desfavor de usar situações do passado particularmente terríveis e dolorosas – como os crimes perpetrados sobre milhões de pessoas por regimes totalitários –, para, perigosamente, projetar junto dos leitores, e em particular das novas gerações, revisões ou adulterações de uma realidade vivida que deve sempre ser lembrada como exemplo a não deixar repetir. Os resultados podem ser irreparáveis.
Rui Bebiano
Imagem: Jadwiga Bogucka, sobrevivente de Auschwitz (fotografia de Kacper Pempel)Publicado no Diário As Beiras de 12/12/2020