Directamente dos cuidados intensivos, reclamando capacidades que estão para lá do humano, Fidel «fala» de si próprio e do lado visível da doença aos compatriotas e simpatizantes de todo o planeta. Não se esquece de deixar claro que, apesar das hemorragias e do peso dos anos, permanece «atento a tudo o que se passa». O que pode espantar é a forma como a generalidade dos meios de comunicação aceita este logro sem pestanejar, veiculando-o como notícia e não como o acto de propaganda e de prestidigitação que é. Nas consciências dos que dele não retiram senão o valor simbólico e o impacto mediático, o «mito cubano» guarda ainda uma grande parte da sua força e antigo sortilégio. Se retirarmos os gusanos de Miami, ninguém parece particularmente satisfeito com o triste cenário que envolve agora o velho comandante dos barbudos.
«…en attendant les vacances»
Sobre fotografia sem título de Robert Doisneau
Uma bola em Agosto
Ele referia-se assim a ela. «Sempre lhe tive muito carinho. Porque se não a tratamos com carinho, não nos obedece. Quando vinha até mim, dominava-a e ela obedecia. Às vezes ela ia por aí e eu: ‘Venha cá, filhinha’, e trazia-a. Tratava-a com tanto carinho como trato a minha mulher. Tinha-lhe uma ternura tremenda. Porque ela é fogo». Quem falava desta maneira da bola de futebol era Didi, o centro-campista brasileiro do Mundial de 58. Não muitos anos depois, nós, os putos que jogávamos ao acaba-aos-dez-muda-aos-cinco numa rua pouco frequentada – longe, por justificada conveniência, do olhar dos nossos progenitores – ainda sabíamos de cor o nome dos três mosqueteiros: Garrincha, Pelé e Vává. Didi era o quarto, sem o qual, como acontecia no romance de Dumas, os outros de pouco valeriam. Foi ainda o inventor do remate em folha seca, feito com parte exterior do pé. Cinquenta anos mais tarde alguém se lembraria de lhe chamar trivela, dando erradamente por seu criador um rapaz português de origem cigana e com nome de Semana Santa.
Algumas destas coisas, e muitas outras mais, aprendia-as num livro – como sabe sempre bem, cheio de humor, drama, acção e até algum mistério – que nos fala da paixão e das lições do futebol. Chama-se Futebol: Sol e Sombra. Foi escrito pelo uruguaio Eduardo Galeano e editado pela Livros de Areia. Ponha-o lá na listinha dos livros para ler em Agosto e vai ver que depois se sentirá uma pessoa melhor. E perderá alguma ingenuidade também.
O meu pé esquerdo
1. Porque será que recusar qualquer concessão diante do fanatismo religioso, execrar todas as tiranias e qualquer governo de fundamentação teocrática, combater frontalmente o outro que não aceita a minha alteridade, aceitar o direito de qualquer povo (de qualquer povo) a seguir o seu próprio trajecto histórico (e a defendê-lo, naturalmente), se afiguram, aos olhos de tantas pessoas que se consideram partidárias dos direitos políticos e sociais democráticos mais elementares, como vestígios de simpatia para com os sorrisos deploráveis de George W. Bush e da menina Condoleezza ou as posições inequivocamente belicistas dos «falcões» sionistas? Claro que esta é apenas uma pergunta retórica.
2. A uns como a outros, a «eles» como a «nós», apesar da guerra, da «luta de classes» ou daquilo que parece ser um confronto de civilizações – de identidades, se quisermos – espera-os, espera-nos, uma única missão. Pietro Citati identifica-a: «escavar o terreno do Éden que há em cada um de nós e demonstrar que existe apenas uma raiz, que todos os ramos brotam de um mesmo tronco, que todos os pensamentos, as sensações, as discórdias e as crenças não passam de uma única vaga de luz».
[Figuras Exemplares] Os bons piratas
O pirata menos bem sucedido da história terá sido provavelmente Edward England, cujas repetidas atitudes de generosidade no sentido de poupar as vidas dos prisioneiros fez com que os seus próprios homens se revoltassem contra ele e o abandonassem numa ilha deserta. Mas é possível encontrar vestígios de outros «bons piratas», como é o caso do singular capitão Mission, marinheiro libertário que no tempo de Luís XIV comandou o navio La Victoire. Gilles Lapouge, considera a vida naquele barco como «um comício ininterrupto» e Larry Law descreve alguns dos seus costumes. Assim, se capturavam negros, os seus tripulantes não só tinham de os libertar como eram forçados a ouvir um longo discurso sobre a igualdade das raças. Se por azar matavam em combate o capitão de um navio inglês, guardavam-lhe o corpo até chegarem a terra e enterravam-no com um piedoso sermão sobre a não violência. Quando os marinheiros se embebedavam, Mission fazia-lhes sempre uma prédica sobre as virtudes da temperança. E, para cúmulo da desonra pirata, terá substituído a bandeira negra por um pavilhão branco com a inscrição «Deus e Liberdade». O capitão Johnson tê-lo-á incorporado na lenda com a sua História Geral dos Piratas, durante muito tempo atribuída a Daniel Defoe, e de que a Cavalo de Ferro editou já o 1º volume (de Mission falar-se-á apenas no 2º). Uma leitura apropriada para este tempo de mar e praia.
Mais dados sobre estas nobres pessoas e sobre muitos dos seus correligionários de sentimentos menos maleáveis no excelente O Grande Livro da Pirataria e do Corso, de Luís R. Guerreiro.
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Diz-me C. que tem lido os meus últimos posts e lhe pareço amargo. Sabes, é verão, o calor aperta e, como sempre nesta altura do ano, ando um bocado cansado. Só isso, garanto, porque de resto vivo no melhor dos mundos. Aqui não se sentem as bombas, apenas os mosquitos e o ruído do elevador. Encosto-me à janela, vou fumando um cigarro e murmuro Northern Sky. A ouvir em paz um dos meus mortos preferidos.
Planeta Hezbollah
O documentário sobre o Hezbollah que a SIC-Notícias exibiu ontem – realizado há três anos por jornalistas identificados, com testemunhos também eles identificados com clareza – terá deixado a qualquer espectador de sentimentos genuinamente democráticos uma terrível impressão. Nele se mostraram os contornos de uma organização islamita, fortemente financiada a partir do exterior, que assume um paternalismo infame sobre a causa palestiniana, procurando «ensinar» os seus combatentes a porem de lado as inibições e a fazerem uma verdadeira «revolução islâmica». Nele foi possível ver uma força muito bem armada, equipada como um exército regular, com bases escondidas e instalações não identificadas espalhadas por ruas e ruelas de cidades libanesas, a artilharia pesada apontada sempre para o lado de lá da fronteira. Nele se deparou com um poder autónomo que não dá importância alguma às autoridades locais e manipula sem vergonha – incluindo nessa manipulação pagamentos em dinheiro e oferta de cuidados de saúde que os libaneses não podem custear – a extrema miséria da população muçulmana xiita, desprezando ao mesmo tempo os restantes 55% da população do país. Nele foi possível verificar a imposição nas zonas controladas de normas estritas de «comportamento islâmico», principalmente aplicadas às mulheres, e que no Líbano vinham sendo objecto de uma grande tolerância. Nele se ouviu, repetidamente, um discurso primário apelando à jihad e lançado contra tudo aquilo que se não pareça com uma visão teocrática e anti-ocidental do mundo. Nele se exibiu um ódio extremo a toda a tradição histórica de convívio étnico e religioso da qual o Líbano se manteve na região como um farol. E, acima de tudo, nele se colocou, diante dos olhos de quem o quis ver, um imenso menosprezo pela democracia representativa e pela liberdade de expressão, por eles diabolizadas como criaturas dos EUA e de Israel. Como dizia no documentário um dos seus principais responsáveis: «nós vamos provar, através do apoio democrático do povo, que a república islâmica é o único caminho». «E se o povo não aceitar democraticamente esse caminho?», questionou o entrevistador. «Então prosseguiremos o nosso combate por todos os meios», respondeu.
É a esta gente que, órfã das revoluções de que precisa para não diluir os seus mitos mais profundos, parte significativa da nossa «opinião progressista» – para utilizar uma expressão tão arcaica quanto eufemística – reconhece agora toda a legitimidade na luta «de massas» contra o estado de Israel. E na guerra – extrema e atroz, com o seu longo cortejo de inocentes vítimas, como todas as guerras – que acontece à nossa frente. Em que planeta estamos nós?
A meretriz e os alquimistas
Singular preocupação tem retirado o sono aos naturais da minha cidade. A razão parecerá fútil, mas é séria: sabendo-se que o equipamento tradicional da sua principal equipa de futebol é negro com os números dos atletas gravados a branco, uma imposição comercial acaba de impor o dislate de transmutar o branco em ouro. E se, do ponto de vista cromático, o branco implica tanto a soma como a ausência de todas as cores, balanceando simbolicamente entre a força do dia, a pureza e a pulsão da morte, já o dourado evoca a autoridade e o fogo purificador. O que não é obviamente a mesma coisa. A ordem natural do mundo – à escala local, naturalmente – está assim posta em causa, tendo por isso um antigo vice-presidente do clube escrito em artigo publicado, dando voz à aflição dos conimbricenses, que ao permitir-se a inserção dos números dourados nas camisolas da Académica estará esta «a prostituir-se». A força do argumento irrompe então, esmagadora: «com esta medida, fica claro que a Briosa está à venda e que no deliberado conspurcar da sua centenária e prestigiadíssima camisola está a leilão também a sua ‘alma’ de instituição sui generis, ora metamorfoseada em banal meretriz, que sobe o desce a saia, sem pudor ou vergonha, ao sabor das suas conveniências e necessidades financeiras». Argumento que, sem dúvida alguma, se revelará incontroverso.
Joselito, trauma ibérico
Quantos rapazinhos, mais ou menos da minha geração, do Cabo Espichel às faldas dos Pirinéus, terão sido maternalmente atormentados pela apresentação do niño de la voz de oro como imaculado modelo de todas as virtudes?
[versão para meninas]
Longe de Deus e perto do céu
«Le merveilleux de cette entreprise infernale, c’est que chaque chef des meurtriers fait bénir ses drapeaux et invoque Dieu solennellement avant d’aller exterminer son prochain.» (Voltaire, do artigo Guerre no Dictionnaire Philosophique)
Se, para além do antiquíssimo cortejo de dor, destruição e morte, existe na guerra algum factor de inevitabilidade, ele deve encontrar-se na quase impossível posição de neutralidade de quem com ela se veja forçado a conviver. As tentativas para alcançar esse estado de inocência são tão impossíveis de manter quanto difíceis de justificar. E nem mesmo os místicos o conseguiram demasiadas vezes, como o comprovam as legiões multiétnicas de mártires da paz. O máximo que se pode conseguir nestas situações é fazer de contas que se não pertence a este mundo, pactuando ao mesmo tempo com a ordem das coisas que o domina.
Debaixo de fogo, entre gritos e explosões, respirando o cheiro inconfundível do combate – conhece-o bem quem já esteve em campo de batalha – é estranha a imparcialidade. Ali mata-se ou morre-se, foge-se em pânico ou fica-se paralisado pelo medo, luta-se por uma das partes, ajudam-se os seus feridos ou acalmam-se os que perdem o controlo, mas jamais poderá agir-se como se nada daquilo estivesse a acontecer. E, ainda que a confortável distância, ainda que em posição de presumível segurança, é difícil manter a equidade. Basta recordar a forma como os pacifistas foram tratados durante a Primeira Guerra Mundial, acusados de ausência de patriotismo e de pacto com o inimigo, ou como na mesma altura foram vistos certos membros das vanguardas artísticas, culpados de pusilanimidade. De resto, perante o desfile trágico dos refugiados, a visão dos corpos feitos em papa, as crianças em choque, os adultos transformados em bestas ou em cobardes, como ficar indiferente?
Pode, no entanto, pôr-se a questão em termos diferentes: será possível, em cenário de guerra, recusar a indiferença sem que tal signifique tomar partido por uma das partes? A guerra em curso no Médio Oriente recoloca a urgência desta questão e, de novo também, a necessidade de definir um esforço de resposta. A maioria das tomadas de posição – particularmente visíveis aqui no mundo dos blogues – tende a desenhar o confronto a traços unicolores, sendo raros os comentadores que assumem posições de equidistância. Separa-se portanto, quase sempre, o lado bom e justiceiro da metade má e criminosa. À esquerda, esta realidade é particularmente evidente, diabolizando-se inequivocamente os israelitas e glorificando-se a justeza de uma «causa árabe» cuja dimensão «genérica» jamais é explicada, para além da oposição, nem sempre racional, ao inimigo americano. À direita, o inverso: a assumpção do universo islâmico como factor de instabilidade e a glorificação entusiástica do carácter higiénico das bombas que o Estado hebraico faz cair sobre o martirizado Líbano. Somente a direita mais extrema, simultaneamente anti-semita e anti-sionista, parece bloqueada. Mas o quadro não pode ser assim tão simples e, razoavelmente longe dos combates, será possível esboçar uma reflexão comprometida e razoavelmente serena. Embora mais dura, uma vez que impõe o questionamento de certezas – determinadas por credos religiosos ou pelos vestígios das velhas metanarrativas – que é muito mais cómodo aceitar como inabaláveis. Talvez seja, então, a vez de uma opinião inequivocamente laica tomar a palavra.
Chá no deserto
Do outro lado do Estreito, sem papéis e sem bagagem. Aceitar o calor. Falar a língua do colonizador tardio. Gesticular um pouco, se necessário. Seguir de dedo no mapa as cidades invisíveis (de Bowles). Espreitar os gineceus das suas casas. As fontes interiores que as suavizam. As sombras que se sucedem às sombras. Guardar o rumor berbere e depois o silêncio, sem olhar as espadas. Murmurar: «não importam as espadas».
Na R.D. do Kitsch
A produção de objectos destinados a servirem no quotidiano comum dos antigos «países socialistas» europeus ajuda-nos a entender as origens do seu rápido colapso e da desafectação de um número crescente dos seus cidadãos em relação ao universo no qual eram forçados a habitar. A partir da década de 1950, enquanto no mundo em redor emergiam padrões de vida orientados no sentido de uma renovada concepção estética e funcional da vida, naqueles espaços protegidos economias bloqueadas e sistemas políticos de grande rigidez mantinham-se em constante guarda perante qualquer indício de mudança que ecoasse a partir de um ocidente eternamente diabolizado e inequivocamente «decadente». Crescia assim uma paisagem visual fora do tempo, um mobiliário de todos os dias alheio às tendências da nova cultura-mundo – orientada para o consumo e para o consumismo, sem dúvida – que, fora daquelas «utopias materializadas», ia definindo uma outro realidade no domínio dos padrões de vida, do gosto e do conforto.
Na antiga República Democrática Alemã, esta fórmula de isolamento viu-se ainda integrada na tradição germânica do popularmente chamado «forte e feio». Uma tendência de origem prussiana, acentuada sob o nazismo e que ainda se não encontra totalmente apagada, como o comprova a observação atenta das prateleiras dos hipermercados Lidl ou de um par de sandálias Dr. Scholz. Objectos construídos para funcionarem, mas também para durarem, sem gastos supérfluos nem pormenores «desnecessários», no interior de um universo que, ao mesmo tempo, se presumia exemplar e, pela intervenção de acções sistemáticas de «vigilância revolucionária», isento de qualquer influência provinda do mundo capitalista. Pequenas peças do quotidiano de uma sociedade e de um regime aplicados a combaterem, como havia anunciado Walter Ulbricht em 1950, o chamado «formalismo» (que, nos tempos de Estaline, Andrei Jdanov igualmente procurara extirpar da União Soviética). Em seu lugar – e também ao nível do design introduzido nos cenários de cada dia – a valorização das artes tradicionais e regionais, a fuga insistente a uma visualidade que pudesse anunciar qualquer alternativa aos padrões locais do realismo socialista e de uma suposta «frugalidade proletária», a total exclusão de formas de inovação estética consideradas anormais, substituídas por uma orgia de fealdade e de kitsch. Esse universo doméstico de cartão do qual é possível recolher uma sombra na revisão de Adeus Lenine, de Wolfgang Becker. E que se encontra agora acessível através de DDR Design, um pequeno álbum-choque da Taschen.
Lobos e cordeiros
Sugeri aqui, há alguns posts atrás, a leitura de As Identidades Assassinas, do cristão-laico libanês Amin Maalouf. Livro que deveria iluminar, se é que ainda permanece iluminável, a consciência crítica de alguns militantes da esquerda ocidental, capazes de continuarem a considerar o Outro islâmico – provindo de um Islão peculiar, maioritariamente violento e intolerante nas actuais circunstâncias históricas – como integrando uma espécie de comunidade angélica à qual todos os «pecadilhos» devem ser perdoados. Do lado oposto, apenas seres dotados de chifres e patas de bode – os israelitas, claro, todos eles – comandados à distância por um senhor sinistro de barbicha, chapéu alto e sobrecasaca azul. Regresso ao livro para sublinhar, a propósito, uma frase de Maalouf: «Quando atribuímos o papel de cordeiro a uma determinada comunidade e o de lobo a outra, o que fazemos, da nossa parte, é conceder adiantadamente a impunidade aos crimes de uma delas». Visão simplista, unilateral, que será sempre sinal de uma perigosa cegueira. Sobretudo quando, confundidos o rebanho e a alcateia, se torna difícil distinguir as espécies.
Nocturno
Em A Grande Enciclopédia do Conhecimento Obsoleto, de José Carlos Fernandes
Deco: light or dark?
Neste momento nada me move contra a Deco, a «Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor». Muito pelo contrário: trata-se de uma organização de utilidade e à qual muitos cidadãos recorrem em desespero de causa, quando têm problemas que a simples eficiência do vendedor de televisões, a comprovada simpatia do mecânico do automóvel ou a bondade da funcionária das finanças não possam resolver. Aliás, já fui assinante das revistas Proteste e Dinheiro & Direitos que a Deco edita, e só deixei de o ser pelos motivos absolutamentes supérfluos que se podem depreender daquilo que digo mais abaixo. Mas a Deco mantém também algumas práticas que me parecem pelo menos discutíveis.
Não falo das questões meramente estéticas, que aliás não serão de somenos. Os seus e as suas porta-vozes, vestem todos, absolutamente todos, fatos domingueiros ou saias-e-casaco de baptizado que mais parecem uniformes. E eu não gosto de uniformes. Além disso, as suas publicações têm sempre um grafismo espalhafatoso e ultrapassado, como a publicidade das festas do Santo Padroeiro (para além do hábito estranho de analisarem, muitas das vezes, produtos descontinuados). As campanhas para angariação de sócios, por sua vez, oferecem brindes de quermesse inenarráveis que apresentam como fantásticos gadgets. Mas admito que tudo isto seja irrelevante, resultado da mania parva de tentar meter beleza naquilo que dela não carece para funcionar. Agora o que já me parece bastante discutível é que a Deco não promova campanhas públicas relacionadas com as úteis descobertas que faz, que não divulgue com clareza os nomes das marcas e das empresas prevaricadoras, que disponibilize informação actualizada apenas a sócios pagantes. Esta consideração da defesa do consumidor como uma irrelevância enquanto movimento social seria pouco grave se por aqui existissem outras organizações e movimentos de cidadãos capazes de agirem, em alguns casos, através de iniciativas directas de denúncia pública e de boicote. Assim não sendo, limitamo-nos a uma defesa por intermédio de formulários, requerimentos e cartas registadas com aviso de recepção, a qual, em certos casos, será muito insuficiente. Gostaria de ver a Deco com menos gravatas e mais acção, sinceramente. Até me fazia sócio.
PS – Escrevi ontem este post e hoje mesmo o Público fala da «relação empresarial de subordinação» que a Deco mantém com a sociedade luxemburguesa com fins lucrativos Euroconsumers SA, a qual detém também três quartos do capital da empresa que gere as revistas da organização. O título da notícia é: «Tribunal italiano exclui pareceiros da Deco da lista das associações de consumidores». À atenção dos cidadãos. (20/07/2006)
[O mundo a seus pés]
Samir Kassir e a desgraça árabe

Em 2005 Samir Kassir (سمير قصير em árabe) foi assassinado em Beirute aos 45 anos de idade. Professor universitário, jornalista e historiador, filho de um palestiniano-libanês e de uma síria, possuía dupla nacionalidade franco-libanesa e considerava-se essencialmente «um árabe laico», não alienado a uma cultura estrangeira e, estruturalmente, sem qualquer vontade de eliminar aqueles que não pensavam como ele. Enquanto activista de esquerda bateu-se pela independência da Palestina e pela implantação da democracia no Líbano e na Síria, sendo o autor de Considerações Sobre a Desgraça Árabe (Cotovia, 2004), um livro transparente e dramaticamente otimista, radicalmente crítico da deriva totalitária e obscurantista que vem dominando o mundo árabe, e que, tendo provavelmente servido para assinar a sua sentença de morte, acaba de ser editado em Portugal.
Nele se aborda o grande impasse no qual todas as sociedades árabes se encontram, enunciando os seus traços mais dramáticos: uma enorme taxa de analfabetismo, disparidade entre os imensamente ricos e os desesperadamente pobres, sobrepovoamento das cidades, desertificação das províncias, estabelecimento de padrões espúrios de intolerância, um crescente isolamento em relação ao resto do mundo. Aos quais se associa a intervenção coligada dos governos autoritários e dos dignitários religiosos que as dominam, a qual – com o apoio dos novos meios de comunicação, e entre eles o da estação de televisão Al-Jazira – trocou a formulação de políticas no sentido da resolução dos problemas pela aceitação de crenças messiânicas que deles desviam as atenções. E que são frequentes vezes apresentadas como parte de um legado histórico que Kassir, com um grande detalhe, mostra ser inexistente. Lembra, por exemplo, que a visão da jhiad bélica, encarnada na figura do istichhadi – aquele que pede o martírio – «só tem um verdadeiro antecedente na cultura árabo-muçulmana, na seita xiita (mas não árabe) dos Assassinos», fundada em 1090 por Hasan ibn al-Sabbah. Facto que uma grande parte dos muçulmanos, bombardeada pela propaganda radical e pelas prédicas de numerosos imãs, simplesmente desconhece.
Para muitos dos defensores da ordem obscurantista e do milenarismo mórbido que presentemente dominam esse universo múltiplo que querem transformar em uno – e para os seus complexados parceiros ocidentais, que fecham os olhos à barbárie considerando-a um aliado táctico na luta contra a globalização capitalista – falar hoje de modernidade árabe constituiria também uma quase «blasfémia intelectual». Porém, o próprio conceito de modernidade possui, tal como Samir Kassir procurou provar, uma tradição no mundo árabe, não sendo de forma alguma a expressão de um mal, de origem ocidental, diante do qual se impõe apenas a mais violenta das rejeições.
Kassir anotou ainda, finalmente, que apesar do cerco existe uma saída, tal como existem forças capazes de procurá-la. Sublinhou assim a necessidade de «recusar Huntington» e a ideia de uma oposição violenta entre «eles» e «nós», mas também a importância de «não esquecer Lévi-Strauss», afastando a consideração de qualquer «civilização» como «superior» ou como «decadente», e aceitando sempre que «a humanidade é una, pois deriva de um fundo antropológico comum». A forma como o autor fechou o livro é um apelo que resulta particularmente dramático em função daquilo que lhe aconteceu poucos meses depois: «Que os árabes abandonem o fantasma de um passado inigualável para encararem por fim, de frente, a sua história. E, um dia, para lhe virem a ser fiéis.»
PS – Quando do assassinato de Samir Kassir, Alain Gresh transcreveu no Le Monde Diplomatique, onde Samir colaborava desde 1981, as seguintes palavras de Elias Khoury: : «Je voudrais dire à ton assassin que le jour est proche, qu’il ne réussira jamais à tuer la liberté et la parole, sinon en nous tuant tous. Car les mots fabriqueront leurs nouveaux auteurs, la vie fleurira dans les champs, les cimetières se transformeront en portails pour la liberté». Durante o seu funeral cada um dos presentes exibia como arma simbólica uma caneta.
«Desculpe lá, usted!»
Parece-me boa a ideia de reexaminar os restos do rei fundador em condições científicas completamente diferentes daquelas que existiam no tempo de D. Miguel, senhor absoluto, quando pela última vez, num gesto de patriotismo mórbido, se procedeu à sua exumação. Para além dos possíveis resultados poderem satisfazer alguma curiosidade – o que me parece motivo mais do que suficiente para avançar com a pesquisa – eles podem vir também a constituir um factor de revisão da história pátria. Este segundo aspecto é, porém, justamente aquele que levanta mais objecções a quem possua do nosso passado comum uma concepção essencialmente sacral e povoada de mitos a preservar. Foi por isso que o médico legista Pinto da Costa, que passou parte da sua vida a remexer em cadáveres, fez conhecer a impressão que esta iniciativa lhe faz, uma vez que, para ele, «a verdade histórica está na estátua frente ao castelo de Guimarães». Já o arqueólogo Claúdio Torres sublinha a importância do mito afonsino como forma de «fundamentar o amor à pátria», defendendo um cuidado extremo nesta matéria. Um responsável do IPPAR, citado pelo Público, refere ainda o pudor necessário perante «os restos mortais de um chefe de Estado» (já agora, como se, ao tempo do rei Afonso, Portugal existisse enquanto Estado, e não como o singelo aglomerado de fidelidades vassálicas que era!).
Por mim, acharia muito interessante que o conhecimento científico comprovasse o mito, o que quase seria como se de repente me confirmassem que Robin Hood existiu de facto. Mas consideraria ainda mais estimulante que me viessem agora dizer que D. Afonso Henriques tinha 1 metro e 60 de altura, as mãos pequeninas, uma completa ausência de sequelas físicas da guerra e, quiçá, traços não-caucasianos. Teríamos então de reconstruir a nossa memória colectiva, o que não deixaria de ser um bom exercício para a imaginação. E, muito provavelmente, o presidente Silva ver-se-ia forçado, por uma questão de honestidade, a enviar a Don Juan Carlos de Borbón y Borbón uma carta pedindo desculpa pelo enorme equívoco no qual andámos a marinar durante estes últimos 860 anos.