«Desculpe lá, usted!»

Parece-me boa a ideia de reexaminar os restos do rei fundador em condições científicas completamente diferentes daquelas que existiam no tempo de D. Miguel, senhor absoluto, quando pela última vez, num gesto de patriotismo mórbido, se procedeu à sua exumação. Para além dos possíveis resultados poderem satisfazer alguma curiosidade – o que me parece motivo mais do que suficiente para avançar com a pesquisa – eles podem vir também a constituir um factor de revisão da história pátria. Este segundo aspecto é, porém, justamente aquele que levanta mais objecções a quem possua do nosso passado comum uma concepção essencialmente sacral e povoada de mitos a preservar. Foi por isso que o médico legista Pinto da Costa, que passou parte da sua vida a remexer em cadáveres, fez conhecer a impressão que esta iniciativa lhe faz, uma vez que, para ele, «a verdade histórica está na estátua frente ao castelo de Guimarães». Já o arqueólogo Claúdio Torres sublinha a importância do mito afonsino como forma de «fundamentar o amor à pátria», defendendo um cuidado extremo nesta matéria. Um responsável do IPPAR, citado pelo Público, refere ainda o pudor necessário perante «os restos mortais de um chefe de Estado» (já agora, como se, ao tempo do rei Afonso, Portugal existisse enquanto Estado, e não como o singelo aglomerado de fidelidades vassálicas que era!).

Por mim, acharia muito interessante que o conhecimento científico comprovasse o mito, o que quase seria como se de repente me confirmassem que Robin Hood existiu de facto. Mas consideraria ainda mais estimulante que me viessem agora dizer que D. Afonso Henriques tinha 1 metro e 60 de altura, as mãos pequeninas, uma completa ausência de sequelas físicas da guerra e, quiçá, traços não-caucasianos. Teríamos então de reconstruir a nossa memória colectiva, o que não deixaria de ser um bom exercício para a imaginação. E, muito provavelmente, o presidente Silva ver-se-ia forçado, por uma questão de honestidade, a enviar a Don Juan Carlos de Borbón y Borbón uma carta pedindo desculpa pelo enorme equívoco no qual andámos a marinar durante estes últimos 860 anos.

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