Devemos continuar a falar da Ucrânia?

Este é um olhar sobre os efeitos na opinião pública da guerra na Ucrânia, não «apenas mais um artigo» sobre esta. O conflito, que de início comentadores e especialistas militares acreditaram terminar em uma ou duas semanas, está a completar oito meses sem que se vislumbre um quadro de paz. De facto, o aparente desequilíbrio inicial, fundado na força bélica da Rússia, foi rapidamente contrariado por dois fatores: de um lado, a ajuda dos Estados Unidos, da NATO e da União Europeia ao governo de Kiev; do outro, a preparação dos militares da Ucrânia e a valentia do seu povo, que contam com a enorme vantagem moral de conhecerem o terreno e se oporem a um invasor. Ao mesmo tempo, a capacidade militar de Putin revelou-se bem mais frágil do que se supunha, compensando a debilidade com a ameaça do potencial nuclear e a mobilização de reservistas.

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    Atualidade, Democracia, Opinião

    Professor para sempre

    Ontem, 5 de outubro, celebrou-se o Dia Mundial do Professor. Professor não é apenas «aquele que dá aulas», como muitas pessoas dizem. Pode ser isso, sem dúvida, mas é sobretudo aquele e aquela que procura, a partir da sua formação – que deve prosseguir sempre, bem para além dos cursos que frequentou – contribuir para a disseminação do conhecimento e para a dinamização da capacidade crítica. Nos anos em que dei aulas, entre 1982 e 2022, quem nelas estava ouviu necessariamente esta recomendação: muito mais importante do que colecionar conhecimento, do que «saber coisas», é ser capaz de relacioná-lo e de tomá-lo na dimensão sempre mutante e contraditória que contém, pensando pela sua cabeça e jamais se submetendo a dogmas e ideias feitas, venham de onde vierem. Como «professor uma vez, professor para sempre», é o que continuo a defender.

      Apontamentos, Etc., Olhares

      Sobre o falso pacifismo

      Contava um meu professor que certo aluno, ao qual durante uma aula pedira que dissesse o que pensava sobre a função da guerra, teria afirmado odiá-la, pois sem ela não haveria história e não se veria forçado a estudar uma disciplina que detestava. Apresentado de forma ingénua, o que afirmou esse aluno vai no sentido da conhecida afirmação de Engels, deixada no seu Anti-Dühring, sobre ter sido a violência da guerra «a parteira da história». Isto é, a força dinâmica indispensável e decisiva no longo trajeto das sociedades humanas. A ideia não traduz, por parte do amigo e colaborador de Marx, uma vontade de glorificação do papel da guerra, mas tão só a constatação de uma realidade: goste-se ou não dela, os avanços e os recuos da história das sociedades humanas tiveram a guerra como constante cenário e decisivo fator de transformação.

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        Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Opinião

        Putin e o regresso ao passado

        O principal responsável pela política ditatorial e agressiva da Rússia, a par da China um imperialismo em franca e rápida ascensão – contra o norte-americano, que obviamente não se evaporou -, acaba de justificar, neste 30 de setembro, a anexação de parte de um país soberano que agrediu e procurou destruir com base num «referendo» completamente ilegítimo e manipulado e em nome de um suposto «anticolonialismo». Que é de facto, e acima de tudo, um combate contra as sociedades democráticas e os direitos dos povos, incluindo nestes o russo, à autodeterminação, à paz e à liberdade. Sei de muita gente que estará a delirar com as suas palavras, antevendo já o regresso a um passado pelo qual sentem uma nostalgia sem limites e a que pensam poder um dia poder regressar. Por certo já hoje assobiaram, pelo menos mentalmente, a Kalinka e os Barqueiros do Volga.

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          Temos um grande problema

          A generalidade dos comentadores de política internacional concorda em que o último discurso de Putin representa um evidente sinal do desespero de quem se viu com todas as suas previsões belicistas trocadas e se confronta agora com o espectro de uma derrota militar na Ucrânia. Depois da sua intervenção, a situação piorou ainda, com alguns sinais bem visíveis, como a fuga de pessoas da Rússia perante a ameaça de uma mobilização forçada para a guerra, o regresso das manifestações de rua, logo reprimidas pela polícia, o imediato reforço da ajuda militar ocidental a Kiev e as posições da China e da Índia, agora nitidamente desconfortáveis com o belicismo desvairado, na forma de fuga para a frente, do seu aliado e, mais recentemente, untuoso cortejador. 

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            Sete «novidades» que chegam do Kremlin

            Na sua cegueira, amigos e cúmplices de Vladimir Putin terão exultado com a sua última declaração. Principalmente por sete motivos, perante os quais é fácil contra-argumentar, mas que estes setores jamais questionam, ficcionando a sua própria visão da situação. Em primeiro lugar, porque assumiu formalmente que a Rússia está em guerra, deixando claro que antes andou a enganar os seus próprios concidadãos. Em segundo, porque decidiu o lançamento da mobilização de 300.000 reservistas, o que apenas confirma as notícias sobre o desastre militar que tem sido a sua iniciativa na Ucrânia. Em terceiro, porque acusa o ocidente de «chantagem nuclear», embora todos os jornais mostrem há meses as sucessivas ameaças feitas neste preciso sentido por ele e por Lavrov. 

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              O Mar Negro, lá longe e aqui ao lado

              Por causa de um longo artigo a publicar em breve, passei perto de três semanas a ler e a escrever sobre a história do Mar Negro. Esse «lago asiático» – como se lhe referia em 1765 a Enciclopédia de Diderot e D’Alembert – que, devido à presente guerra de invasão da Ucrânia pela Rússia, subitamente passou de lugar distante, quase ignorado ou mesmo recôndito para a larga maioria dos europeus, a espaço que nos habituámos a reconhecer como próximo e em condições de afetar o nosso modo de vida. Todavia, por muitos séculos este papel foi inexistente, ocupadas que estavam as suas margens apenas por pequenos poderes e por comunidades isoladas e autossuficientes. 

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                Atualidade, História, Olhares

                Isabel e o fim de uma era

                Nasci menos de um ano após Isabel II ter subido ao trono do Reino Unido. Por isso, para mim, como para uma grande parte dos humanos vivos, a «Rainha de Inglaterra», agora desaparecida, faz parte da mobília cultural do mundo em que vivemos. Mesmo sendo republicano desde que recordo – nas lições da história jamais foram reis, príncipes e duques a entusiasmar-me, preferindo sempre quem se batia pela justiça, pela igualdade, pela beleza ou pelo conhecimento –, e tendo construído ao longo dos anos uma perceção clara do caráter caduco e inútil da realeza britânica, não pude, todavia, ficar imune à figura omnipresente nos jornais e revistas, nos documentários e nos livros de história, até no cinema e na ficção, de Elizabeth Alexandra Mary. Para mais uma mulher bonita e de semblante tranquilo, quase sempre sorridente, que alimentava o imaginário mágico de tanta gente. No meu caso, em particular, o de algumas tias e primas, e do respetivo grupo de amigas, que talvez acompanhassem melhor o que se passava nos salões de Buckingham ou de Balmoral que na casa da vizinha ou mesmo na sua.

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                  Acontecimentos, Apontamentos, Biografias, Olhares

                  Quatro tópicos sobre a Festa do Avante!

                  1. A Festa do Avante!, organizada pelo PCP em setembro de cada ano, nasceu em 1976, já na fase de refluxo do processo revolucionário, como uma forma de agregação da militância comunista e também como espaço de resistência política e cultural à recuperação do capitalismo. Inspirou-se em boa parte na do jornal L’Humanité, criada em 1930, com a qual o partido francês visou objetivos análogos. A do Avante! teve desde o início uma componente lúdica – aquela que ocupou sempre mais tempo do programa e que atraiu pessoas de diferentes quadrantes sociais e políticos – e outra assumidamente política, traduzida em algumas escolhas artísticas, em uma ou outra sessão cultural, nas brochuras e bibelôs dos pavilhões da responsabilidade dos «partidos irmãos» e sobretudo no grande comício final de domingo à tarde.

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                    Apontamentos, Democracia, Olhares, Opinião

                    Conformismo, proselitismo e inconformismo

                    A pessoa conformista aceita sem reagir situações que lhe são impostas e intimamente deveria rejeitar ou contrariar. A disposição que melhor a define é a passividade, temendo sempre que qualquer gesto ou palavra que possa afirmar lhe perturbe o modo de vida. Alinha as suas perceções, crenças e condutas pelas dos outros: encomenda a mesma bebida, adota os mesmos códigos de vestuário ou adere cegamente às escolhas que dominam o grupo a que pertence. O psicólogo social Solomon Asch mostrou que pessoas com este comportamento preferem até dar cobardemente respostas erradas, ou contrariar a sua consciência – como acontece com o triste personagem interpretado por Jean-Louis Trintignant no filme Il Conformista, de Bernardo Bertolucci –, a arriscar a reprovação social, que entendem como via para uma fatal exclusão. 

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                      História para iludir o povo

                      Qualquer historiador minimamente a par dos debates ocorridos no seu campo disciplinar, ou naqueles que com ele confluem, no decorrer dos últimos cem anos – desde a velha «Escola dos Annalles», fundada em 1929 por Lucien Febvre e Marc Bloch para desmascarar o logro do positivismo histórico – sabe que não existe verdade única na leitura e na crítica do passado. Existem factos comprováveis e existem metodologias que visam aplicar critérios de verdade – de outro modo a história não seria história, mas antes romance, poesia ou lenda -, mas não existem verdades absolutas e estabelecidas por uma vez. As diferentes e renovadas interpretações dependem de fatores diversos, que vão do tempo e do lugar à personalidade do autor e ao seu percurso, como dependem também de novas perceções do fluir do mundo e do constante acréscimo de conhecimento objetivo determinado pelo estudo e pela investigação. Todavia, essa pluralidade, que é até uma das riquezas e fontes de interesse da história como saber e como arte, não pode determinar uma «história» que na realidade o não é, uma vez que deturpa e se molda aos poderes ou aos grupos, correspondendo a uma forma de propaganda ou de manipulação, tantas vezes em apoio de agendas políticas explícitas ou escondidas. Todos os dias deparamos com ela: essa suposta «história» feita por conveniência, à medida, para legitimar convicções ou para iludir o povo. Naturalmente, ela não se envergonha de inventar, de desvirtuar ou de mentir se isso servir os objetivos imediatos de quem inventa, desvirtua ou mente.

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                        Na morte de Mikhail Gorbachev

                        Apesar de estar completamente afastado do poder há cerca de 31 anos, quando por discordar de um modo frontal da dissolução da União Soviética – bem ao contrário do que por aí se escreve e diz – se demitiu bruscamente da presidência, a morte, ontem ocorrida, de Mikhail Gorbatchev (1931-2022), também Prémio Nobel da Paz de 1990, não deixa de representar a de alguém com um papel decisivo no complexo curso do mundo contemporâneo. Apesar de já existirem muitas e detalhadas obras, tanto no campo da biografia como no do ensaio, publicadas a propósito da sua vida e do seu trajeto político e influência, a sua personalidade e a sua intervenção permanecem de uma interpretação bastante complexa, que talvez só venha a poder ser melhor clarificada no seu próprio país no dia em que este puder despertar do pesadelo putiniano e conhecer melhor tudo o que ali aconteceu nos últimos cinquenta anos.

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                          Contra as abreviaturas

                          Na escrita, a abreviatura utiliza um ponto final, algumas vezes um traço oblíquo, para indicar que aquela se trata de uma palavra incompleta, em condições de dispensar parte da original. Nas últimas duas décadas, o veloz processo de simplificação associado ao uso intensivo das comunicações em linha, não só aboliu o uso desse ponto indicativo, como ampliou de um modo avassalador todo esse processo de simplificação, estendendo a hipótese de recurso à abreviatura a praticamente todas as palavras, e chegando até a abreviar abreviaturas consagradas. Para quem ama verdadeiramente a sua língua ou a dos outros, pode, todavia, seja no processo da escrita ou no da leitura, tornar-se um tormento, como ainda há pouco dias, na última entrevista que concedeu, afirmou a poeta Ana Luísa Amaral.

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                            Vigilância em rede

                            Quando comecei a usar a Internet, nos idos de 1993, e durante uns seis ou sete anos, tudo aqui parecia positivo. Bem, quase tudo: ocasionalmente, muito ocasionalmente, lá surgia alguém mais agressivo ou oportunista a estragar o ambiente em seu proveito, mas essas pessoas compunham apenas uma pequena franja, uma vez que o anonimato era ainda raro, o reconhecimento de quem intervinha possível e, acima de tudo, existia uma ideia, então dominante, sobre o o uso deste meio como um lugar de utopia, onde era possível aprofundar o conhecimento, a criatividade e mesmo a democracia. Nessa altura ainda era impensável que alguém escrevesse algo tão negro – alguns dirão, «realista» – como o que se segue, chegado hoje por email.

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                              Cibercultura, Democracia, Olhares

                              O exemplo histórico de Saint-Just

                              Apesar da juventude e do anonimato inicial, Louis Antoine de Saint-Just (1767-1794) foi uma das personalidades que na Revolução Francesa representaram um papel decisivo. Aliado de Maximilien de Robespierre, foi instrumental em 1792 para a votação pela Convenção da morte de Luís XVI e de Maria Antonieta, tornando-se no ano seguinte, após eleição para o Comité de Salvação Pública, um dos defensores mais extremos e implacáveis da autodesignada política do Terror. Esta visava a eliminação física de todos aqueles que o Comité considerava «inimigos da Revolução», sem atender minimamente ao percurso político de apoio ao derrube da monarquia e ao combate à contrarrevolução que muitos dos condenados pouco antes tinham mostrado, não permitindo sequer que se defendessem, como aconteceu com Georges Danton, Camille Desmoulins e Jacques Hébert.

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                                Um livro tão útil quanto perturbante

                                Editado originalmente em 2016 e traduzido agora pela Zigurate, Quanto menos soubermos, melhor dormimos, do jornalista e historiador David Satter, possui um subtítulo bastante esclarecedor: «Do terror à ditadura na Rússia sob Ieltsin e Putin». Escrito por um destacado analista da realidade russa desde o período soviético, que viveu décadas em Moscovo até ser expulso em 2013, é livro de leitura compulsiva que de modo algum deixa indiferente quem o leia. Serve também de importante auxiliar para quem pretenda compreender o tipo de gente criminosa que governa a hoje terceira potência militar do planeta – depois dos EUA e da China – e a partir dela procura lançar um novo projeto imperial, ficando também a conhecer os seus métodos, simultaneamente tenebrosos e impensáveis num Estado de direito.

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                                  Guerra de mundos: democracia versus autoritarismo

                                  Ao contrário do que se ouve e lê com bastante frequência, os conceitos de esquerda e direita, nascidos, como é sabido, do conflito de fações que teve lugar durante a Revolução Francesa, e depois determinados pela evolução simultânea do capitalismo, do nacionalismo e dos projetos republicano e socialista, não se encontram «mortos» ou «ultrapassados». Ainda que instáveis, complexos e pautados por contradições, ambos continuam a expor a eterna luta entre, de um lado, um ideal de justiça, igualdade e felicidade coletiva fundado no progresso e nos direitos sociais, e, do outro, uma perspetiva do mundo alicerçada no individualismo, no fétiche do lucro, no conservadorismo e numa ordem social baseada sobretudo em deveres. Anunciar o seu fim faz parte, aliás, do arsenal argumentativo da direita.

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                                    Nove meses em Luanda – 2

                                    Holden, eu e os Led Zeppelin (inicialmente publicado em 8 de agosto de 2007)

                                    A morte de Holden Roberto não teve em Portugal a repercussão que o seu papel histórico justificava. Aos 83 anos, era agora uma figura frágil e politicamente irrelevante, que não merecia grande atenção. E, no entanto, a figura do «homem dos óculos escuros» – em tempos diabolizado pelas correntes emancipalistas de inspiração marxista – marcou os últimos cinquenta anos da história angolana. Fundador, em 1954, da organização que esteve na origem da União dos Povos de Angola (UPA) – que lançou em Março de 1961 a luta armada pela independência – foi depois o líder incontestado da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). Em Janeiro de 1975, após os acordos de Alvor, a FNLA chegaria a vislumbrar a possibilidade de, em conjunto com o MPLA e a UNITA (nessa altura um movimento militarmente enfraquecido), assumir o poder depois da partida dos portugueses. A grande proximidade de Roberto com o presidente zairense Mobutu Sese Seko – que financiava e armava os guerrilheiros da Frente – associada a uma auréola de mistério cultivado que lhe ampliava o carisma, reforçavam então a convicção generalizada de que era uma figura politicamente incontornável. Na década de 1980, porém, a crise interna da Frente retirar-lhe-ia protagonismo, vindo a reaparecer no cenário político «normalizado» emergente do final da última guerra civil. Onde se manteve até ao passado dia 2.

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