Entre o «tu» e o «você»

As formas de tratamento, como todos os processos usados para verbalizar a interação humana, mudam de acordo com o tempo e os lugares. Em Portugal sempre foram complexas, e nos Estados de língua oficial portuguesa, por vezes consoante as regiões como acontece no Brasil, essa complexidade é replicada. Em Formas de Tratamento na Língua Portuguesa, livro de Lindley Cintra publicado em 1972, descreve-se particularmente a formação, em boa parte por decreto régio da primeira metade do século XVIII destinado a realçar as hierarquias, das fórmulas mais cerimoniosas. Como aquele intimidatório «Vossa Excelência» que alguns ainda utilizam. No geral e em todas as línguas, essas fórmulas tendem sempre a transformar-se, acompanhando a natural evolução vocabular e o contexto cultural e social em que esta sempre ocorre.

É o que acontece com o tratamento por «tu» e por «você», como se sabe bem diferente no português europeu e naquele que se fala na maior parte do Brasil. Porém, não é a diferença dos vocábulos que aqui em importa, mas sim as mudanças no seu uso em ligação com os modos de consideração do outro. Há poucos dias, um artigo do diário Le Monde descrevia a forma como em França o «vous» estava a desparecer, como forma de tratamento que traduz alguma distância pautada pela cortesia e pelo respeito por quem se tem uma deferência particular – determinada, por exemplo, pela idade ou pelo currículo – substituído por um «tu» ou um «toi» formalmente igualitários. Em Portugal, este processo também já decorre há algum tempo, primeiro dentro da família, depois na escola, de seguida por todo o lado, empurrado pela televisão e pelas redes sociais.

Como filho dos anos sessenta, habituei-me desde cedo ao uso regular do «tu», em particular na relação com companheiros de escola ou colegas de profissão, ou com homens e mulheres com quem vou acamaradando em causas ou interesses. E continuo a usá-lo nestes domínios, sobretudo se a diferença etária não for muito acentuada. Mas admito que não aprecio a sua completa generalização, pois a distância entre «tu» e «você» não é apenas formal, marcando também aquela diferença que distingue um relação distanciada daquela outra que contém um elo de confiança. O uso excessivo ou exclusivo do «tu» é pois, pelo menos no meu ver, uma forma de empobrecimento da complexidade dos relacionamentos e da riqueza da língua. Como acontece também com a perda da diversidade vocabular. Mas isto fica para outro dia.

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