Seis teses e um oxalá

Speaker's Corner

Após as eleições europeias, começou a circular entre alguns comentadores um estranho sentimento de estupefacção e medo. Pelo facto, matematicamente comprovado, de 21% dos votantes ter decidido apoiar as candidaturas de partidos que eles associam – não sei se por convicção, se por mero expediente retórico – a uma «extrema-esquerda» fora do tempo. Mas nem a surpresa faz muito sentido, diante da amplitude das marcas de descontentamento que ampliaram o voto de protesto, nem o pânico se justifica, uma vez que o inimigo é menos perigoso do que parece. Afinal, a Revolução Bolchevique 2.0 não está aí, ao virar da próxima esquina.

1. Desde logo, apenas existe «extrema-esquerda» onde é possível dissentir de uma esquerda moderada mas efectiva. Ora, como a esquerda configurada no actual Partido Socialista, doutrinariamente confinada a vagas declarações de princípio para uso eleitoral, é essencialmente formal e apoiada num referencial histórico de dimensão sobretudo simbólica, julgo não ser possível extremar o inexistente.

2. Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português jamais caberão no mesmo saco. É verdade que o Bloco integra ainda pequenos vestígios de uma esquerda radical paralisada no tempo, mas o essencial da sua linha actual é até mais da natureza interpelante, como força de pressão destinada a criar condições para uma governação e uma mobilização social à esquerda.

3. Já o PCP continua a ser, e não se vislumbra que possa mudar nos tempos mais chegados, um partido de certa forma ambíguo: com uma prática pública protestativa e de contrapoder, mas ao mesmo tempo, e apesar de teoricamente concebido como vanguarda imaginária da luta pelo poder de Estado, sem propostas concretas sobre o que fazer com ele.

4. A esmagadora maioria dos votantes do BE jamais aceitará uma partilha de poder ou mesmo uma coligação eleitoral com os comunistas. A mesma coisa se passa, em sentido inverso, com uma grande parte dos eleitores do PCP e com a generalidade dos seus militantes. Para além de uma eventual confluência de princípios, existem experiências, culturas políticas e até marcas geracionais que os colocam em planetas diferentes.

5. Falar hoje de «extrema-esquerda» não é de falar de partidos como estes, com programas e estruturas dirigentes estáveis, com compromissos públicos, com ligações internacionais conhecidas, com uma integração mínima no sistema democrático parlamentar, com fundamentos ideológicos minimamente reconhecíveis. É antes falar das margens, algo anárquicas e bastante móveis, que agora se reconfiguram fora deles, ao sabor de causas e movimentos nos quais podem exprimir a sua radicalidade.

6. Se existem então razões para que o sistema e os seus defensores possam exprimir sentimentos de medo, elas não se encontram em partidos como os citados, que veiculam pontos de vista e interesses reconhecidos. Encontram-se antes na própria incapacidade dos grupos vocacionados para a gestão do sistema – a começar, no caso em apreço, pelo PS – que se deixam desvitalizar politicamente e se mostram incapazes de agregar os agentes mais dinâmicos e uma cidadania activa, trocados por exércitos de gestores mais ou menos competentes, mas conformistas e sem rasgo.

Dito isto, insisto em que a preocupação dos aparentemente apavorados comentadores visa objectivos errados. Seria mais interessante se ela pudesse voltar-se para a compreensão dos bloqueios do poder. Oxalá alguns deles o possam entender rapidamente.

    Atualidade, Opinião

    Palma

    Palma Inácio

    Aos 87, morreu Hermínio da Palma Inácio, o nosso Zorro. Nunca se adaptou verdadeiramente ao desaparecimento do capitão Rámon do Vimieiro, seu arqui-inimigo. Um dia Natália Correia apontou-o como o «último herói romântico de Portugal». Goste-se muito ou pouco do estilo da personagem, ficamos a dever-lhe a coragem e o exemplo.

      Apontamentos, Memória

      «Caminharemos de pés nus»

      Prisioneira não identificada

      Escrevo durante uma pausa na leitura coerciva de No Inferno dos Khmers Vermelhos, de Denise Affonço (Pedra da Lua). A autora é uma sobrevivente do imenso campo de morte e atrocidades no qual, entre 1975 e 1979, se transformou todo o Camboja. Naqueles quatro anos, pelo menos 1,7 milhões de pessoas, cerca de 20 por cento da população, sucumbiram à fome, às doenças, aos trabalhos forçados, à tortura e às execuções sumárias. O objectivo do poder khmer, apoiado num exército de adolescentes fanatizados e aplicados em impor um sacrifício colectivo purificador, era o regresso imediato, sem qualquer transição ou cedência, a uma vida rural, absolutamente primitiva, assente nos princípios do que consideravam ser o comunismo integral. A construção acelerada da distopia perfeita. O extremo horror pode ser revisitado observando certas normas impostas aos milhões de cidadãos-prisioneiros: «é proibido exprimir sentimentos de alegria ou de tristeza», «é proibido ter saudades do passado», «nunca nos devemos queixar do quer que seja». Ou algumas das apertadas regras relativas à aparência: «nunca devemos usar roupas de cor», «caminharemos de pés nus: acabaram os sapatos e os chinelos», «as pessoas com problemas de vista deixarão de ter direito a usar lentes correctoras», «quando estivermos sentados (…) é proibido cruzar as pernas, sinal exterior do capitalismo», «trabalharão todos os dias do nascer ao pôr-do-sol; sábados, domingos e feriados são abolidos». Um terrífico relato de viagem ao território mais recôndito da impiedade e da maldade humana.

        Democracia, História, Memória

        Orgulho sem preconceito

        A ministra da Educação diz que o país deve encher-se de orgulho com os resultados dos exames de Português e de Matemática do 9º ano de escolaridade. Justamente aqueles que muitíssimos alunos, numerosos professores e outros cidadãos atentos consideraram excessivamente fáceis. Convém pois moderar o enchimento, de modo a evitar que alguma coisa rebente.

          Apontamentos, Devaneios

          A leitura ameaçada

          Leituras

          Nicholas G. Carr, o autor de The Big Switch, aponta para uma viragem que não é ilusória: «A Internet diminui aparentemente a minha capacidade de concentração e de reflexão. O meu espírito reconhece agora as informações de acordo com a forma como a Internet as distribui: como um fluxo de partículas que escorre rapidamente. Antes eu era um mergulhador num mar de palavras; agora rasgo a superfície como um piloto de jet-ski.» Carr serve-se dos avanços das neurociências relacionados com a plasticidade do sistema nervoso para sustentar que os circuitos neuronais se adaptam facilmente a uma leitura rápida, sublinhando como este aumento de velocidade está a reprogramar biologicamente o nosso cérebro. Quando, ainda nos anos 60, Marshall McLuhan anunciou o fim da «galáxia de Gutenberg», da preponderância do paradigma tipográfico, o cenário era já previsível para os mais sagazes.

          Mas foi a criação e sobretudo a generalização da Internet que suscitou um confronto inevitável entre o antigo modelo da leitura lenta – silenciosa, reflexiva, essencialmente individual –, e um outro, fundado agora na velocidade, no ruído, no movimento e na partilha. E também na simbiose com outros processos de comunicação. Os resultados de um inquérito recente reportaram que cerca de 80% dos adolescentes americanos são incapazes de se concentrarem na leitura sem a presença de música ou de um qualquer ruído de fundo, ou sem imagens a dançarem num ecrã, algures debaixo do seu ângulo de visão.

          Um dos problemas que a situação transporta consigo não está no reconhecimento de uma mudança radical nas formas de percepção e nos estilos de vida, uma vez que esta é incontornável e de certa forma inevitável. Está antes nos sectores que ainda têm peso no controlo do saber e da comunicação, e a observam «entendendo» que o processo é passageiro e esperando, quixotescamente, que ele possa um dia recuar. O resultado é uma clivagem brutal entre universos e linguagens que em breve os tornarão incompatíveis, projectando cenários para um novo estado de barbárie.

          A realidade é particularmente dramática no campo do ensino superior, em particular no das humanidades, no qual o paradigma gutenberguiano, essencialmente livresco e baseado ainda, demasiadas vezes, no arquétipo do sábio humanista encerrado no seu gabinete, permanece dominante, tanto ao nível pedagógico como nos critérios de aferição científica, em termos de orientação e de reconhecimento dos trabalhos académicos, privilegiando-se claramente nas avaliações curriculares o modelo anterior. Continua a considerar-se, em muitas ocasiões, que existe uma «leitura de distracção», decididamente inferior, a qual pode de facto transcender a comunicação em papel, e uma «leitura de informação», sem dúvida superior, que dos livros, ou pelo menos dos escritos em formato tradicional, se serve como suporte praticamente exclusivo.

          Existe porém um outro modelo de leitura. Este implica uma hibridez de instrumentos cognitivos, de formas de saber e até de códigos de validação. E a construção sistemática de pontes entre processos e atitudes. Ele não supõe a diluição do conhecimento superior no saber comum, mas tão só o reconhecimento de que existe também um património de experiências, de dados e de saberes em relação ao qual as estratégias da investigação, da partilha e da comunicação terão de ser mais abertas. Estas devem em larga medida ser reinventadas, para que os vestígios do anterior paradigma possam sobreviver e não sejam apagados pelas gerações que estão a chegar – apetrechadas já das grandes alterações ao nível dos mecanismos de percepção – e o olham como qualquer coisa de caduco ou mesmo de incompreensível. No diálogo homónimo atribuído a Platão, Fedro, o jovem interlocutor de Sócrates, percorre distraído um texto em papiro no preciso momento em que o filósofo disserta, amargurado, acerca dos inconvenientes e dos perigos da escrita. É este corte entre dois mundos, tão absoluto quanto absurdo, que seria bom conseguirmos evitar.

            Cibercultura, Ensino

            Piratas ao largo

            Piratas

            Em Utopias Piratas, Peter Lamborn Wilson, poeta e ensaísta americano conhecido também como Hakim Bey, toma como figuras centrais determinados esquecidos da História. São os renegados, europeus fugitivos ou inadaptados, convertidos ao Islão por necessidade, que nos séculos XVI e XVII encontraram como porto de refúgio a república de Salé, na costa atlântica marroquina, junto àquela que é hoje a cidade de Rabat. Ali ajudaram a erguer um tipo particular de governo, definido por Wilson como um enclave proto-anarquista, uma micro-sociedade autogovernada por bandidos dos mares, que conseguiu sobreviver à margem das leis e das coroas, permitindo aos seus moradores manter padrões de governação, crenças e estilos de vida que na Europa dos Estados centralizados e da intolerância religiosa e moral jamais lhes seriam tolerados. Daí ter sido transformado em lugar convidativo para alguns salteadores célebres, como o inglês John Ward e o holandês Jan Jaansz (que ali adoptou o nome de Morat Reis), ou para toda uma turbamulta de marinheiros anónimos que confluíam para aquele lugar, ávidos de saques e de uma vida aparentemente fácil e emocionante. Wilson descreve o território de Salé e a sua forma de governo como modelo inicial de um tipo de sociedade que se deslocará depois para a região das Caraíbas e para o Índico, e que pela intervenção posterior da literatura de viagens e do cinema de aventuras integrará rapidamente o imaginário colectivo ocidental. [Peter Lamborn Wilson, Utopias Piratas. Trad. de Miguel Mendonça. Deriva, 180 págs.]

              História

              Infortúnios da edição

              Maalouf original Maalouf traduzido

              Eis as capas do original e da tradução portuguesa do último livro de Amin Maalouf. Nem o título escapou ao mau gosto new age e à propensão para o logro, pois desregulação e ausência de regras não são a mesma coisa. A «etiqueta» verde não pode ser descolada e é ambígua: «84 mil livros vendidos em Portugal». Do conteúdo falaremos mais tarde.

                Comunismo hoje

                On the idea of Communism

                Organizado pelo Birkbeck Institute for the Humanities, da Universidade de Londres, decorreu em Março passado o colóquio On the idea of Communism. A identidade dos participantes anunciados – Alain Badiou, Slavoj Žižek, Michael Hardt, Toni Negri, Jacques Rancière, Gianno Vattimo, Terry Eagleton, entre outros – apontava para um encontro inédito entre superstars do pensamento contemporâneo interessadas no comunismo não tanto como núcleo programático mas como território da utopia e da experiência da mudança. E fazia também prever debates ardentes. A verdade, porém, é que os ecos foram chegando muito ténues e pouco existe na Internet sobre o acontecimento. Acaba no entanto de sair, no número de Julho-Agosto da revista Philosophie Magazine, uma reportagem crítica do evento, «Communista Social Club», da autoria de Jan Sowa, um jovem intelectual militante da esquerda radical polaca.

                Sowa apoia-se particularmente nas intervenções de Badiou, Žižek, Rancière e Negri para afirmar que o conjunto não trouxe nada de novo em relação ao que se sabia já do pensamento de cada um dos autores presentes – o que não seria nada de inesperado, pois as fracturas não se produzem em intervenções de trinta minutos voltadas para um público militante de investigadores e estudantes –, estranhando igualmente o facto delas se apresentarem como monólogos, algo cerradas em raciocínios e apriorismos balizados, dos quais ninguém se parece ter esforçado muito por sair. O essencial da sua crítica centra-se porém em algo de muito concreto. Condicionado pela sua própria experiência de filho do «socialismo real», Sowa anota que «a maior insuficiência deste colóquio foi a ausência de uma análise aprofundada do comunismo enquanto regime que existiu realmente». Como se nada de verdadeiramente importante se tivesse passado, diz, entre a revolução de Outubro de 1917 e o triunfo do capitalismo neoliberal nos anos oitenta. Tem sido este, realmente, um dos limites da intervenção da esquerda anticapitalista não subsidiária do esclerosado modelo leninista-estalinista: um excessivo pragmatismo e uma dificuldade em repensar-se a partir de uma abordagem crítica do seu próprio lastro histórico, projectando novas possibilidades através de um processo psicanalítico de diálogo com as origens, as experiências e principalmente os erros.

                Mas isto não significa que o colóquio de Londres se tenha transformado num pântano de vaidades académicas e de vontades dispersas a laborarem, cada uma delas, nas suas utopias pessoais. No final foram avançadas duas conclusões positivas que permaneceram transversais às intervenções de todos os participantes: «primo, o capitalismo não se encontra desprovido de uma alternativa, e secondo, o projecto comunista não é utópico no sentido negativo do termo, isto é, impossível». Porém, e contrariamente à leitura corrente de Marx, a sua afirmação não resulta de uma inevitabilidade histórica, mas sim de uma escolha que as sociedades podem e devem fazer em toda a liberdade. Será este o princípio, fundamental para uma conciliação da vida democrática com a afirmação cíclica de políticas de ruptura, sobre o qual a esquerda deverá continuar o seu trabalho. Combinando uma arqueologia descomplexada com a intervenção diária no processo de edificação de um mundo possivelmente melhor e mais solidário.

                  Atualidade, História, Olhares

                  Começo de uma era

                  De walkman pela estrada fora

                  A música verdadeiramente portátil começou nos inícios da década de 1960, com a vulgarização do rádio transistorizado, do gira-discos e do gravador de pilhas. Eles foram instrumentais no lançamento de uma nova cultura popular centrada na música urbana e nos seus ambientes. Mas essa era uma experiência ainda partilhada, vivida em grupo ou exibida diante dos outros, na praia, em piqueniques, em bailes de garagem. Só o aparecimento do walkman rompeu com tal dinâmica, transformando a portabilidade da música em mantimento do individualismo galopante que emergiu nos eighties. Forneceu também a possibilidade de um novo tipo de apropriação cinematográfica do quotidiano, hoje reforçada com a banda sonora infinitamente renovável, transportada por cada um no seu leitor de mp3. No entanto, quando o processo começou, há mais ou menos três décadas atrás, toda essa mudança parecia ainda mais do que improvável. «Diziam que eu devia estar maluco para andar por aí de auscultadores», conta o alemão-brasileiro Andreas Pavel, inventor do stereobelt, estreado em 1972, sete anos antes da Sony lançar no mercado o seu primeiro walkman comercial, mas ignorado na altura pelos grandes fabricantes. O começo deste pedaço da história recente, início provável de uma nova era na utilização banal ou celebratória da música e na construção sensorial do mundo, é contado aqui.

                    Etc., Memória, Música

                    Agora Xinjiang

                    Em Xinjiang

                    Os acontecimentos de Xinjiang, a região chinesa de maioria muçulmana, são insuportáveis. Já nem importa reconhecer se foram exactamente 154 os mortos, 828 os feridos e largas centenas os detidos pelos militares (assim o dizem as próprias autoridades chinesas), ou bem mais as centenas de mortos e os milhares de feridos e presos (segundo as notícias que chegam, ou chegavam, via Twitter). Se os exemplos do passado servem para alguma coisa, as contas certas penderão mais para a segunda das versões. Não importa também, neste momento, começar por averiguar da justeza de uma causa da qual a maioria de nós nem sequer tinha ouvido falar. Absolutamente prioritário é antes denunciar, sem hesitações, a repressão brutal de manifestações pacíficas e a completa ausência de vergonha de um regime para o qual o princípio da força e da intolerância se revela sempre indispensável à menor contrariedade, transigindo depois em todos os restantes.

                      Atualidade, Democracia

                      Peregrinação

                      Não queria acreditar nas informações que me tinham chegado, pensei que fosse uma brincadeira de gosto sofrível, mas acabo de confirmar em directo através da Rádio Marca: os embaixadores de Portugal e do Vaticano estão ambos no estádio madrileno de Santiago Bernabéu, o primeiro de impecável gravata azul e o segundo de alvíssimo cabeção, para receberem Cristiano Ronaldo. São insondáveis os destinos da Pátria e os caminhos do Senhor.

                        Atualidade, Devaneios

                        ABC das Palavras Obsoletas – 5

                        Vinicius e a garota de Ipanema

                        Garoto / Garota

                        Fora de alguns universos peculiares, «garoto» já não é nome que se aponha a alguém. Impõe uma depreciação da infância e da condição juvenil, totalmente deslocada nos tempos que correm. Por sua vez, «garotada» é um termo desdenhoso, invariavelmente associado a uma imaturidade que se presume condenável, socialmente desclassificada, tendo caído igualmente em desuso. O oposto do «garoto», ou, bem pior, do «garotão», era o homem «grave», sério, circunspecto, o cidadão inequivocamente adulto, probo e hirto, que jamais condescendia com a brincadeira, usava sandálias sem meias ou enrolava as mangas da camisa acima do cotovelo. «Garotice» era assim, sempre, o gesto inconsequente e irreflectido de quem jamais crescera. Já a designação «garota» não depreciava. Pelo contrário, impunha, por uma ordem lógica antiga e patriarcal, que toda a mulher jovem fosse considerada como uma desprotegida criança, ragazza, petite fille, fräulein, baby aguardando pacientemente, e um tanto irreflectidamente, pelo seu amo. «Garota» era assim a «miúda», a «pequena», a namorada bela e perfeita, vislumbrada a requebrar ao sol de uma qualquer Ipanema. Ninfa que jamais perdia o seu tempo com garotos.

                          Etc., Olhares

                          Tegucigalpa-Caracas-Havana e volta

                          Honduras

                          Sigo em directo imagens da repressão do exército hondurenho sobre os manifestantes que pretendem receber no aeroporto de Tegucigalpa o presidente eleito, Manuel Zelaya, de regresso ao país depois de há uma semana atrás ter sido derrubado por um golpe de Estado. De repente, voltam a nossas casas imagens de aberta violência militar sobre populações desarmadas, que não víamos na América latina desde os anos 80. Acompanho pela Internet uma transmissão da TeleSur, a rede de televisão multi-estatal latino-americana com sede na Venezuela, que destaca a coragem dos manifestantes e a legitimidade democrática de Zelaya. Mas sigo também a Cubavisión, que a partir de Havana noticia e comenta há longas horas aquilo que se está a passar, recorrendo a «analistas políticos» que não referiram uma única vez o facto de o presidente deposto pelos golpistas ter sido referendado em eleições democráticas. A registar.

                            Atualidade, Olhares

                            Memória do ódio

                            Louis Darquier

                            Má-fé é a biografia de um canalha. Louis Darquier (1897-1980), que acrescentaria ao nome próprio um «de Pellepoix», foi um fascista e um anti-semita convicto e militante pelo menos desde os anos 30. Membro da Action Française, da Croix-de-Feu e das Jeunesses Patriotes, atingiu o topo da carreira entre 1942 e 1944, sob a administração nazi, onde, como chefe do Comissariado-Geral para os Assuntos Judaicos, teve a principal responsabilidade na deportação em massa de judeus franceses. Mas viveu também como um escroque (foram sucessivas as fraudes e golpaças nas quais se viu envolvido), um incapaz (viria a ser demitido pelos próprios alemães), um mentiroso (inventando mesmo uma origem social que jamais teve) e um sádico (o livro menciona situações diversas). Foi ainda um pai detestável, abandonando em criança a única filha, Anne, que a autora viria a conhecer por um acaso como psiquiatra, servindo o encontro entre ambas como ponto de partida para este livro. Já perto do final da vida, na Espanha de Franco que o protegeu da extradição e da condenação por colaboracionismo, Darquier tornar-se-ia ainda um dos primeiros negacionistas do Holocausto, ao declarar, em entrevista ao L’Express, que em Auschwitz as câmaras de gás teriam sido utilizadas apenas para exterminar piolhos. Um relato, negro mas dolorosamente útil, centrado na memória do ódio. [Carmen Callil, Má-fé. Uma história esquecida de pátria e família. Trad. de António Belo. Pedra da Lua, 712 págs.]

                              História, Memória

                              Bye Bye Portugal

                              Brasil

                              Depois de Maria João Pires, é a vez de Miguel Sousa Tavares nos ameaçar de fazer-se brasileiro. Se bem que de forma diferente, ambos incompatibilizados com um tratamento público abaixo daquele que acreditam merecer. Mas se a grande pianista não muda de estatuto com a decisão, vendo-se basicamente aliviada de certas maçadas com a contabilidade, no caso do cronista e ex-jornalista o salto será grande, pois do outro lado do Atlântico parece ser também reconhecido como escritor emérito. Só podemos desejar a ambos as maiores felicidades. Voltem sempre para as sardinhadas.

                                Etc., Olhares

                                WW e o 4 de Julho

                                Walt Whitman

                                Mesmo à medida das mentes acossadas da casta dirigente da Coreia do Norte, a escolha deste 4 de Julho para lançar mais sete mísseis balísticos sobre o Mar do Japão. Aliás, já em 2006 haviam feito a mesma coisa. O aniversário da Declaração de Independência dos Estados Unidos América – documento fundador do mundo contemporâneo que em 1776 preludiou a Revolução Francesa e questionou o domínio colonial dos europeus – pareceu-lhes uma óptima data para demonstrarem com fogo-de-artifício as saudades que têm da Guerra Fria. Só que no mesmíssimo dia, embora em 1855, Walt Whitman publicou a primeira edição de Leaves of Grass, impressa na Rome Brothers. Bem vistas as coisas, talvez esta data possa não agastar menos os norte-coreanos. E também os seus comparsas de outras latitudes.

                                FOR YOU O DEMOCRACY

                                Come, I will make the continent indissoluble,
                                I will make the most splendid race the sun ever shone upon,
                                I will make divine magnetic lands,
                                With the love of comrades,
                                With the life-long love of comrades.

                                I will plant companionship thick as trees along all the rivers of America, and along the
                                shores of the great lakes, and all over the prairies,
                                I will make inseparable cities with their arms about each other’s necks,
                                By the love of comrades,
                                By the manly love of comrades.

                                For you these from me, O Democracy, to serve you ma femme!
                                For you, for you I am trilling these songs.

                                Walt Whitman – Leaves of Grass

                                  Atualidade, Memória, Poesia