Mundo transitório

Fharenheit 451
Oskar Werner e Julie Christie em Fahrenheit 451 (1966)

Conversando com uma jornalista espanhola a propósito da edição de Ahora y Siempre (Now and Forever, um compilação de short stories publicada originalmente em 2007), Ray Bradbury, que aos 89 continua a escrever e a publicar, mostra-se o homem conservador que sempre foi. Particularmente quando lhe falam da actualidade e do futuro do livro. Aí irrita-se visivelmente, exalta-se mesmo, perde com facilidade a compostura. Perante a Internet, o autor de Fahrenheit 451, o romance distópico que hiperboliza o valor do livro, da sua imortalidade e da sua capacidade para transformar o mundo, subverte mesmo o seu antigo horror à destruição da palavra escrita pelo fogo: «Que queimem a rede em vez de queimarem livros!». Diante da revolução do e-book: «Isso não são livros. Os livros apenas têm dois cheiros: o do livro novo, que é bom, e o do livro usado, que ainda é melhor.» Face à possibilidade do fim das bibliotecas tal qual as conhecemos: «Não permitirem que acabem com elas, nem que tenha de me meter lá dentro para evitá-lo.» É pungente, sobretudo para quem partilha com Bradbury o amor profundo pelos livros em papel, pelas bibliotecas imensas e odoríferas, com os seus recantos únicos, obscuros e misteriosos, acompanhar tal defesa de um mundo transitório que, mais coisa, menos coisa, daqui por uma década não passará de território reservado a cientistas e iniciados. E, para a maioria das pessoas, de vestígio de um passado remoto que outras gentes edificaram.

    Memória, Olhares

    Finalmente, Oscar

    Oscar Wilde

    O L’Osservatore Romano coloca Oscar Wilde nos pináculos da lua, considerando-o «uma das personalidades do século XIX que com mais lucidez analisou o mundo moderno nos seus aspectos perturbadores mas também nos seus aspectos mais positivos». Aproximar-se-á o fim dos tempos? Tratar-se-á de um primeiro passo no caminho da beatificação? Ambas as coisas?
    [Ideia roubada ao Pedro Vieira]

      Etc., Olhares

      Vozes afinadas

      Em tandem

      Completamente de acordo com a leitura de João Tunes a propósito dos blogues em tandem criados para apoiarem, na pré-campanha eleitoral em curso, o PS ou o PSD. Muito de agitprop à volta da agenda das direcções partidárias, muito de panegírico e autojustificação, encómios e louvações, alguma traulitada personalizada também, aqui e acolá. Mas muito pouco, quase nada, de reflexão crítica substantiva, de esforço prospectivo, de polifonia, de debate, de sugestões no sentido de revisitar, para não repetir, os cenários do bloqueio político que temos vindo a percorrer. Sei que à esquerda e à direita desses espaços de opinião, o panorama não é mais animador, mas como falamos de alguma da «massa crítica» publicamente associada às únicas duas correntes susceptíveis de definirem os próximos quadros de governação, e de um esforço aplicado dentro de um território de comunicação onde é suposto aceitar-se maior ousadia, a situação afigura-se algo grave. E tremendamente enfadonha também, já agora.

        Atualidade, Opinião

        Mas não se está mesmo a ver?

        It's a mad, mad, mad, mad world

        Estava à espera disto, embora tenha demorado tempo de mais a acontecer: já circulam pela rede mensagens anunciando que Michael Jackson afinal não morreu. Terá sido tudo uma encenação por causa das dívidas, presumindo-se que a esta hora pratique moonwalk numa ilha ignota do Pacífico. Corre também, retomando com toda a força uma teoria da conspiração já com alguns anos, que os americanos afinal não foram à Lua. Apenas encenaram em Hollywood a operação de alunagem para fazerem batota no jogo da Guerra Fria. Podemos pois dar asas à imaginação e inventar a certeza que quisermos, seguros de encontrar sempre partidários intransigentes e capazes de se esforçarem pela causa. A mim, por exemplo, ninguém tira da cabeça que o PS perdeu as eleições europeias de propósito, só para que a sua direcção pudesse aparecer como injustiçada e impoluta salvadora da Pátria, composta por gente compassiva e confiável, de uma «esquerda moderna» merecedora de segunda oportunidade. Quem me acompanha na crença?

          Atualidade, Devaneios

          Uma vida e filmes vários

          Villa

          Johnny Depp será José Doroteo Arango, Pancho Villa, no próximo filme de Emir Kusturica, que tem como título provisório Seven Friends of Pancho Villa and a Woman With Six Fingers e começará a ser rodado em 2010. Terá a companhia preciosa da mexicana Salma Hayek. Promete, claro. Mas já em 2003 Antonio Banderas foi Villa em Starring Pancho Villa As Himself, um documentário sobre a forma como D.W. Griffith e Harry Aitken compraram ao próprio Villa os direitos exclusivos sobre as imagens das batalhas da revolução mexicana, permitindo-lhes montar em 1914 The Life of General Villa, o primeiro filme de acção de Hollywood. A dimensão densamente cénica e cinematográfica das acções e da própria presença física de Villa pode ser avaliada numa descrição deixada por John Reed em México Insurrecto. Aqui fica ela:
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            Cinema, História

            Cuidado com as causas fracturantes

            Matraquilhos

            Em solo nacional, três temas azedam facilmente qualquer debate, despertando impulsos primitivos que cegam cidadãos exemplares e assanham pessoas dadas à reflexão: comunismo, religião e futebol (já que o fado perdeu músculo). Os dois primeiros têm sido aqui recorrentemente invocados, mas de futebol não tenho falado. Chegou agora a vez de tocar no assunto, mesmo correndo o risco de despertar o hooligan escondido que habita dentro de um ou outro leitor.

            A despesa com a compra de jogadores por parte das maiores equipas é, nas circunstâncias da vida do país e atendendo à dimensão financeira dos clubes, qualquer coisa de obsceno. Ainda assim, nos tempos mais recentes, Porto e Sporting têm mostrado um comportamento despesista aparentemente controlado: o primeiro, por causa dos sucessos desportivos e porque gasta menos com os jogadores que compra do que com aqueles que vende; o segundo, porque tem mantido uma política de aquisições relativamente moderada. Já o mesmo não se passa, todavia, com o Benfica, que todos os anos compra uma dúzia de futebolistas bastante caros, cedendo-os no ano seguinte por valores inferiores. Talvez seja preciso recordar aos mais distraídos que as receitas desportivas do «clube da águia», frequentemente fora da Liga dos Campeões, têm sido inferiores às dos outros dois, apesar de ter ainda o maior número de adeptos. Entretanto, só neste início de época já gastou mais de 23 milhões de Euros, prometendo outras compras para os próximos dias.

            Nada disto incomodaria particularmente se não fossem duas situações objectivas. Desde logo o facto de o Benfica (como os outros, aliás) continuar a dever muito dinheiro ao fisco, e de a insolvência total ser algo de materialmente possível. Só que no dia em que isso estiver para acontecer, governo algum aceitará a falência técnica do clube, pois tal reduziria metade da população a um intolerável estado depressivo e fá-lo-ia perder as eleições seguintes. Serão então os cidadãos contribuintes, azuis, verdes, encarnados e de todas as cores, incluindo ainda todos aqueles que detestam futebol, a pagar facturas e hipotecas.

            A segunda situação é, no fundo, uma constatação: governante algum se deu ao trabalho de, pelo menos, apelar publicamente ao comedimento dos gastos e à necessidade de se pagar o devido ao erário público. Não sei porquê, tenho a impressão de que o esquecimento tem alguma coisa a ver com a proximidade de uma ida a votos e de ser preciso, da parte de quem deseje ardentemente conquistar a maioria dos eleitores, um certo cuidado com as causas fracturantes.

              Atualidade, Olhares, Opinião

              Na era do professor desnorteado

              O educador

              Ao contrário daquilo que pode pensar quem esteja de fora, os problemas pedagógicos do ensino universitário não são agora em menor escala, nem mesmo, em alguns casos, substancialmente diferentes, daqueles que estão desde há muito identificados nos ensinos básico e secundário. Limito-me aqui a enumerar duas áreas particularmente críticas, embora raramente abordadas. A primeira tem a ver com profundas convulsões que têm afectado crescentemente a autoridade do professor e o relacionamento na sala de aula. A segunda relaciona-se, de um lado, com o confronto entre a forma tradicional de conceber os processos do conhecimento e os métodos de ensino, e, do outro, com as diferentes expectativas das mais recentes gerações de alunos, frequentemente associadas aos novos instrumentos de acesso à informação.

              Em «La era del profesor desorientado», um artigo surgido sábado passado no El País, anuncia-se uma situação que, afinal, está a cruzar todas as fronteiras da velha e ex-conservadora Europa: os professores enfrentam estudantes menos obedientes, aparentemente menos receptivos, mas que se movimentam muito bem em áreas que eles, educadores, conhecem mal ou não dominam de todo. Faz-se então uma pergunta: será preciso regressar à velha disciplina ou é antes preferível modernizar o ensino?

              Traduzo o parágrafo inicial do artigo do diário espanhol: «Uns acreditam que o problema reside no facto dos professores do século XX tentarem educar a jovens do século XXI em escolas do século XIX, e por isso as coisas não funcionam. Outros, que foram perdidos valores básicos da educação, sobretudo a disciplina e o esforço. Na realidade, trata-se de duas maneiras distintas de enfrentar um mesmo facto: que os docentes não conhecem, não encontram ou não lhes oferecem as ferramentas necessárias para ensinar a novas gerações de jovens, as quais não respondem da mesma forma que as anteriores à educação escolar.» Um caso sério, diante do qual a pior solução – que infelizmente tem vingado em muitos casos –, consiste em meter a cabeça na areia, ignorando a situação real de mudança de paradigma que atravessamos, e marinando na ficção de que um dia as coisas «melhorarão» por si (isto é, voltarão ao antigo modelo). Ou então decairão inapelavelmente. Em ambos os casos, atirando a toalha ao chão.

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                Atualidade, Ensino, Olhares Tagged

                Uma noite inesquecível

                Man in the moon

                Sei onde estava há exactamente quarenta anos. A noite era mais fria do que esta, apesar de já ser Julho e determinados mitos urbanos afirmarem agora que os verões eram sempre insuportavelmente quentes. A televisão, uma Blaupunkt a preto e branco (ou seria uma Nordmende?), crepitava de vez em quando, ameaçando desistir. Preparávamo-nos – já só eu e o meu pai teimávamos num serão que se previa longo – para seguir, um tanto cépticos mas bastante excitados, as últimas manobras de alunagem da Apollo 11. Dali a horas, entrava-nos na sala um eco chegado do outro mundo: «That’s one small step for man, one giant leap for mankind». Na estação de Cabo Canaveral urrava-se, pulava-se, celebrava-se. Nós dois permanecemos calados, pensando, zonzos de sono, incrédulos, não passar tudo de um sonho. Fomos deitar-nos sem trocar uma palavra.

                [audio:http://aterceiranoite.org/sons/armstrong.mp3]
                  História, Memória

                  Margem de certa maneira

                  Margem
                  ©2008-2009 ChaosBang

                  Pego no 18 de Brumário de Luís Bonaparte e regresso ao momento em que Marx procurou estigmatizar os partidários do futuro imperador: «Lado a lado com elegantes arruinados, de meios de fortuna duvidosos, aventureiros e bastardos, devassos da burguesia, encontravam-se vagabundos, soldados desmobilizados, ex-presidiários, antigos foragidos das galés, saltimbancos, chantagistas, desclassificados, carteiristas, trapaceiros, jogadores, gigolôs, donos de bordéis, carregadores, escrevinhadores, tocadores de realejo, trapeiros, amola-tesouras, mendigos, em suma, toda uma massa confusa, decomposta e flutuante, a que os franceses apelidam de boémia.» Não se poderia condenar com maior clareza todos aqueles que, recusando a marcha a passo cadenciado, preferiam viver fora dos caminhos convencionais.

                  Os tipos citados eram considerados mais ou menos próximos do lumpenproletariat, marginais tanto em relação à forma como Marx concebia os grupos capazes de uma posição historicamente revolucionária – por isso o estalinismo fez deles aquilo que se sabe –, como em relação ao dispositivo da ordem burguesa dominante. Actualmente, porém, as maneiras de ser e de pensar que foram qualificadas pelo filósofo alemão como confusas, flutuantes, decompostas, ou simplesmente aventureiras, são partilhadas por um conjunto alargado de marginalidades, transformaram-se algumas vezes em sociabilidades nómadas e instáveis mas com uma legitimidade própria, alternativa à dominante. Enquanto fontes de perturbação para o funcionamento previsível do sistema, podem afirmar-se como trincheiras de liberdade, territórios de resistência ao trabalho de normalização e controlo imposto pelo Estado e pela suprema ordem neoliberal.

                    Atualidade, Democracia, Olhares

                    Para não se dizer que não falei do H1N1

                    Obama_H1N1

                    Tenho dificuldade em fazer previsões sobre as consequências do surto pandémico de gripe A que se prevê irrompa em Portugal logo que o tempo comece a arrefecer e as andorinhas que restarem partam de novo para África. Por simples ignorância. Os especialistas dizem que no «pior dos piores» cenários morrerão 8700 pessoas em Portugal, mas logo acrescentam que o cenário «deve ser encarado sem dramatismos». Afinal, parece que a gripe comum todos os anos mata quase duas mil almas, e ninguém, salvo alguns hipocondríacos, vive atormentado com isso. Limito-me pois a olhar para as previsões e a tomar o sumo de laranja que recomendava a minha avó, com a vaga sensação de que, fazendo parte de um grupo de risco, deverei ter particular cuidado em evitar correntes de ar e frio no pescoço.

                    Existe, no entanto, um lado do problema que é preocupante. A comunicação social agarra como sempre o filão da desgraça e todos os dias efabula cenários apocalípticos de devastação e crise: ruas desertas, fábricas paradas, escolas sem aulas, comércio fechado, estádios vazios, as traineiras em terra e os aviões também. Nas ruas, os escassos transeuntes circularão de máscara e luvas, e o paracetamol valerá mais que petróleo. Os cidadãos passarão em casa o seu tempo de quarentena, partilhando boatos por e-mail, dormindo em camas separadas, trocando os beijos por adeuzinhos, recusando até participar no funeral dos parentes mais chegados. Os cenários propostos têm a ilimitada imaginação por limite. E fazem-no com uma tal intensidade, de maneira tão pessimista e repetitiva, que, chegada a hora, quando alguns cuidados forem necessários, já poucas pessoas darão grande valor às notícias e toda a gente circulará pelas ruas de manga curta e cabeça ao sol, tossindo para cima dos outros. A vaga de alarmismo por antecipação que estamos a viver pode dar maus resultados.

                      Atualidade, Devaneios, Olhares

                      A estrela de cinco pontas

                      [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=zANxbdvy-D4[/youtube]

                      «Um debate sobre os significados da revolução de Outubro deve ser aberto, descomprometido e informado, não a afirmação de um credo». É já possível ler no blogue da editora Angelus Novus a segunda e última parte da entrevista que me foi feita a propósito do lançamento do livro Outubro. A primeira parte pode ser seguida numa outra página do mesmo blogue. Aqui fica também o 2º clip de promoção.

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                        Imprimatur no século 21

                        nós, vós, eles

                        «No seguimento de ameaças de represália que não podem deixar de ser consideradas», a Chiado Editora resolveu adiar indefinidamente o lançamento do livro A Última Madrugada do Islão, de André Ventura. Informa ao mesmo tempo que «decidiu solicitar, adicionalmente, dois pareceres sobre o eventual conteúdo ofensivo e controverso da obra em questão, respectivamente ao Sheikh David Munir, líder da Comunidade Islâmica de Lisboa, e ao Professor Mostafa Zekri, especialista em assuntos islâmicos, de forma a melhor compreender as ameaças recebidas e antecipar eventuais cenários problemáticos resultantes da publicação», adiantando que do resultado destes pareceres «dependerá a decisão definitiva» sobre a publicação do romance.

                        O livro «resulta de uma vasta investigação histórica e apresenta pontos que, não obstante originais e interessantes, se revelam particularmente polémicos», recriando o cenário em que morreu Yasser Arafat e dramatizando aspectos da vida de um jovem muçulmano em Paris. A editora entende que «os comentários recebidos em relação à obra em causa e a análise da história recente» a forçam a ser «prudente em relação às publicações que chegam ao mercado, tendo em conta a segurança do autor, editores e distribuidores do livro». Sentiu-se ameaçada, portanto. Mas evoca também condicionalismos relacionados com «a possibilidade de serem prejudicadas, como aconteceu no passado noutros países, as relações portuguesas com Estados e comunidades islâmicas, muito particularmente a Palestina».

                        Aceita-se pois, no país que viveu um pesado regime censório mas conseguiu aboli-lo há 35 anos, que se coíba a circulação de uma obra literária. E admite-se, de forma aparentemente normal, um recuo aos tempos inquisitoriais do imprimatur, agora já não de clérigos arrolados pela Inquisição mas de duas autoridades em assuntos islâmicos. O editor está no seu direito de ter medo das consequências materiais da publicação. Porém, colocado nestes termos, o assunto adquire uma gravidade que ultrapassa a intervenção da Chiado. Afinal, não falamos apenas de uma pequena contrariedade editorial, mas sim de uma grave cedência diante de pressões exteriores, capazes de impor em Portugal limitações à liberdade de criação, de circulação do livro e de opinião. Pressões com força suficiente para atearem a autocensura e o medo.

                          Atualidade, Democracia

                          Agarra que é comuna!

                          Commie

                          Depois do disparate, mais valia ficar calado por umas horas. Mas o homem não consegue, está-lhe na massa do sangue falar pelos cotovelos. Alberto João Jardim veio agora esclarecer aquilo que pretendia com a tal proposta absurda de proibição do comunismo por decreto. Diz que realmente «o ideal seria a Constituição Portuguesa não proibir ideologias», tendo defendido aquilo que defendeu apenas para evitar situações de privilégio. Ora, se o exercício inicial, comparando as duas grandes experiências totalitárias do século passado, ainda se entendia, se bem que em termos menos grosseiros e ignaros do que os propostos, já o mesmo se não aplica ao fascismo e ao comunismo enquanto «ideologias». Se, no plano dos princípios, o primeiro é essencialmente elitista e agressivo, o segundo é – nos fundamentos, não na lógica grotesca dos regimes e dos partidos que perverteram a sua raiz utópica – estruturalmente igualitário e fraterno. Uma banalidade de base da qual alguns comentadores certificados se esquecem. Da qual o político ilhéu não se apercebe. Mas que faz toda a diferença.

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                            Duas balas para Natalia

                            Natalia

                            Agora foi a vez de Natalia Estemirova, encontrada morta, com dois tiros na cabeça, numa floresta da república de Inguchétia, após ter sido raptada quando saía de casa. Tinha sido uma das colaboradoras mais próximas de Anna Politkovskaia, assassinada em 2006, e trabalhava para a Memorial, uma das mais importantes organizações russas de defesa dos direitos humanos. Investigava de momento dossiers sensíveis sobre centenas de casos de rapto, tortura e assassínio praticados por tropas russas ou forças paramilitares. Era uma crítica insistente do actual presidente tchetcheno, Ramzan Kadirov, e da política do Kremlin para o Cáucaso. Entretanto a presidência russa já reagiu, tendo um porta-voz garantido que Medvedev ordenou uma investigação ao caso. Pois.

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                              A memória também se arrepia

                              Parecerá talvez um pouco estranho, provavelmente absurdo, um post como este sem o vídeo ao qual se refere a acompanhá-lo. Afinal, existem na Internet centenas, provavelmente milhares, de pequenos vídeos artesanais gravados por estes dias nas ruas de Teerão. Mas vi há dois ou três dias um muito particular, do qual por lapso não guardei o link – e daí a sua ausência –, que quero evocar aqui.

                              «Então é assim»: eu não sei quantos leitores deste blogue algumas vez participaram, sob ditadura, uma qualquer ditadura, naqueles momentos que antecedem uma manifestação de rua proibida, com todas as hipóteses de acabar mal e ser reprimida. Eu já, infelizmente e graças a Deus. Várias vezes, e de forma tão próxima, tão intensa, que após duas delas acabei o dia com os ossos na prisão. Da segunda vez, o episódio valeu-me mesmo uma guia de marcha para três anos de serviço militar obrigatório, quando deveria era estar a estudar, a ver cinema e a namorar. A situação que quero invocar é, no entanto, apenas uma circunstância, um fragmento desses momentos, cuja lembrança foi subitamente acordada.

                              Recordar-se-ão aqueles que partilham dessa experiência de manifestante ilegal que corre riscos, dos momentos que antecedem o clímax do protesto e a repressão: de início apenas um estranho silêncio, depois um rumor seco, vozes esparsas e em surdina, as pessoas todas muito juntas, ombros com ombros seguindo nos passeios, os olhares a medir o terreno, tensão no ar, as figuras casuais dos óbvios polícias à paisana, o ruído dos passos que batem no chão, compassados, antes ainda de se começar a gritar, primeiro a duas, depois a três, a cinco, a dez vozes, e de repente em uníssono. Revisitei tudo isto, mesmo sem perceber uma palavra daquilo que as pessoas murmuravam, e depois gritavam, ao ver o tal vídeo de rua gravado em Teerão. E senti, juro, a memória a arrepiar-se. Deve ser da idade.

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