Os sem-pistolas

Guardas-nocturnos

O recente caso da bandeira alvi-anil hasteada na varanda do município de Lisboa coincide com a divulgação de uma queixa da Associação Nacional de Guardas-Nocturnos por aqueles que não possuírem arma própria se verem forçados a trabalhar munidos apenas de uma simples lanterna. Imaginemos pois o problema que seria observar um desses senhores já com uma certa idade, mais barriga que perna, mais vulto que corpo, a enfrentar à mão-desarmada a sanha monárquica dos moços do Darth Vader. E se ele tivesse a reivindicada arma da ordem, o que faria? Dispararia para o ar lançando o pânico na madrugada da Rua do Arsenal e prejudicando a campanha eleitoral de António Costa? Ou atiraria sobre os próprios pés, para não experimentar problemas de maior?

Seguindo a Wikipédia, o guarda-nocturno é «um profissional que exerce a actividade de ronda e de vigilância de uma determinada área urbana, durante o período nocturno, auxiliando as forças de segurança e os serviços de protecção civil.» A actividade é antiga, tendo assumido um maior destaque urbano ao longo do século XIX, quando as cidades cresceram a um ritmo novo e a quietude da noite abalou para lugares ermos ou bairros despovoados. Em Portugal já foram milhares, mas hoje rondarão os 500, quase sempre em idade avançada, mal-equipados, sem grande treino, e até, temo, sem um enquadramento jurídico adequado. Lamento pela ANGN, mas se nem um homem dos seus, capaz de soprar o apito regulamentar para espantar os mariolas, se protegia do orvalho da noite sob as arcadas da varanda camarária, para que quer agora que a PSP lhes distribua pistolas? Ainda se fossem canhões…

    Apontamentos, Atualidade

    Nova havaneza

    Havaneza

    Vale a pena percorrer o Wallpaper City Guide de Havana, da colecção editada pelo diário i (mas que pode ser vendido isoladamente). Ignora de maneira olímpica os guias de viagem para cidadãos da classe média alvoroçados pela perspectiva de uns quantos dias com a cor do exotismo, e, claro, deixa em paz os desdobráveis oferecidos pelas embaixadas de Cuba. Percorre assim ruas e praças imutáveis, hotéis para turistas estrangeiros e alguns bares aprazíveis, duas ou três lojas e uns quantos edifícios públicos, sem cedências ao estereótipo do charme, à costumeira romantização da decadência, ao elogio militante da pobreza honrada, a uma épica refrescada a ventoinhas de pá. Mas também sem fazer a injustiça de negar o esforço suado do havanês comum para oferecer ao visitante o que de melhor consegue obter. Para viver uma vida complicada com o sorriso possível e um gingar de ancas, olhando sempre mais para o que foi, ou para o imediato, do que para aquilo que há-de vir. Nisto, o guia Wallpaper não difere muito dos ecos que nos vai legando a literatura cubana contemporânea. Como uma boa parte dela, oscilando entre o ritmo da vida pessoal e um horizonte colectivo imperscrutável: «Havana é hoje uma daquelas quinceañeras envergonhadas, uma adolescente à beira de se tornar mulher e de se ver livre de um pai autoritário.» Fica o desenho de uma cidade ritmada por um presente para gastar sem demoras já que o futuro está lotado de possíveis.

      Atualidade, Cidades, Olhares

      Memo achado no bolso do fato-de-banho

      Цивья со свим мужем Шимоном владели большим участком земи в Рамат аШароне. Они завещали его городу и в их честь на части этого участка разбит парк.

      Iuri Bradáček

        Devaneios, Etc.

        Lisboa com bandeira azul

        Bandeira Azul

        Uma mancheia de varonis mancebos «ligados ao blogue 31 da Armada», imbuídos de um compreensível e ilimitado bem-querer pela santa monarquia – pois tal coragem, por certo apenas a varonis mancebos é pela Padroeira outorgada –, trepou heroicamente até à varanda do Paços do Concelho de Lisboa e, com lídimo pundonor, hasteou no mastro da mesma um rectângulo de pano azul e branco. De acordo com os amigos dos jovens trigésimo-primeiristas (mas o que são «pessoas ligadas ao blogue 31 da Armada»? será o 31 da Armada uma ONG? uma seita? um bando? uma comandita?), o feito foi obtido apesar do pesado rumor das botifarras e das armas aperradas alardeado por essa «forte vigilância policial» que, como todos sabemos, percorre «a noite profunda» das nossas vilas e cidades para aterrorizar as famílias no seu honrado descanso. E para impedir que desde o mais insigne dos palácios ao humilde tugúrio do trabalhador estas afixem nos limiares das portas, tal como intimamente desejam, lindos azulejos com o brando semblante do Senhor Dom Duarte. Tais beneméritos da Pátria, a quem faltou apenas aquela Dona Aldegundes que não falhou a Paiva Couceiro – «é avante portugueses/é avante não temer», cantarão entrementes –, apenas podem ter a nossa compreensão. Sempre agitam mais este querido e tonto mês de Agosto que os blogues regimentais. Deus os guarde assim.

          Atualidade, Devaneios, História

          «Tá láa!…»

          Raul Solnado

          Nunca apreciei muito o humor de Raul Solnado. Algumas das razões desta desafectação percebem-se vendo ou revendo no YouTube pedaços dos seus anos dourados. Solnado fez rir gerações para as quais a levíssima insinuação da «malandrice» constituía um sinal de transgressão, a momice representava um corte num tempo pontuado por rigorosas máscaras, e o abuso do trocadilho perturbava uma fala pública ainda demasiado rígida, o que não foi pouco. Mas esse não era já o padrão de humor requerido por alguns dos da minha geração, e daí o inevitável distanciamento. Afinal também não ríamos com Fernandel, Totò ou Mario Moreno, o «Cantinflas». Recordo, no entanto, muitas pessoas que escutavam pela enésima vez os 45 rotações em vinil com a «ida à guerra» ou «o bombeiro», e pela enésima vez riam com textos que já conheciam de cor. Ou que iam ao Maria Vitória ou ao Variedades de propósito para o ouvirem. A essas, e a muitas outras – por vezes fora do registo da comédia –, Raul, o artista popular, ofereceu inesquecíveis instantes de divertimento e de felicidade. Suficientes, independentemente do gosto de cada um, para que a sua partida tenha deixado a nossa vida colectiva um pouco mais pobre e sisuda.

            Apontamentos, Memória

            Volto já.

            Recarga

            Não, o blogger não perdeu a voz nem desapareceu em combate. Passa só por uns quantos dias de letargia, como sempre menos que os desejados, para recarregar as pilhas e poder retomar a marcha com um pouco mais de força de braços.

              Apontamentos, Oficina

              «Foot-ball praticado was very bonito. Splendid!»

              Bobby Robson

              Na noite passada, a Sky News apresentou um programa sobre a vida e a obra de Sir Robert William Robson. Omitiu, no entanto, a sua passagem por Portugal, onde entre 1992 e 1996 treinou o Sporting e depois o FC Porto. E referiu José Mourinho apenas para dizer que este conheceu Bobby Robson no Barcelona, o que aliás não é verdade: foi em Lisboa que se encontraram e foi em Alvalade que começaram a colaborar. A atitude da Sky é, para nós, particularmente injusta. Desde logo porque aqueles foram anos intensos da vida de Robson, que este relembraria depois inúmeras vezes, ligados também, em especial ao serviço do Porto, a êxitos desportivos importantes. Depois porque a sua forma de trabalhar, a sua personalidade forte e a sua bonomia, associados a um portinglês inconfundível e espectacular, o transformaram num dos estrangeiros mais populares no nosso país, o que ficou agora bem patente na forma como inúmeras pessoas – até Sousa Cintra, que o despediu do Sporting mas entretanto reconheceu o erro – o evocaram de forma inequivocamente comovida e carinhosa. E também porque Bobby Robson foi um treinador e um profissional de futebol raríssimo por estes lados: daqueles que via no desporto do qual gostava e ao qual dedicou a vida inteira, como não se tem cansado de recordar quem o conheceu de perto, uma fonte de prazer e uma forma positiva de passar a correr por este mundo, não um problema constante para o fígado. No fim de contas, Sir Bob, o treinador que costumava esquecer-se dos nomes dos seus próprios jogadores, jamais deixou de ser um gentleman abroad. Por um acaso em comissão de serviço no universo pouco cavalheiresco do futebol.

                Apontamentos, Memória, Olhares

                Acaso perto da rua Gondova

                Livros

                Costumava comprar folhas de papel mata-borrão para o consulado numa pequena papelaria que existia por detrás do Faculdade de Filosofia da Universidade Comenius, junto à rua Gondova. Foi aí que, numa certa manhã, encontrei estranhamente esquecido, dado ter sido obra muito procurada por professores e alunos do Instituto Superior de Acústica em meados dos anos oitenta, um exemplar de Anonymi Leutsoviensis Tractatus de Musica, a tese de Zsuzsa Czagány parcialmente redigida em Munique. Completamente inexplicável ficou, para mim, o facto de esta conter ainda, na página 3, uma longa e apaixonada dedicatória da autora a Mark Spitz, o antigo campeão olímpico de natação.

                Iuri Bradáček

                  Ficção

                  Appuntamenti

                  Italian Girl

                  «Notas avulsas do périplo italiano de um Casanova eslovaco e metódico»

                  Alissa, Alessia, Adriana, Arianna, Amelia, Amalia, Anastasia, Ariana, Anna, Antonia, Alessandra, Aurora, Ambra, Alea, Alina, Annica, Anina, Bella, Bianca, Beatrice, Brigitta, Carina, Chiara, Cinzia, Concetta, Claudia, Celeste, Caterina, Clementina, Costanza, Corina, Daniela, Debora, Dalila, Dilara, Delia, Dania, Diana, Davida, Daria, Desdemona, Deodora, Doriana, Donatella, Dina, Dalia, Desideria, Eleonora, Elena, Elisa, Erica, Enrica, Emilia, Emma, Emanuela, Flavia, Fabia, Fabiana, Fabiola, Fiona, Fiorina, Fiorella, Filomena, Francesca, Federica, Gianna, Gina, Gioia, Giorgia, Giada, Gaia, Gabriella, Gloria, Giovanna, Ilaria, Ilenia, Iliana, Ilina, Irina, Isaura, Isabella, Jessica, Laura, Lara, Larissa, Leona, Leandra, Lea, Lina, Liana, Liara, Luana, Luciana, Luna, Linda, Livia, Liliana, Lorena, Loriana, Lucia, Leana, Letizia, Moana, Martina, Marina, Marilena, Mariella, Maria, Michela, Melania, Morena, Massima, Maura, Maurizia, Noemi, Naemi, Naomi, Nadia, Nadina, Nuria, Nina, Ornella, Oriana, Paola, Patrizia, Raffaella, Romina, Romana, Rachelle, Rebecca, Rossella, Rosa, Rosina, Rosanna, Renata, Sabrina, Sabina, Sarina, Samira, Sandra, Simona, Susanna, Silvia, Silvana, Sonia, Serena, Selena, Selina, Syria, Senta, Severina, Silveria, Stella, Stefania, Tullia, Tiziana, Tatiana, Tania, Tina, Valeria, Viviana, Vanessa, Valentina, Viola, Violetta, Vincenza, Vittoria, Ylenia, Zara, Zarina, Zaida

                  Iuri Bradáček

                    Ficção, Olhares

                    O sol e a peneira

                    Nómadas

                    O desejo de devir, escreve o sociólogo do quotidiano Michel Maffesoli no seu notável Du nomadisme, «penetra, conscientemente ou não, as diferentes atitudes sociais, e convida a uma vagabundagem cuja esfera é ilimitada». Inclusive ao nível das convicções e dos programas. Um dos dramas centrais da política contemporânea mainstream liga-se à tentativa dos seus representantes de derrotarem essa torrente, procurando atirá-la para o território desértico da crença voluntarista e da inocência utópica. Empurrando as sociedades para um tempo morto, confiado a uma gestão do possível concebida à vista e exclusivamente para o curto prazo. Ignorando as vagas que não podem dirigir para se fixarem nos escolhos que são capazes de deslocar.

                      Apontamentos, Olhares

                      Jogo de espelhos

                      Espelhos

                      Logo após ter escrito o post «In-dependências», recebi uns quantos mails perguntando explicitamente a quem me referia, e ainda um ou outro declarando taxativamente que eu visava o Senhor X ou Madame Y. Alguns desses ecos interpretavam o artigo como uma defesa empenhada da figura do independente, ao mesmo tempo que outros sugeriam que eu procurara justamente o contrário. Reli então o que escrevera e concluí que pouco mais havia a dizer.

                      Posso, no entanto, sublinhar o essencial: o texto não critica o princípio da intervenção política na condição de independente (*), e muito menos se refere objectivamente, e em termos pessoais, a A ou a B. Evoca apenas alguns dos fundamentos éticos da independência política, que me parece deverem ser transparentes e não falaciosos. Que acredito deverem somar diversidade, não repetir o repetido. E não reflectirem, por parte de quem os assume, por vezes em tom de comédia, um sentimento de superioridade moral estéril e até algo obsceno.

                      Se alguém não entendeu ou interpretou de outra forma aquilo que escrevi, tal só pode ter acontecido por duas razões: por falta de clareza da minha parte (melhor não sei fazer), ou por um desejo fortemente subjectivo de ler aquilo que lá não está (mas aqui o problema já me transcende). Salvo ocorra algum terramoto, ou Cristo desça de novo à Terra – na condição de independente, claro – não conto voltar ao assunto nos próximos tempos, pois não me parece que ele justifique o esforço nem quero entediar quem por aqui passa habitualmente. Por muito que exista quem possa considerar excitante observar o reflexo da própria imagem e efabular sobre a forma como os outros a observam.

                      (*) A partir da década de 1980, eu próprio participei em diversas campanhas, como candidato ou apoiante, na qualidade de independente. E foi nesta que dei agora o meu apoio público às listas do Bloco de Esquerda para o distrito e o concelho de Coimbra. Sem que me passe pela cabeça mimar um «bloquista» da linha dura (que los hay) ou repetir com enlevo frases dos dirigentes do BE. Sem sentir o dever de alienar a minha energia crítica.

                        Olhares, Opinião

                        ¡Carácoles!

                        Madrid

                        De acordo com dados do Barómetro de Opinión Hispano-Luso de 2009 divulgados ontem em Espanha, mais de 30% dos espanhóis e quase 40% dos portugueses apoiariam uma federação de ambos os países, se bem que um em cada três dos nossos vizinhos reconheça que a questão lhes é indiferente. Estes números foram obtidos a partir de uma sondagem feita telefonicamente a 513 espanhóis e a 363 portugueses maiores de 16 anos. Valem pouco, naturalmente, dada a dimensão da amostragem. E qualquer português percebe empiricamente que o número de adeptos de uma união ibérica é pouco mais que residual, existindo até uma cultura «anti-espanholista» atávica muito forte, particularmente entre as pessoas com mais de 40 anos.

                        O Barómetro adianta, entretanto, outras conclusões que vale a pena conhecer, sendo uma delas particularmente significativa (e, provavelmente, bastante mais realista): apesar de 84% dos portugueses ter visitado Espanha pelo menos uma vez na vida – e destes, um terço o ter feito entre duas e cinco vezes –, só pouco mais de metade dos espanhóis esteve alguma vez no nosso país, a larga maioria por uma única vez. Podem conhecer-se detalhes do inquérito no Público espanhol e também no El País. Mas em ambos os casos o mais interessante acaba mesmo por ser o tom de muito dos comentários, alguns de bom nível. Destaco uma hipótese-proposição de valor indiscutível, retirada de um deles: «Os habéis imaginado la selección de futbol que tendríamos? Adelante con la unión!!!».

                          Atualidade, Olhares

                          O problema é das velas (ou da válvula do carburador)

                          O problema

                          Um estudo do Conselho da Europa concluiu que Portugal «tem um nível muito elevado de utilização de tecnologias da informação e comunicação na Justiça», estando por esse motivo «no topo do ranking europeu». É bom sabê-lo. E melhor ainda imaginar a inveja que diante de tal notícia sentirão esses infelizes cidadãos dos países com uma Justiça que se serve ainda de tecnologias semiobsoletas mas funciona de um modo geralmente célere e eficaz.

                            Atualidade, Olhares

                            A nuvem

                            A nuvem

                            Acabo de descobrir que a Microsoft deixou de produzir e comercializar a Encarta, a primeira enciclopédia em versão unicamente electrónica. Entre 1993 e 2009, ela determinou um padrão de recolha, arquivamento e disponibilização popular dos saberes, servindo de modelo à transferência para o suporte digital de outras enciclopédias, como as consagradas Britannica e Universalis. Apesar do êxito que manteve por mais de uma década, a Encarta foi incapaz de resistir comercialmente ao efeito demolidor de uma «enciclopédia social», gratuita e colaborativa, como a Wikipedia. Esta conta hoje, e apenas na versão em inglês, com perto de 3 milhões de artigos, um número perfeitamente gigantesco quando comparado com os 42.000 artigos que podem ser encontrados na derradeira versão da Encarta. Não tem comparação com qualquer outra enciclopédia o ritmo de crescimento e o fluxo de consultas processados diariamente, minuto a minuto, pela Wikipedia, mas não deixa de ser preocupante que a fonte principal de conhecimento manipulada pela esmagadora maioria dos utilizadores da Internet seja um repositório sem autoria reconhecida e desprovido de processos de aferição da informação que recolhe e oferece. Sob a forma de nuvem, paira sobre as nossas cabeças um saber flutuante, por vezes equívoco e sujeito a constantes revisões, com a vida determinada pelo vento, cuja sombra pode ser tão estimulante quanto ameaçadora.

                              Cibercultura, Etc.

                              In-dependências

                              O independente

                              A pré-campanha eleitoral traz os independentes de regresso à boca de cena. Conhecedores da distância crescente que os tem vindo a separar do cidadão comum, os principais partidos procuraram resolver o problema tomando um caminho fácil e que não requer mudanças de rumo. Integraram então, nas listas de candidatos, elegíveis ou não, pessoas que não são militantes mas dispõem de prestígio político, profissional ou pessoal – para não falar de uma autoridade moral derivada justamente do seu descomprometimento em relação aos aparelhos partidários – capaz de gerar um «valor acrescentado» que pode tornar-se decisivo. A estratégia é democraticamente legítima, mas pode ser eticamente duvidosa, uma vez que muitas dessas «independências» correspondem ao rosto da cedência, ou mesmo do seguidismo, perante direcções políticas que assim maquilham a imagem pública sem cederem um milímetro na intimidade.

                              O historial desta «in-dependência» é longo e complexo. Os comunistas foram os primeiros a utilizá-la de forma sistemática, servindo-se frequentemente de compagnons de route, fellow-travellers, intelectuais «amigos» capazes de enunciarem uma política frentista que jamais questionou o seu papel de «vanguarda». Fazem-no ainda, como o pode comprovar, aqui no rectângulo, a intervenção dos «verdes» do PEV e de bem conhecidos militantes crónicos da «independência». Entretanto, todas as correntes passaram a recorrer ao subterfúgio, tendo dado particularmente nas vistas, nas semanas mais recentes, o Partido Socialista, assustado com os resultados das europeias e apostado em oferecer uma imagem pública de abertura – principalmente de abertura «à esquerda» – da qual sente absoluta necessidade. Estes «in-dependentes» surgem então, fundamentalmente, como nomes, rostos, corpos, carreiras, cuja presença visa um objectivo preciso, raramente enquanto factores de alargamento das propostas, das ideias, da capacidade reflexiva e até da representatividade. Por isso se mostram muitos deles mais papistas do que o papa, como é próprio de todos os que enxergam a luz da conversão ou tornam ao redil.

                              A independência, convém que se diga, pode no entanto conter muito de positivo. Ela não traduz, ou pelo menos não deve traduzir, apenas um regime de dispensa em relação à presença em maçadoras reuniões partidárias, ao pagamento sistemático das quotas, à sempre penosa distribuição de panfletos, à necessidade de beijar publicamente criancinhas incontinentes e matronas que exalam um certo odor a peixe, a ter de aguentar as tricas e as pancadinhas nas costas que ocorrem nos desvãos e antecâmaras das sedes partidárias. Muito ao contrário, ela pode ser algo de realmente difícil, que implica escolha, capacidade para remar a solo contra a corrente sempre que for preciso, não se envolver em cedências que podem trazer benesses mas implicam também a venda da consciência, saber requerer uma autonomia crítica que não significa desinteresse ou ausência de compromisso. Esta é a independência boa, verdadeiramente útil, com a qual os grandes partidos políticos só teriam a lucrar se com ela soubessem lidar.

                              No entanto, a independência da generalidade destes «in-dependentes» não tem essa cara. É certo que um independente companheiro de jornada não pode ser um cavalo de Tróia ou um franco-atirador: aproximando-se de um determinado partido, dando momentaneamente o rosto por ele, tem forçosamente de estabelecer pactos e, sobretudo em campanha eleitoral, acordos mínimos de lealdade e colaboração, não podendo desgastar as campanhas a partir de dentro. Se aceita colaborar «como independente», essa colaboração implica uma certa adesão programática, um mínimo de cumplicidade, empenho também, e bastante. Porém, deveria ainda, e obrigatoriamente, agregar diferença, questionando o questionável, apontando os erros que os militantes partidários se habituaram a desvalorizar ou não sabem ver, propondo caminhos possíveis, ainda que aparentemente «utópicos». Mostrando, afinal, sinais dessa diversidade, dessa abertura, que é suposto trazerem consigo. De outra forma, tornam-se cúmplices, involuntários ou não, de um logro. Mas é justamente este logro que me parece observar perante o espectáculo das razões que muitos «in-dependentes» têm invocado para justificarem a sua opção na batalha em curso. Desculpem que lhes diga.

                                Atualidade, Opinião

                                Ainda o caso da editora receosa

                                Os argumentos da Chiado Editora são lícitos e substanciais, mas não me apercebi de que alguém tivesse falado propriamente de censura à maneira do Santo Ofício ou da velha Comissão da dita. Falou-se, isso sim, de autocensura, medo e capitulação, sejam quais forem os outros nomes que se pretenda dar à atitude escolhida. Não é o mesmo, mas é igualmente assinalável. A defesa da liberdade tem custos, naturalmente, e sempre houve quem os não desejasse pagar. Mas também quem se batesse por ela, pagando algumas vezes pelos seus actos.

                                  Atualidade, Democracia