«A derrota é uma coisa preciosa»

Não basta deixar um link para este artigo do Rui Tavares nos destaques que costumam ficar por uns dias ali na coluna da direita. Quero sublinhá-lo pelo que nele se diz e pelo dele emana como exemplo. Gostaria muito de ouvir responsáveis do Bloco – e não apenas companheiros de jornada ou outsiders – a reflectirem assim, em público, construtivamente mas sem complexos, sem a preocupação de aparentar unanimismo, sobre o caminho próximo futuro da democracia e da esquerda que conta, aceitando que o caminho por si escolhido nem sempre tem sido perfeito, que as prioridades por vezes podem ser outras, que existem frentes por ocupar.

    Atualidade, Olhares

    Atão isto faz-se ó Pacheco?

    Pacheco 1 Pacheco 2

    O blogue da Pó dos Livros está a promover a eleição da pior capa de livro editada em Portugal. Após uma fase de pré-selecção, estão agora a votação pública as 10 que foram consideradas «mesmo mesmo mesmo» as piores de todas. Eu já votei e coloquei em primeiro lugar a dos Exercícios de Estilo, do Luiz Pacheco, lançada pela Estampa (que tem, aliás, 3 capas neste top ten). O mais estranho é que a capa da 1ª edição, que tenho aqui mesmo ao lado, me acompanhou durante anos como uma das favoritas da ficção portuguesa. E o mais extraordinário é que essa edição foi, em 1971, da responsabilidade da mesmíssima Estampa. Como escrevia Pacheco nos próprios Exercícios, «perdoai-me, senhor, mas ele há coisas…». Ora compare o leitor o antes e o depois.

      Memória, Olhares

      Intrinsecamente necessário, mas pouco

      Drive my car

      José Rodrigues dos Santos tem, salvo erro desde Agosto, um programa na RTPN – Conversa de Escritores – no qual pretende manter um registo de cavaqueira amena e sadia com alguns autores que toma por seus pares. Até se me esgotar a paciência, vi há dias um bom bocado da conversa com o chileno Luis Sepúlveda. O chorrilho de banalidades e frases-feitas, a incapacidade para um verdadeiro diálogo, foram impressionantes, dando claramente a ideia de que Santos contacta durante aqueles momentos um mundo que lhe é, no mínimo, exterior. Sepúlveda esforçou-se por ser simpático, como lhe competia, mas qualquer espectador normal pôde perceber o desconforto que sentia perante certas afirmações e algumas perguntas aflitivas. Como esta: «Quando escreve sente que escreve porque tem algo para escrever ou porque isso lhe é intrinsecamente necessário?»

        Olhares

        E agora?

        escadas, labirinto

        Sem rodeios: o principal vencido destas eleições autárquicas foi o Bloco de Esquerda. Mas a derrota só terá admirado quem viva demasiado fechado sobre o seu próprio universo de convicções. Para os outros, ela era de certa forma esperada. Anoto rapidamente quatro explicações que não esgotam o tema.

        1. Com uma descida para pouco mais de um terço da percentagem de votantes em apenas duas semanas, ficou mais do que claro que uma boa parte do voto nacional (e local) no Bloco é um voto de protesto. Por si só, o empenho de muitos militantes e o talento de alguns dos seus rostos mais conhecidos, bem como a capacidade evidenciada para impor uma linguagem pública adequada ao «ar do tempo», ainda não são suficientes para gerar um espaço estável de identificação. E para assegurar a necessária confiança na sua capacidade para gerirem de facto as vidas das pessoas.

        2. Por enquanto, quando descemos ao terreno, à dimensão do concelho, da freguesia, do bairro ou da rua, percebemos rapidamente a fragilidade orgânica do BE, as dificuldades de implantação social de muitos dos seus militantes e activistas, a falta de experiência de gente empenhada, muitas vezes generosa e cheia de energia, mas a quem falta sob muitos aspectos trabalho consistente reconhecido. Isso nota-se bastante no contacto directo e em eleições desta natureza, onde o que conta são principalmente os rostos dos candidatos e a segurança que oferecem.

        3. Tornou-se agora mais sensível uma das debilidades do Bloco que tem acompanhado o seu trajecto. Refiro-me ao facto de, durante a maior parte do tempo, a sua agenda se ter concentrado em excesso no trabalho parlamentar e nos calendários eleitorais, reduzindo progressivamente uma das áreas de intervenção do BE original que era a participação diária dos seus militantes, e também das suas estruturas nacionais, em causas que tenham a ver com interesses e expectativas situados para além do combate institucional. Reconheça-se: um espaço que o PCP tem sabido preencher melhor.

        4. Falo apenas como observador: é cada vez mais perceptível a opacidade do Bloco em relação à sua política de alianças. A «esquerda de confiança» – sempre achei infeliz e ambígua a expressão – hesita quando se trata de conciliar interesses, de «sujar as mãos» em experiências de poder que reduzirão necessariamente o peso do seu lado protestativo. Daí o grande erro que foi recusar em Lisboa uma aproximação a António Costa – o Daniel Oliveira já escreveu sobre isso – e, pior, o ter escolhido como alternativa um candidato que representa, em termos públicos, uma das vertentes mais rígidas do heterogéneo BE.

        Agora é preciso emendar caminho, rever expectativas, e, acima de tudo, tornar mais claros os objectivos do combate político. O que implica luta de ideias, discussão de projectos, e não apenas passar um pano morno por sobre as feridas. Mas isso será, naturalmente, com os militantes do Bloco.

        P.S. – Para que não existam confusões: eleitor em Coimbra, votei BE e apoiei publicamente o BE tanto nas legislativas como nas autárquicas. Não estou arrependido, mas também não sou cego.

          Atualidade, Opinião

          Viagem ao pior dos pesadelos

          Vítimas do genocídio cambojano

          Definir uma gradação para o horror perpetrado pela perversão totalitária é tarefa difícil e um pouco sórdida. Afinal, onde poderemos colocar os limites do razoável quando falamos da imposição pela força de uma ordem que se supõe acima do indivíduo? Ainda assim, os processos de repressão aplicados sob as experiências do «socialismo de Estado», quando comparados, acusam diferenças que não são meras nuances. Em From the Gulag to the Killing Fields, um livro tão necessário quanto terrível e sombrio, Paul Hollander compilou relatos de experiências pessoais da violência política sob os regimes «socialistas» de partido único que o mostram com clareza. De todas as experiências, porém, a mais extrema e absurda foi a vivida no Camboja entre Abril de 1975 e Janeiro de 1979, quando os Khmers Vermelhos procuraram impor, de um momento para o outro, uma experiência de engenharia social que passava pelo aniquilamento instantâneo de todos os vestígios materiais e humanos da ordem «capitalista», e pela instalação, sem quaisquer cedências, de um comunismo ruralista e integral. O resultado foi a destruição sistemática do país – da administração pública, da economia, da saúde, da cultura, da educação, e da própria vida urbana –, mas igualmente a morte de mais de um quinto da população, cerca de 2 milhões de seres humanos, maioritariamente aniquilados pela fome, pela doença, pela tortura ou pela exaustão.

          Denise Affonço, filha de mãe vietnamita e pai francês de ascendência portuguesa, residente em Phnom Penh na altura da vitória dos guerrilheiros, poderia ter abandonado a cidade e o país mas escolheu ficar com o marido, um comunista que interpretava a tomada do poder pelos Khmers Vermelhos como um passo para a construção da utopia de igualdade na qual acreditava. De origem chinesa, seria por isso mesmo rapidamente executado, enquanto Denise, com dois filhos menores a seu cargo, se via envolvida numa descida ao inferno da deportação em massa, do trabalho escravo em regiões remotas, e do castigo sistemático, gratuito e cruel, determinados apenas, tal como aconteceu com milhões de cambojanos, pelo facto de ser arbitrariamente considerada uma «representante da velha sociedade», um vestígio vivo dos «demónios do passado» que era necessário matar. Foi longa a sua via-sacra: lugares cada vez mais inóspitos, regimes de trabalho cada vez mais inflexíveis, guardas cada vez mais brutais e discricionários, concentrada apenas na sobrevivência elementar. Mas também na resistência psicológica, particularmente difícil num quadro legal de desumanidade dentro do qual se declarava formalmente ser «proibido exprimir sentimentos de alegria ou de tristeza», queixar-se do quer que fosse, ou afirmar um qualquer traço de individualidade e diferença.

          Apesar do tudo aquilo por que passou ao longo de quase quatro anos, e de lá onde se encontrava ter por diversas vezes tocado a frágil linha que parecia separar a vida da morte, Denise sobreviveu para nos oferecer este testemunho perturbante. Redigido com uma capacidade pictórica e uma intensidade dramática apenas possíveis em quem viajou de facto até onde a existência é regida pelo mal mais absoluto, pela barbárie extrema, que de tão inimaginável mais parece retirada do pior dos pesadelos.

          Denise Affonço, No Inferno dos Khmer Vermelhos. Testemunho de uma sobrevivente. Tradução de Carlos Correia Monteiro de Oliveira. Pedra da Lua, 184 págs. [Publicado na LER de Setembro]

            História, Memória

            A «rua» madeirense

            Guerrilha

            Como muitas outras pessoas que politicamente nada têm a ver com eles, tenho vindo a desenvolver alguma admiração pelo trabalho guerrilheiro dos militantes do PND. Aquele grupo de cidadãos um bocado reaças mas corajosos que na Madeira lutam praticamente sozinhos contra o poder arbitrário e troglodita de Jardim, Ramos e respectiva confraria. Que apenas se mantém no poder porque os governos da República condescendem com as tropelias e os contribuintes portugueses, todos eles, pagam a «vasta obra», as facturas e os respectivos juros. Uma vez que está fora de questão um desembarque de pára-quedistas aliados no Paúl da Serra ou na Ponta do Pargo, e uma grande parte da oposição local é visivelmente conivente com a teia clientelar do PSD – ou então demasiado «responsável» e instalada para se envolver em tropelias – restam-nos estas pessoas para falarem a única língua que Jardim realmente entende. A da rua, do berro e do empurrão. Mas assim ouvimo-los.

              Atualidade, Democracia

              Um problema para o Super-Obama resolver

              Super-Obama

              Hoje de manhã, quando me perguntaram o que pensava sobre a escolha de Barak Obama para Nobel da Paz, pensei que estavam a gozar comigo. Não porque me parecesse completamente imerecido – não faço para daquele grupo de idiotas que considera «Obama pior que Bush» sem conseguir perceber que o vento mudou e a América com ele – ou por falta de simpatia pela pessoa em si. Longe disso. Mas simplesmente porque ainda não tinha ouvido a notícia e não a julgava possível. Acontece que a parte que cabe ao presidente dos EUA na obra de pacificação do mundo está ainda quase toda por fazer e declarações de intenção, associadas a enormes doses de charme, não deveriam servir, julgava eu, de atestado de cumprimento da missão que este prémio supõe. Ao mesmo tempo, eleva a fasquia e coloca sobre os ombros do presidente americano uma pressão que pode vir a prejudicar o seu trabalho futuro. Obama não é Clark Kent e muito menos o Super-Homem.

                Apontamentos, Atualidade

                Maus garfos

                Raúl e Fidel

                Num número recente da revista barcelonesa Clío, o historiador Xavier Casals escreve sobre o paladar dos ditadores. Como seria de esperar, a maior parte deles detestava comer ou então comia sem critério. Hitler era vegetariano e adepto de refeições frugais, não abrindo excepções nem para a última, engolida no bunker de Berlim e composta apenas por esparguete. Mussolini gostava um pouco mais da boa mesa, mas a débil saúde gástrica afastava-o dos excessos. Franco comentava muitas vezes, como se de qualidade se tratasse, que não tinha grande paladar, comia qualquer coisa, mas muito pouco e sem prazer. Salazar era também muito austero à mesa, preferindo os pratos simples vindos da infância beirã. Já Estaline gostava de beber, embora ingerisse sólidos sempre em pequenas quantidades e sem aparente prazer. Kruchtchev, foi a excepção, como se percebe rapidamente pela iconografia dos seus anos de poder, e Mao um caso particular, uma vez que se esforçava por parecer moderado em público enquanto em privado comia vorazmente. O autor do artigo não conseguiu, porém, obter informação fidedigna sobre a dieta seguida por Fidel Castro antes de adoecer, embora tenha conseguido saber que este consumiu ao longo de muitos anos uma bebida energética a que chamava a sua «fórmula tsunami». O amigo Hugo Chávez, com a propensão que se lhe reconhece para falar sempre um pouco mais do que devia, descreveu-a em 2007 como sendo «uma fórmula que tem Fidel para enfrentar o imperialismo e a agressão», composta por uma papa feita «de 50% de trigo, 20% de aveia e 30% de centeio» misturados com um pouco de água ou leite. Poder absoluto e qualidade de vida não são, pois, aspectos que pareçam combinar lá muito bem. Os prazeres da mesa amolecem e um ser providencial não pode amolecer sem prejudicar a sua missão terrena.

                  Etc., História

                  Desespero e silêncio

                  Cadência

                  Não são «manifestamente exageradas» as notícias que chegam sobre o número de suicídios – 24 pessoas em 18 meses – entre os trabalhadores da France Telecom incapazes de corresponderem às metas brutais, às cadências impossíveis e às deslocações forçadas que têm sido impostas pela administração da empresa. Como método, o processo não é novidade alguma, e conhecem-se desde há décadas situações análogas ocorridas, por exemplo, nos EUA, no Japão ou em Singapura. No passado, a União Soviética das brigadas stakhanovistas viveu também muitos casos semelhantes. A diferença estará apenas no facto de, por esta vez, as organizações de trabalhadores se terem revelado particularmente atentas denunciando o drama através dos media. Afinal a tradição francesa de independência do movimento sindical e de luta pelos direitos dos trabalhadores não constitui propriamente uma lenda. Talvez ela possa servir de inspiração a muitos dos nossos sindicalistas, por vezes mais preocupados em fazer coincidir as suas batalhas com metas políticas externas do que em ir ao fundo do lado menos visível, mais sombrio, da realidade humana com a qual lidam e que é suposto representarem. Porque é impossível, no actual contexto envolvendo tantas reestruturações profundas e unilaterais, e um culto declarado dos «índices de sucesso», que não ocorram entre nós casos análogos de depressão e desespero. Onde pára a voz das pessoas que têm de os suportar?

                    Atualidade, Democracia, Olhares

                    Deserção

                    O desertor

                    É dúbia, esquiva, quase sempre sombria, a aparência do desertor. Amaldiçoada ou reconhecida, criminalizada ou heróica, a deserção começa por ser aquilo que os outros – aqueles que a avaliam à distância – declaram que é. Na guerra de 14-18 os pacifistas exaltavam-na como acto de coragem, ao mesmo tempo que os códigos de justiça militar agravavam os castigos sobre os «traidores». No confronto civil que se seguiu à revolução de 1917, o julgamento variou consoante a direcção tomada pelo foragido. O mesmo aconteceu em Espanha durante a Guerra Civil, na Segunda Grande Guerra, no Vietname, em Angola, em Israel, na Chechénia ou no Afeganistão. A cada momento, em cada situação, foram quase sempre os outros, aqueles que não calçavam a bota militar, a decidir sobre a dimensão ética e o enquadramento penal desse gesto radical e sem retorno de desertar.

                    Raramente têm sido reconhecidas as razões dos que não aceitam uma motivação política ou moral para continuarem a combater e se decidem pela recusa. Os que o fizeram, ou continuam a fazer, não por um belo dia darem por si na trincheira errada de uma guerra justa ou injusta, ou por se descobrirem pacifistas, mas apenas pelo humano medo da morte, por lhes parecer que a vida é demasiado hospitaleira para caírem no campo de batalha, esventrados por uma granada ou com os miolos perfurados por uma bala. Esses são aqueles que ambos os partidos combatentes rejeitam, mas cujas razões são tão válidas, tão certas, tão admissíveis, quanto as dos que encontram uma explicação para morrerem ou para trocarem de lado e prosseguirem o combate. São aqueles cuja decisão urgente os leva a decidirem-se pelo último assomo de coragem que só faltou ao valente soldado Schweik porque Hašek não chegou a concluir o seu romance.

                      Etc., Olhares

                      Desigualdade é isso mesmo

                      Bem sei que nem tudo aquilo que os candidatos autárquicos, principalmente ao nível de freguesia, anda por aí a dizer, decalca necessariamente as posições dos partidos que sustentam as suas candidaturas. Por isso não vou identificar a lista que concorre à Junta de Freguesia de Alcafache, em Mangualde – digo apenas que não é de direita –, que sendo composta apenas por mulheres declara possuir, por este preciso motivo, razões de sobra para ter «maior sensibilidade para os problemas sociais». Como toda a gente sabe, os homens são sempre, e lá no fundo, uns grandes e insensíveis brutos. E as senhoras óptimas a fazer naperons, a ajudar os necessitados e a espalhar o Bem. São ínvios e insondáveis os caminhos das representações conformistas do feminino.

                        Apontamentos

                        WB indiscreto

                        Walter Benjamin

                        Este é um retrato quase íntimo, como um close-up, da vida e da obra de Walter Benjamin. Conhecem-se os livros publicados em vida – apenas quatro monografias, uma colectânea de cartas, traduções avulsas para o alemão de Proust, Balzac e Baudelaire – suficientemente frequentados e glosados, mas o berlinense deixou outros indícios. São alguns destes – pequenos ensaios e notas de leitura redigidos para jornais, revistas literárias e publicações académicas, transcrições parciais de alguns dos 90 programas de rádio que realizou, cartas e memórias deixadas por muitos daqueles com quem cruzou os passos – que Esther Leslie aproveitou de forma inédita para seguir de perto o seu trajecto invulgar.

                        Pequenos trechos, ténues pistas, anotações casuais que permitem seguir Walter no seu extravagante amor por brinquedos, pelos livros infantis, por barcos e viagens, por mulheres impossíveis. Entre os contactos com a Escola de Frankfurt, as ligações que manteve com Adorno, Scholem e Brecht, e as constantes deambulações pela Europa, redescobre-se a genealogia quase diletante dos seus escritos mais conhecidos, os fundamentos do limitado impacto que à época detiveram, bem como os contornos de uma vida privada quase sempre instável, dependente, atormentada. Ao mesmo tempo, recontextualiza-se o interesse multifacetado e fragmentário pela estética da tecnologia, pela cultura urbana, pelo peso das ruínas ou pela teoria marxista, reconhecendo em Benjamin alguém que viveu fundamentalmente, quase sempre, para o/através do relacionamento com os outros. Replicando em contínuo, à maneira de um blogger, aos estímulos e às recusas que se aproximavam. [Esther Leslie, Walter Benjamin. Trad. de Rui Mesquita. Fio da Palavra, 268 págs.]

                          Etc.

                          Eleições autárquicas e kitsch

                          Kitsch

                          Não é fácil abordar a dimensão kitsch de um certo poder autárquico e das campanhas eleitorais que o consagram. O exercício pode ser visto como um gesto imprudente, resultante de snobismo ou de arrogância. Pode ser olhado como manifestação de desdém por um dos círculos do regime democrático onde mais se têm feito sentir as mudanças positivas. Embora qualquer pessoa honesta e razoável reconheça que corresponde também a um dos campos nos quais a corrupção, o esbanjamento e o desatino têm ido mais longe. Em regra impunemente, pois os seus promotores têm quase sempre o bom senso de irem apagando as pistas. Mas resta a obra e o estilo, e sobre estes podemos sempre ir conversando.

                          A voga do kitsch enquanto experiência de mau gosto com capacidade para consagrar códigos estéticos que contribui para sacralizar o poder – nesta direcção, o nazi e soviético foram particularmente eloquentes – materializa uma dos sinais mais fortes deste lado lamentável e disforme da política. Reportando-se à sua ligação com o campo das artes, Gillo Dorfles anotou, num artigo publicado em 1963 na revista Aut-Aut, que o próprio conceito de kitsch é aplicável «à obra de arte, ao seu criador e ao seu desfrutador». Acredito que a ideia pode ser estendida à dimensão visual e simbólica de um certo modo de exercer, de dar voz e de legitimar o poder local.

                          Sob esta perspectiva, exercer o poder local significa então sobretudo «mostrar obra», independentemente da sua integração harmoniosa no meio e da racionalidade do valor de uso que comporta. Produzem-se então – todos conhecemos centenas ou mesmo milhares de casos – estradas e arruamentos desnecessários, rotundas supérfluas, praças megalómanas, edifícios sem serventia clara, museus e bibliotecas desprovidos de recheio e de programação, estátuas e mobiliário urbano de péssimo gosto, opções toponímicas duvidosas, quando não ridículas, e políticas culturais atentas apenas ao paladar e aos ímpetos identitários mais primários.

                          Dar voz passa, nesta dimensão, por personalizar o poder, não tanto em função do resultado final mas antes a partir do rosto visível do «dono da obra». Só isto pode justificar o alastramento frequente de uma política clientelar local tendo como vértice, nos casos de maior sucesso, figuras de chefes locais reconhecidamente autoritários, por vezes corruptos, com uma má imagem para além dos limites físicos do concelho, mas associados a um discurso e a uma imagem populista e kitsch, próprias daquele «chico-espertismo» arrivista e bem sucedido do qual recentemente falou José Gil. Os casos de Ferreira Torres, Valentim Loureiro ou Fátima Felgueiras, com uma iconologia própria, são os mais conhecidos, por mais mediatizados, mas estão longe de serem únicos (o campeonato de Isaltino de Morais é, reconheça-se, um pouco diferente).

                          As eleições autárquicas são também um momento decisivo no processo que visa legitimar a autoridade e as opções de quem se instala. Dada a visibilidade do momento, torna-se aqui mais perceptível do que nunca a dimensão do mau gosto exibido pelas campanhas e pelos seus figurantes. Desde logo na propaganda concebida para a ocasião: a pose «presidencial» na roupa domingueira, o grafismo exuberante e primário dos cartazes, a sobreposição até à náusea da simbólica identitária local, as palavras de ordem sobre a devoção filial do candidato à sua terra e sobre o amor desmedido que consagram às ruas, às tradições e, naturalmente, aos seus eleitores. Aliás, na Fenomenologia do Kitsch Ludwig Giesz chamou a atenção para o sentimentalismo – como é sabido, um subproduto do ultra-romantismo – como um dos recursos mais poderosos de «mau gosto estético». Daí a proliferação de candidatos que se servem dos cartazes para, mimando a publicidade aos concertos de Tony Carreira, chegarem, «com amor», «com ternura», com açúcar e afecto, aos corações sensíveis de quem os elege.

                          Por último, intimamente associados a estes aspectos, as políticas e os programas culturais seguem muitas das vezes a mesma lógica kitsch, assumindo o conceito de cultura na sua perspectiva mais popular – no sentido do vulgar, nem tanto no do etnográfico – e passadista. Declaram, para o efeito, uma opção de interesses por um passado histórico frequentemente manipulado e pelo culto do «popularucho», rejeitando, em regra por inabilidade política, provincianismo e fechamento de perspectiva, uma lógica de adequação ao mundo contemporâneo e às expectativas dos segmentos mais informados e dinâmicos da população que os escolhe.

                          Este panorama não pode ser generalizado, pois subsistem bons exemplos de atitudes completamente diversas. Mas vivendo como vivo em Coimbra, posso dizer que habito um dos mais destacados vórtices da política autárquica kitsch. Fazendo, garanto, um esforço diário para lhe sobreviver e para não deixar de amar a minha cidade.

                            Atualidade, Olhares, Opinião

                            Gracias a Mercedes

                            Mercedes Sosa morreu hoje em Buenos Aires. Se fue então para um algures bem distante. A sua voz foi das poucas, vindas do canto de intervenção internacional das décadas de 1960-70, que jamais deixou de me empolgar. Talvez por ser tão poderosa que parecia chegar lá do fundo mais fundo da alma humana. Por ser simplesmente solidária, longe do panfleto e mais forte que as circunstâncias. Pelo menos eu assim a ouvi e assim a recordarei.

                            [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=cTZSmuiIHPs[/youtube]
                            Gracias a la Vida – Mercedes ao vivo com Joan Baez
                              Memória, Música

                              Sem noite

                              Estive apenas duas semanas em Banská Bystrica, à beira do Hron. Mas foram dias felizes, perfeitos, sem noite. Naquela época não sabia que existiam dias sem noite abaixo do paralelo 62.

                              Iuri Bradáček

                                Apontamentos

                                Recordando Helgi

                                Gelgi

                                Helgi Hóseasson morreu há menos de um mês em Reiquejavique. Tinha 89 anos e era uma das figuras mais conhecidas da cidade. Desde 1962, quando tentou «desbaptizar-se», iniciando então um combate público contra a igreja nacional e o governo, que se comportava como um manifestante «profissional», sempre solitário, num país onde atitudes dessa natureza eram consideradas próprias de inimputáveis. Em 1972 obteve notoriedade internacional quando despejou skýr – um produto similar ao iogurte – sobre o bispo da Islândia, o presidente da República e diversos membros do parlamento. Era visto todos os dias num cruzamento da capital, segurando placas com reivindicações ou palavras de ordem, muitas das vezes escritas num registo poético, sobre temas como as relações entre Estado e Igreja, as iniciativas dos líderes políticos, ou a decisão do governo islandês de apoiar a guerra do Iraque. No contexto da brutal crise na qual a «próspera» Islândia recentemente caiu, a sua determinação tornou-se uma espécie de símbolo, um exemplo de inconformismo, estando neste momento em curso uma campanha pública, que reuniu já perto de 28.000 assinaturas (num país com apenas 317 mil habitantes), para que seja erguida uma estátua em sua memória. Em 2003 foi rodado um documentário sobre a sua vida – Mótmælandi Íslands (O Manifestante da Islândia) –, enquanto um museu local acaba de adquirir as placas utilizadas por Helgi por considerá-las parte do património cultural e histórico do país. É bom saber que existem lugares onde as figuras memoráveis, que deixaram um rastro, não são obrigatoriamente «pessoas de sucesso».

                                  Democracia, Etc.