Eleições autárquicas e kitsch

Kitsch

Não é fácil abordar a dimensão kitsch de um certo poder autárquico e das campanhas eleitorais que o consagram. O exercício pode ser visto como um gesto imprudente, resultante de snobismo ou de arrogância. Pode ser olhado como manifestação de desdém por um dos círculos do regime democrático onde mais se têm feito sentir as mudanças positivas. Embora qualquer pessoa honesta e razoável reconheça que corresponde também a um dos campos nos quais a corrupção, o esbanjamento e o desatino têm ido mais longe. Em regra impunemente, pois os seus promotores têm quase sempre o bom senso de irem apagando as pistas. Mas resta a obra e o estilo, e sobre estes podemos sempre ir conversando.

A voga do kitsch enquanto experiência de mau gosto com capacidade para consagrar códigos estéticos que contribui para sacralizar o poder – nesta direcção, o nazi e soviético foram particularmente eloquentes – materializa uma dos sinais mais fortes deste lado lamentável e disforme da política. Reportando-se à sua ligação com o campo das artes, Gillo Dorfles anotou, num artigo publicado em 1963 na revista Aut-Aut, que o próprio conceito de kitsch é aplicável «à obra de arte, ao seu criador e ao seu desfrutador». Acredito que a ideia pode ser estendida à dimensão visual e simbólica de um certo modo de exercer, de dar voz e de legitimar o poder local.

Sob esta perspectiva, exercer o poder local significa então sobretudo «mostrar obra», independentemente da sua integração harmoniosa no meio e da racionalidade do valor de uso que comporta. Produzem-se então – todos conhecemos centenas ou mesmo milhares de casos – estradas e arruamentos desnecessários, rotundas supérfluas, praças megalómanas, edifícios sem serventia clara, museus e bibliotecas desprovidos de recheio e de programação, estátuas e mobiliário urbano de péssimo gosto, opções toponímicas duvidosas, quando não ridículas, e políticas culturais atentas apenas ao paladar e aos ímpetos identitários mais primários.

Dar voz passa, nesta dimensão, por personalizar o poder, não tanto em função do resultado final mas antes a partir do rosto visível do «dono da obra». Só isto pode justificar o alastramento frequente de uma política clientelar local tendo como vértice, nos casos de maior sucesso, figuras de chefes locais reconhecidamente autoritários, por vezes corruptos, com uma má imagem para além dos limites físicos do concelho, mas associados a um discurso e a uma imagem populista e kitsch, próprias daquele «chico-espertismo» arrivista e bem sucedido do qual recentemente falou José Gil. Os casos de Ferreira Torres, Valentim Loureiro ou Fátima Felgueiras, com uma iconologia própria, são os mais conhecidos, por mais mediatizados, mas estão longe de serem únicos (o campeonato de Isaltino de Morais é, reconheça-se, um pouco diferente).

As eleições autárquicas são também um momento decisivo no processo que visa legitimar a autoridade e as opções de quem se instala. Dada a visibilidade do momento, torna-se aqui mais perceptível do que nunca a dimensão do mau gosto exibido pelas campanhas e pelos seus figurantes. Desde logo na propaganda concebida para a ocasião: a pose «presidencial» na roupa domingueira, o grafismo exuberante e primário dos cartazes, a sobreposição até à náusea da simbólica identitária local, as palavras de ordem sobre a devoção filial do candidato à sua terra e sobre o amor desmedido que consagram às ruas, às tradições e, naturalmente, aos seus eleitores. Aliás, na Fenomenologia do Kitsch Ludwig Giesz chamou a atenção para o sentimentalismo – como é sabido, um subproduto do ultra-romantismo – como um dos recursos mais poderosos de «mau gosto estético». Daí a proliferação de candidatos que se servem dos cartazes para, mimando a publicidade aos concertos de Tony Carreira, chegarem, «com amor», «com ternura», com açúcar e afecto, aos corações sensíveis de quem os elege.

Por último, intimamente associados a estes aspectos, as políticas e os programas culturais seguem muitas das vezes a mesma lógica kitsch, assumindo o conceito de cultura na sua perspectiva mais popular – no sentido do vulgar, nem tanto no do etnográfico – e passadista. Declaram, para o efeito, uma opção de interesses por um passado histórico frequentemente manipulado e pelo culto do «popularucho», rejeitando, em regra por inabilidade política, provincianismo e fechamento de perspectiva, uma lógica de adequação ao mundo contemporâneo e às expectativas dos segmentos mais informados e dinâmicos da população que os escolhe.

Este panorama não pode ser generalizado, pois subsistem bons exemplos de atitudes completamente diversas. Mas vivendo como vivo em Coimbra, posso dizer que habito um dos mais destacados vórtices da política autárquica kitsch. Fazendo, garanto, um esforço diário para lhe sobreviver e para não deixar de amar a minha cidade.

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