Auschwitz Gulag | 2. A sentença

Varlam ShalamovNascido em 1907 na cidade russa de Vologda, durante a juventude o escritor, poeta e jornalista Varlam Shalamov participou das actividades do grupo literário esquerdista LEF. Em Fevereiro de 1929, quando era estudante da Universidade de Moscovo, foi detido pela primeira vez sob a acusação de difundir o «testamento político» de Lenine. Tratava-se de uma das últimas cartas do dirigente bolchevique, na qual este apontava a necessidade de afastar Estaline do cargo de secretário-geral do Partido Comunista. Nos anos trinta, a difusão do documento, considerado apócrifo pelas autoridades, iria custar a vida a diversas pessoas. O escritor passou então cerca de três anos em campos de concentração nos Urais. Em 1937 foi novamente detido e enviado para a Sibéria Oriental, para Kolima, um dos mais mortais campos do Gulag. Primeiro como prisioneiro e depois como deportado, ali permaneceu até 1953. Seria completamente reabilitado em 1956, após o XX Congresso do PCUS. Os Contos de Kolima, de um dos quais se transcreve aqui um fragmento, foram escritos entre 1954 e 1973 com um cunho acentuadamente autobiográfico, mas só começaram a ser publicados em revistas e jornais literários nos anos da perestroika. Durante a vida, Shalamov apenas conseguiu publicar cinco colectâneas de poesia, tendo morrido sozinho, cego, surdo e sem meios pessoais em 1982.

Os homens surgiram do nada, uns atrás dos outros. À noite, um homem desconhecido deitava-se na minha tarim­ba, encostava-se ao meu ombro ossudo, transmitindo-me o seu calor – gotas de calor – recebendo o meu em troca. Havia noites em que nem sequer uma gota de calor chegava até mim através dos farrapos de um casaco, de um jaquetão acolchoado. E, de manhã, olhava para o vizinho como para um cadáver e ficava admirado quando via que o cadáver estava vivo, se levantava ao som dos gritos, se vestia e cum­pria obedientemente as ordens. Eu tinha muito pouco calor. Nos meus ossos restava muito pouca carne. Bastava apenas para ter raiva, o último dos sentimentos humanos. O último dos sentimentos humanos, o mais próximo dos ossos, não é a indiferença mas a raiva. O homem, que aparecia do nada, desaparecia de dia: na mina de carvão havia muitos sectores, e desaparecia para sempre. Não conheço as pessoas que dormiram ao meu lado. Nunca lhes fiz perguntas, não porque seguisse o provérbio árabe: não perguntes para que não te mintam. Era-me indiferente que me mentissem ou não, eu estava para além da verdade, para além da mentira. Sobre isto os criminosos têm um ditado severo, claro e gros­seiro, cheio de um desdém profundo para quem faz a per­gunta: se não acreditas, pensa que é um conto de fadas. Eu não perguntava e por isso não ouvia contos.

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    Democracia, História, Memória

    Pesadelo ibérico

    Numa esquina, não da vida mas da Internet, reencontrei um som do passado. Inesquecível o pesadelo que foi, no início dos anos 70, uma viagem quase inteira entre Lisboa e Madrid, à boleia, ao som de sucessivos cartuchos (cartuchos mesmo, esses antepassados voluminosos da velhas cassetes) da orquestra e coros de Ray Conniff. Ainda não me recompus.

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      Etc.

      Um Napoleão suavizado

      Napoleão Bonaparte

      O nome de Napoleão evoca invariavelmente o ruído da bota militar. Nesta direcção, a maioria das obras que lhe são dedicadas ocupa-se sobretudo da sua intervenção como chefe supremo do exército francês ou com o vigor real e simbólico da sua iniciativa imperial. O que propõe um texto sedutor como este de Steven Englund é algo de diverso, enfatizando principalmente a actuação política do genial corso, e procurando transformá-lo – é esse o propósito visível de um autor fascinado com o seu objecto – no arquétipo do homem político moderno, comparável, em termos de exemplaridade e de influência, ao de um príncipe do Renascimento. Seguindo de um modo muito próximo a vida do imperador – da infância na Córsega ao exílio de Elba e à morte em Santa Helena, passando pelos anos de formação em França, pela fulgurante carreira militar e pelo excepcional trajecto político – este trabalho enciclopédico tudo faz para modificar, junto da opinião pública e no interior do universo académico, a imagem repetidamente exagerada desse Bonaparte «que nos intimida e nos repugna há demasiado tempo». Revelando, ao invés, como nos anais do Primeiro Império que fundou é impossível, por mais que rebusquemos, encontrar exemplos arbitrários de pura maldade. Uma tese que surpreenderá alguns, projectando uma outra luz sobre uma parte da história que julgávamos fixada de uma vez por todas. Mas Englund é americano e talvez por isso menos permeável ao longo rasto de ódio e pavor que Napoleão foi deixando pela Europa. [Steven Englund, Napoleão. Uma Vida Política. Trad. de Pedro Elói Duarte. Edições 70, 648 págs.]

        História

        Israel num Moleskine

        Israel

        Um sketchbook é isso mesmo: um livro de impressões gráficas, de observações desenhadas num movimento de passagem, colecção de rascunhos rápidos e por isso fatalmente intensos. Começa assim: «São 7H00 da manhã… Chego ao Aeroporto Internacional Ben Gurion muito mais tarde do que o previsto.» Israel Sketchbook, de Ricardo Cabral (ASA) é um belo livro de BD que não é bem BD: induz, na forma, uma aproximação ao mesmo tempo documental e ficcionada a um dos países do mundo que concentra um volume particularmente anormal de juízos absolutos e contraditórios, passionais, por vezes demenciais. E não desilude. Por todo o lado uma cor arenosa, muita luz e uma coloração forte, impactos de bala visíveis, e principalmente gente, muita gente diferente, de diferentes cores e credos, que dê por onde der seguirá em conjunto para sempre. Sabemos que assim será porque, como observou a psicanalista e historiadora Elisabeth Roudinesco em entrevista aparecida há dias na revista Inrockuptibles, «não podemos reduzir Israel ao seu exército e aos seus líderes políticos.» Muito bom e incandescente este álbum.

          Atualidade, História

          Olá/Hola Ibéria/Iberia!

          Iberia

          Aquilo que os esforçados iberistas de Oitocentos não conseguiram através do publicismo, nem Franco obteve por se haver gorado o projecto de invasão de Portugal, está o futebol em vias de materializar. Segundo o jornal A Bola o primeiro passo está dado com a candidatura luso-espanhola à realização do Mundial de Futebol de 2018 (ou de 2022) e agora com a apresentação do logótipo da mesma, «inspirado na obra de um artista luso e outro castelhano (no caso, José Guimarães e Miró)» (sic). Gilbero Madaíl diz ao Record que este «transmite a ideia de união e vontade entre dois países que estão entrelaçados.» Sugere-se assim, graficamente, a hipótese de uma fusão que não deixaria de comover Seribaldo de Mas e Latino Coelho, de exaltar Xisto Camara e Henriques Nogueira, de deixar optimistas Pi i Margall e Oliveira Martins. A Señora Del Pilar e a Virgem de Fátima coligadas nos defendam do que aí vem.

          Iberia

            Atualidade, Devaneios

            Auschwitz Gulag | 1. A abrir

            O campo

            Preludiando Auschwitz Gulag, uma sucessão de posts documentais sobre a experiência concentracionária imposta pelos regimes totalitários do século 20.

            Inocentar ou justificar a dimensão ferozmente repressora do «socialismo real» em nome de uma repressão maior, de crimes forçosamente mais graves praticados pelos diversos cães de fila do capitalismo, não tem qualquer sentido. Em ambos os casos falamos de coerção, de tortura ou de morte que são absolutas, não possuindo cor ou ideologia salvo na sua forma exterior. Não existe uma tortura «boa», aceitável ou desejável porque praticada sobre quem merece, e outra «má», inadmissível porque exercida sobre quem tem a razão do seu lado. Se alguma disjunção pode ser traçada, será precisamente aquela que admite como perversão aquilo que outros defendem como uma necessidade, aquela que separa os crimes terríveis que podem ser denunciados dentro do sistema, que podem ser parados pela pressão da opinião pública, como sucede nas democracias, daqueles outros recorrentemente praticados e invariavelmente silenciados sob os regimes totalitários. Onde o silenciamento funciona também como instrumento de anulação do individuo e dos seus direitos.

            Pelos relatos daqueles que sobreviveram aos Lagern nazis e ao Gulag percebemos que a caracterização do encarceramento concentracionário, «a experiência do século» como lhe chamou Heinrich Böll, diverge entre eles num aspecto crucial. Nos campos alemães, o detido era-o num tempo que antecedia a previsível inevitabilidade do fim. E sabia-o, uma vez que pertencia, em regra, a um grupo destinado a ser erradicado de forma mecânica e implacável. Uma inflexibilidade revelada até na impiedade nazi diante das crianças, rara nos campos soviéticos. A norma nos redutos do Holocausto era a da luta mais extrema do prisioneiro, permanentemente imerso no medo, no horror, na disciplina, no tormento mais intolerável e na antevisão da morte, por um estreitíssimo limiar de sobrevivência. Apenas mais uma noite, só mais uma hora, um minuto, um breve instante. É o que evocam os relatos memorialistas de Élie Wiesel ou de Primo Levi quando enfatizam dramaticamente a ausência de limites na mais brutal luta pela vida. Em Se isto é um homem, Levi recorda como logo pelo segundo dia em Auschwitz os homens do seu grupo se olhavam já como fantasmas: «não há espelhos para nos vermos mas o nosso aspecto está diante de nós, reflectido em cem rostos lívidos, em cem fantoches miseráveis e sórdidos.» Um pequeno mundo, o único mundo possível, onde em pouco tempo o combate pela sobrevivência transformará cada um no chacal do seu próximo.

            Já com as vítimas da Administração Geral dos Campos de Trabalho Correctivo, projectada logo na época do Terror Vermelho pelo poder bolchevique – em Gulag. Uma história, Anne Applebaum relembra que o primeiro estabelecimento foi aberto logo em 1918 –, não era necessariamente a origem étnica ou a condição social a determinar a pena e o encarceramento. Detidas e deslocadas pelos mais diversos motivos, eram genericamente classificadas como irrecuperáveis representantes do «inimigo de classe», sobreviventes incómodos de um tempo a ultrapassar, obstáculos vivos que apenas embaraçavam a caminhada triunfal do homem novo e deveriam ser banidos da sociedade. Por isso, a desumanização e a demonização do prisioneiro, sendo reais, foram em regra circunscritas ao seu lugar de alvo a ferir no combate por uma necessidade histórica que a ditadura do proletariado pretendia forçar. Nestas condições, o essencial do esforço carcerário era aplicado na erradicação dessas pessoas do convívio social normal, ou, em certos casos, na sua «reeducação» pela disciplina e pelo trabalho. Não na mecanização do extermínio, que foi quase sempre mais uma consequência do que um fim em si mesmo.

            (continua)

            Parte deste post adapta um fragmento de um artigo extenso a publicar na LER de Novembro.

              Democracia, História, Memória

              «Espalhafato tecnológico»

              Tecnologia

              «Portugal é o segundo país entre os estados europeus da OCDE mais bem classificados no que diz respeito à sofisticação e ao acesso online a serviços públicos», escreve o diário Público. À frente de nós fica apenas a Áustria e situamo-nos acima do Reino Unido, da Noruega e da Suécia, países que habitualmente encabeçam os rankings relacionados com as tecnologias da informação. Só que em 2008 apenas 18 por cento dos cidadãos portugueses usavam serviços públicos em linha, o que coloca o nosso país em 17.º lugar numa lista de 22 países. Qualquer pessoa que não se deixe impressionar pela política do «espalhafato tecnológico», feito em larga medida de aparências, percebe que a disponibilização dos meios não tem acompanhado o seu uso regular e eficiente. No meio universitário, por exemplo – que julgo conhecer razoavelmente –, na maioria das áreas o aproveitamento dos computadores raramente ultrapassa o processamento de texto, a utilização irregular do e-mail e uma navegação muitas vezes errática. Basta observar-se como a generalidade das máquinas conserva inalterável, anos a fio, a configuração com a qual foram originalmente instaladas, sem esforço algum de personalização e de desenvolvimento. Porque não parar então com o show-off centrando-nos na formação? É muito mais útil, embora se revele menos espectacular e proporcione menores margens de lucro para os sempre prestimosos fornecedores de máquinas e serviços.

                Atualidade, Cibercultura, Opinião

                1969, 26 de Outubro

                1969

                Há precisamente 40 anos era domingo. Nesse dia, agora já tão distante, aconteceram em Portugal as eleições legislativas de 1969. Apesar de não-democráticas, elas marcaram um importante ponto de viragem na contestação do Estado Novo e na preparação da queda definitiva do regime. Os redactores do blogue Caminhos da Memória – entre os quais me incluo – resolveram contar a forma como cada um deles viveu a data. Está tudo aqui, com muitos comentários e adendas à mistura.

                  História, Memória

                  Guerra dos mundos

                  Guerra dos mundos

                  Acabo de instalar o Windows 7 no portátil e no computador de secretária. A tarefa foi rápida, correu muito bem, e, para já, a impressão é de que a Microsoft produziu finalmente um sistema operativo ao mesmo tempo fiável, intuitivo e atraente. O que não significa perfeito. Aliás, trabalho há anos com diversos SO em simultâneo e não conheço um sem defeitos. Talvez por isto me pareçam absurdas as sucessivas guerras travadas entre a Apple e a Microsoft a respeito da perfeição imaculada dos seus produtos. Reconheço a transparência e a beleza do interface dos produtos da maçã (sou, aliás, feliz proprietário de um iPhone e de um iPod), mas aprecio também a versatilidade e o custo mais baixo das criações da empresa fundada por Mr. Gates. Que cada uma das marcas diversifique a oferta, baixe os preços e se torne cada vez mais próxima dos consumidores, parece-me do interesse de todos (e delas próprias também, naturalmente). Por isso considero um pouco idiotas e desnecessariamente agressivos vídeos como este da Apple ou este da Microsoft destinados a ridicularizar a concorrência ofendendo ao mesmo tempo os consumidores. Tal como me parece sem sentido o sorriso de cumplicidade que diante deles os facciosos emitem.

                    Atualidade, Cibercultura

                    Marroquinaria

                    Marrocos

                    O verniz democrático da monarquia marroquina cai com facilidade. O simulacro de abertura e de modernidade com o qual vai iludindo os seus interlocutores do norte não resistiu às caricaturas de Khalid Gueddar, que «ousou desenhar a família real marroquina» e que por esse motivo está a ser julgado. E o diário Le Monde, que as publicou em França, foi proibido de circular no reino. A caça e a punição de jornalistas independentes, essa vem de trás e continua. Mais uma «especificidade» a respeitar?

                      Atualidade, Democracia

                      Jovem Guarda

                      Gulag

                      A sobrevalorização da juventude, inaugurada com a emancipação dos baby boomers e a apoteose da cultura «sessentista», mas entretanto recuperada pelo capitalismo, sitia-nos dia e noite. É ela que tem levado os nossos principais partidos, quase todos eles – à excepção, talvez, do Bloco de Esquerda, que por ser um partido maioritariamente jovem não precisa para já de expedientes desta natureza – a atirar para a segunda fila visível dos comícios, das conferências de imprensa e das bancadas parlamentares com pessoas cuja qualificação fundamental, em alguns caos, é precisamente essa: ter menos de trinta anos, cinturinha estreita, um pouco de sex appeal e, claro, uma dose qb de fidelidade política. O patético e fugaz caso de Carolina Patrocínio, a «mandatária» do PS a quem em boa hora rapidamente tiraram o microfone, é exemplar dessa subversão do conceito de juventude, afirmado como um valor em si mesmo. Naturalmente, um partido ideologicamente arcaico e globalmente envelhecido como o PCP, precisa muito de recorrer a este género de expediente. E então lá puxa, para as mesas das conferências de imprensa, para as filas dianteiras dos comícios e desfiles, para um ou outro lugar visível da Assembleia da República, de alguns decorativos nascidos depois de 1980.

                      Claro que nem todos eles ficam bem na fotografia, pois assim que começam a falar – aqueles que o fazem – se percebe como a data do BI nada tem a ver com uma abertura ao tempo em que vivemos, com a ousadia, o humor descomplexado, a humanidade sem preconceitos ou a inteligência criadora que são características, presume-se, dos jovens que são jovens. A generalidade dos rostos visíveis e das bocas falantes da JCP mostram claramente esse lado, pois representam, quase invariavelmente, justamente aquilo que o seu partido tem de mais cavernoso e dogmático. Os exemplos são inúmeros, mas basta por agora olharmos para o último.

                      Falo, evidentemente, do caso da deputada Rita Rato, de 26 anos, membro da Direcção da Organização Regional de Lisboa do PCP e da Direcção Nacional da JCP, «licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais» e mestranda na mesma área (sic), a qual, confrontada com a pergunta jornalística sobre a existência do Gulag, afirmou: «não sou capaz de responder porque, em concreto, nunca estudei nem li nada sobre isso». Este «isso» trata-se de um pequeno detalhe: a morte de milhões de seres humanos – não apenas milhares, como refere um outro texto no qual também se comenta o caso – e a destruição física e moral, ao longo de décadas, de largos milhões de outros, numa escala numericamente superior à do Holocausto e que abrangeu desde simples cidadãos sem culpa formada a muitos militantes comunistas «culpados» apenas de, real ou imaginariamente, terem divergido de Lenine (sim, o Gulag foi inaugurado ainda em vida do chefe dos bolcheviques) e sobretudo de Estaline. Aquilo que impressiona não é a ignorância da Rita diante de um tema sobre o qual existem tantos livros e documentação disponível, uma vez que, provavelmente, ela nem será totalmente verdadeira, mostrando apenas falta de jeito na tentativa de fugir à questão. O que preocupa, e muito, é, para além da pequenez de formação cultural (e académica) que revela, o facto de alguém com as suas responsabilidades políticas e esta dose de ignorância (ou, pior, de má-fé) ser deputada num parlamento democrático e quadro de um partido que o integra. Mas se não arrepiar caminho terá o futuro assegurado dentro do seu círculo de giz.

                      Post Scriptum – No número de Novembro da revista mensal LER, à venda dentro de dias, publicarei um artigo extenso sobre a literatura do Gulag. Talvez possa interessar também a quem jamais ouviu falar do assunto de outra forma que não seja a da perspectiva cúmplice ou desculpabilizadora.

                        Atualidade, Memória, Opinião

                        Saramago e o talibã

                        Saramago

                        É verdade que Saramago fez afirmações descomedidas sobre o valor histórico e a medida ética da Bíblia. O excesso não se encontra, porém, nas marcas de iconoclastia que elas contêm, na crítica da violência inerente à matriz das religiões do livro que elas comportam, mas sim no modo simplista do qual o escritor se serviu, uma vez mais vertido naquele tom de arrogância e superioridade moral para o qual não há já paciência. Acontece porém que a onda de protestos que se lhe seguiu tem alguns contornos perigosos, e se pessoas como um tal Mário David, ao que consta deputado europeu do PSD, consideram que as palavras do autor de Caim não passam de «imbecilidades» e de «impropérios», capazes de justificarem a perda compulsiva de nacionalidade, as coisas atingem um grau de gravidade superior. Mostram que existem portugueses com responsabilidades políticas que têm cabeça de talibã ou talvez de familiar do Santo Ofício. E isto já preocupa um bocado.

                          Apontamentos, Atualidade

                          Fantasia bíblica

                          Bíblia ao pequeno almoço

                          Contou-me certa vez um antigo dirigente estudantil que na juventude tinha lido e sublinhado integralmente O Capital. Disse-lhe então uma coisa um bocado destemperada mas sincera: «Acho que merecia um prémio. Ao fim destes anos todos a viver como marxista e ex-marxista, e a conviver com marxistas e ex-marxistas, é a primeira pessoa que encontro que tenha lido O Capital de uma ponta à outra». Admito que também não o li na totalidade e costumo sempre sugerir a quem sei que jamais o lerá – mas precise de alguns rudimentos sobre os conceitos de mais-valia e de modo de produção capitalista – que ao menos se entretenha com o prefácio à Contribuição para a Crítica da Economia Política. Como é sabido, este apontava já para algumas das principais teses desenvolvidas anos depois no livro mais espesso do barbudo de Trier.

                          Lembrei-me disto quando soube hoje pelos jornais que os resultados de um inquérito feito a nível nacional revela que «apenas» 9,7% dos portugueses leram a Bíblia Sagrada. Por acaso sou um deles, embora o tenha feito numa idade em que apenas vi aquilo que queria ver: uma narrativa mágica sobre a eterna luta entre o Bem e o Mal que eu concebia à imagem e semelhança de um filme de Cecil B. DeMille ou de William Wyler. Mas pelo que conheço dos meus compatriotas e dos seus hábitos de leitura – a larga maioria nem o Código da Estrada de João Catatau terá lido com atenção de fio a pavio –, não me parece que tantos o tenham feito. Corro alguns riscos ao dizer isto, mas acredito que uma boa parte dos que afirmaram ter lido a Bíblia se devem referir a fragmentos do Novo Testamento escutados num ofício religioso ou àquele intocado volume negro de capa cartonada que têm lá em casa, dignamente perfilado com a Enciclopédia Alfa, o Livro de Pantagruel e os volumes encadernados da obra completa de Agatha Christie que escondem da pequenada a trilogia do Henry Miller. Ou será mesmo assim ou então a vida terá feito de mim um cínico e um incréu.

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                            O aquário

                            Waldsiedlung Wandlitz

                            Quando se observa a esta distância o mundo perdido do «socialismo real» e a forma como as suas elites dirigentes passaram de inflexíveis e autoritárias a autistas e paranóides – não se apercebendo, para o final, das rápidas mutações produzidas quando foi removido o aparelho protector oferecido pela União Soviética –, um dos exemplos que sobressai é o da estranha microcidade de Waldsiedlung Wandlitz. Situada a cerca de 30 quilómetros a norte da zona leste de Berlim, foi aí que, entre 1960 e 1989, fixaram residência oficial os membros do topo da classe dirigente da ex-República Democrática Alemã. Existem numerosas descrições do aspecto e da «vida» daquele bairro, o «Gueto dos Deuses» como lhe chamavam as pessoas comuns, completamente fechado por um forte cordão de segurança e habitado por homens idosos e as suas taciturnas esposas. Pessoas que se temiam e se vigiavam constantemente, que sabiam que tinham microfones da Stasi encaixados nas paredes e no soalho, que eram vizinhos quase sem falarem uns com os outros fora das funções oficiais, que gozavam de privilégios mas não conseguiam fruir da mais elementar liberdade pessoal.

                            Seguiam quotidianos rigorosamente idênticos, vestiam-se todos sensivelmente da mesma forma, circulavam no mesmo modelo da Volvo com motorista, guarda-costas e sinais intermitentes ligados, tinham casas beijes de dois pisos de concepção inalterável e mobiladas de forma previsível. Quando se encontravam dentro do bairro era necessariamente no único restaurante sempre com os mesmos pratos, no único cinema com uma única sessão diária, na única lavandaria, no único infantário, na única clínica veterinária, nas poucas lojas que vendiam produtos ocidentais aos quais mais ninguém tinha acesso. Vivendo, como conta em O Mundo Perdido do Comunismo, de Peter Molloy, a actriz e encenadora Vera Oelschlegel, que ali morou por ter sido casada com um dos moradores oficiais, num universo sempre silencioso e sem alegria, segundo o «estilo de vida da classe média baixa muito bem comportada, com um naperon em cima do televisor Vertico e que regava as plantas envasadas no jardim». E o pior é que esse era o único mundo conheciam, uma vez que há muitos anos, alguns deles havia décadas, tinham deixado de ter empregos normais, de frequentar livremente as ruas e as praças que observavam a partir das janelas fechadas dos carros oficiais, de entrar sem comitiva nas casas simples dos concidadãos que governavam. Decidiam sobre os destinos de milhões de pessoas a partir de um aquário. Como poderiam assim as coisas ter deixado de acontecer como aconteceram?

                              História, Memória, Olhares