Bibliocandonga

Los libros

«Doce soles», dijo. /«Diez». / «No sea codicioso. Es nuevo. Me há legado hoy». / «Yo sé que es nuevo», dije. «Lo escribí yo».

Por escrever isto, alguns amigos desejarão comer-me vivo, assado no forno, depois de convenientemente estripado, cortado aos pedaços e deixado a marinar em vinho, vinagre e louro. No mínimo, quererão denunciar-me à polícia. Mas não posso deixar de simpatizar com uma prática relatada sábado passado numa página do El País. Em «La vida entre los piratas», o escritor peruano Daniel Alarcón fala-nos de uma realidade do seu país que pode vir a ecoar pelo planeta: no Perú, o mundo dos livros copiados movimenta já mais dinheiro do que o das obras legalmente produzidas. Mas isso não parece ser necessariamente um mal: há gosto pela leitura mas pouco dinheiro para comprar livros e os leitores recorrem à contrafacção – não falamos de fotocópias, mas sim de cópias quase perfeitas dos originais –, existindo já autores que não se importam de que tal aconteça. Uma vez que ganham pouco ou nada com o seu trabalho, preferem acima de tudo que os leiam. Sei que esta prática da bibliocandonga terá alguns inconvenientes, mas desconfio que, a generalizar-se, poderá produzir algumas situações interessantes. A baixa dos preços de capa, por exemplo, com menores custos com o trabalho das tipografias, ou um maior respeito das cadeias de livrarias e das empresas de distribuição por autores e pequenos e médios editores, ou o natural alargamento do número de pessoas que compram livros. Um cenário de utopia erguido sobre um campo de batalha, com sirenes, fugas pelos telhados e ruas esconsas pelo meio. Alguém quererá experimentar?

    Apontamentos, Devaneios

    Ensaio, solidão e audácia (na pista de Montaigne)

    Typewriter

    O nome de Michel de Montaigne permanece ligado à arte do ensaio por ter dado a esta forma de escrita as características essenciais que, quatrocentos e tantos anos depois, ela conserva ainda. Se o francês do Périgord tem sobrevivido como escritor «para todas as épocas», tal não se deve necessariamente às suas opiniões, muitas das quais hoje já ninguém levará a sério, mas à forma intemporal como se relaciona com o leitor. Em A Arte do Ensaio Fernando Savater define com clareza o género que Montaigne inventou e «levou ao seu mais alto grau de perfeição»: experimentações literárias, autobiográficas, filosóficas e eruditas que jamais pretendem esgotar ou delimitar um campo de estudos. Visam antes o inverso, que é corromper esse campo e convertê-lo num lugar de passagem, rumo a outros que, de momento, permanecem ainda longínquos. Nesta direcção, o ensaísta é necessariamente um céptico e um «perito em divagações», uma vez que o seu esforço exclui a certeza e a convicção de se encontrar na posse da verdade.

    Esta atitude é comum ao conjunto de autores e de textos fundamentais do pensamento do século XX propostos neste texto sobre «a arte de ensaiar» do filósofo e escritor de San Sebastián, servindo ao mesmo tempo como um convite à descoberta ou ao reencontro com obras-chave, todas elas intensamente inquietantes, e sob muitos aspectos arrojadas e incompreendidas no momento em que foram escritas. Sartre, Camus, Bertrand Russell, Foucault, Freud, Adorno, Ortega y Gasset, Lévi-Stauss, Miguel de Unamuno, Marshall McLuhan, Octavio Paz, Elias Canetti, María Zambrano ou Hannah Arendt são alguns dos 25 pensadores seleccionados por Savater, todos eles capazes de dar esse passo na direcção do que não sabiam, nem podiam ainda saber, mas em relação ao qual possuíam uma forte capacidade de questionamento e um desejo de superação.

    Aliás, o acento colocado em cada um dos capítulos, dedicados sempre a um autor e a uma obra, não é o da procura da sistematização, ou da «síntese» catequética da mesma, mas antes o esforço para mostrar como a sua escrita resultou sempre de uma pergunta incómoda para a qual não existia resposta e, por isso mesmo, derivou de um acto solitário. Ao mesmo tempo, a sua escrita emergiu como prova de um pioneirismo criador, aberto à novidade. Na realidade, e de acordo com Lukács, o autor da Teoria do Romance aqui evocado, se o ensaísta carece dos instrumentos científicos capazes de o ajudarem a resolver os problemas da sua época, «tem a audácia suficiente para examiná-los». Foi aquilo que fizeram, para pegar apenas em dois dos casos escolhidos, autores como Albert Camus em O Homem Revoltado, uma «meditação histórica de um inconformista perplexo», ou Michel Foucault em As Palavras e as Coisas, um texto inovador não tanto pelo que trouxe de objectivo mas «por ter assinalado que havia novas áreas a descobrir». A Arte do Ensaio pode servir, em simultâneo, como elogio da ousadia e um notável mapa do tesouro.

    Publicado na revista LER de Fevereiro

    Fernando Savater, A Arte do Ensaio – Ensaios Sobre a Cultura Universal. Trad. de Francisco Telhado e Pedro Vidal. Temas e Debates / Círculo de Leitores, 152 págs.

      Olhares

      Almas gémeas (ou talvez não)

      Hannah e Martin

      Partindo da correspondência, em larga medida inédita, trocada entre Hannah Arendt e Martin Heidegger, Elzbieta Ettiger, professora de Humanidades no MIT, narra com detalhes o atormentado caso de amor e de proximidade intelectual que, em fases distintas, uniu dois dos mais destacados pensadores alemães do século passado. O que lhe interessa não são, naturalmente, os detalhes, em larga medida ausentes deste livro, da relação conturbada mas persistente entre a intelectual judia que denunciou o totalitarismo e o autor de Ser e Tempo que foi um apoiante confesso e contumaz do Partido Nacional-Socialista. Aquilo a que aqui vale a pena atender é à revelação das alegrias e das mazelas de uma ligação conturbada, desafiando a imagem padronizada de um Martin observado como pensador e académico austero e subtil, e de uma Hannah vista como intelectual independente e absolutamente segura de si. Ettinger sugere uma releitura e uma relativização de marcas que num certo momento julgámos poder estabelecer sobre a obra e o carácter de cada um deles.

      Hannah Arendt e Martin Heidegger. Trad. de Isabel Castro Silva. Relógio d’Água, 152 págs.

        Apontamentos, Olhares

        Anatomia do Dia Mais Longo

        Dia-D

        Depois dos aclamados Estalinegrado (1998) e A Queda de Berlim (2002), neste Dia D – A Batalha da Normandia, lançado já em 2009, Antony Beevor ocupa-se da frente ocidental da Segunda Guerra Mundial. Não se refere, porém, apenas ao desembarque aliado previsto pela Operação Overlord, pois acompanha também o rápido avanço das forças aliadas pelo interior da Normandia, as vicissitudes experimentadas na retaguarda pelo regime nazi – que passaram pelo atentado contra Hitler e pelas pesadas consequências que este teve na capacidade de resposta ao avanço aliado –, e depois o progresso rápido, pontuado por duros combates e um volume impressionante de vítimas, até Paris. Beevor retoma aqui, no seu estilo próprio, sempre atento à intervenção dinâmica do episódico e do comportamento individual no evoluir dos acontecimentos, a tradição da historiografia militar britânica, quase perdida no continente durante boa parte da segunda metade do século XX, que se apoia numa narrativa capaz de combinar o depoimento dos sobreviventes – sempre emotivo ou nostálgico – com a sequência dos factos e das decisões comprováveis, obtidos através de um trabalho minucioso de pesquisa dos arquivos. Neste caso, o Eisenhower Center de Nova Orleães, o Imperial War Museum de Londres, e ainda os centros de documentação de Leeds e de Caen, na própria Normandia, asseguraram material inédito de grande interesse documental.

        Raramente a descrição surge neutra, vendo-se o leitor permanentemente impelido para situações nas quais o humor, a ironia, a raiva ou a cobardia, combinados de modo cinematográfico, mantêm a sua carga de autenticidade graças ao relato testemunhal. Nesta direcção, surge como particularmente notável o acesso a um retrato vívido de uma «barbarização da guerra» – que inclui uma certa visualização do sofrimento e da morte dos militares de ambos os lados e das populações apanhadas entre dois fogos – mostrando de que modo, ao contrário daquilo que outras obras sobre a Segunda Grande Guerra fizeram crer, os horrores vividos em território francês não ficaram muito atrás daqueles que tiveram lugar na Frente Leste.

        Particularmente interessante também, sendo este de certa forma um factor de inovação trazido pelo historiador, é o papel atribuído à personalidade e às pequenas peculiaridades dos principais chefes militares – de Eisenhower e Patton a Montgomery, de Rommel a Von Rundstedt – e aos permanentes conflitos estratégicos e políticos que protagonizaram, como parte integrante na definição do caminho que as operações militares vieram a tomar e das vicissitudes pelas quais passaram. Na última parte do livro, é a libertação da capital que se configura no horizonte dos militares em movimento, e agora do leitor que o acompanha, emergindo num relato cuja intensidade, aqui associada a uma série de pequenos episódios invocados a partir da experiência individual, amplia as conhecidas imagens da euforia colectiva, da vingança e da apoteose vividas no dia da entrada triunfal em Paris.

        Publicado na revista LER de Fevereiro

        Antony Beevor, Dia D – A Batalha da Normandia. Trad. de Fernanda Oliveira. Bertrand Editora, 688 págs.

          História

          O Dr. No lá do sítio

          Paisley

          O reverendo Ian Paisley, de 83 anos, anunciou ontem que vai deixar o lugar de deputado britânico, ocupado ao longo de quatro décadas, após as legislativas de Maio. Foi membro da Força de Voluntários do Ulster, o mais antigo grupo paramilitar protestante da Irlanda do Norte. Fundou também a Igreja Presbiteriana Livre do Ulster, em 1951, tendo criado o Partido Unionista Democrático duas décadas depois. Termina assim, ao que parece, a carreira política de um homem que, pelas suas posições irremissivelmente violentas e intransigentes a favor do orangismo mais extremo ajudou a inscrever o nacionalismo irlandês «católico» na consciência e na agenda da esquerda ocidental. Pelo menos comigo resultou, lá pelos idos de setenta.

            Atualidade, História, Memória

            Preciso de um tempo para pensar

            Kapuscinski

            Sobre o trabalho do jornalista polaco Ryszard Kapuscinski escrevi em tempos isto. Foram-se depois adensado rumores sobre a sua actividade como agente dos serviços secretos comunistas e, nessa qualidade, como denunciante de colegas de trabalho e pessoa com privilégios que os outros não tinham. Entretanto acaba de ser editada a biografia escrita por Artur Domoslawski, seu compatriota, também ele jornalista, que o conheceu de muito perto e é agora acusado de ser excessivamente benévolo para com o amigo Kapuscinski. Trata-se de um daqueles casos, admito, em que não sou capaz de fazer um juízo moral assim da noite para o dia. É como nos amores indecisos: preciso de um tempo para pensar.

              Apontamentos, Olhares

              Tu quoque Chatterton fili mi!

              Chatterton

              Suicidado aos 18 anos, em 1770, na cama da sua mansarda em Holborn, um dos mais mal-afamados bairros da Londres da época, o poeta Thomas Chatterton transformou-se rapidamente no arquétipo do herói romântico. Milhares de anémicos jovens viram-se ao espelho, por mais de um século, como Chattertons em potência, tão geniais quanto incompreendidos. Pois agora Jürgen Heizmann, um académico alemão que ensina na Universidade de Montréal, vem confirmar aquilo que a verdade alternativa desde há algum tempo vinha murmurando: que os poemas do jovem Thomas foram sistematicamente decalcados de manuscritos antigos (um falsário pois) e que a morte prematura não se deveu a suicídio, mas sim a um tratamento mal aplicado contra uma doença venérea. A ser verdade, não passa de mais um caso em que a doce fantasia excedeu largamente a crueza dos factos. Fiquemo-nos pois pela lenda e atiremos a realidade pela janela.

                Apontamentos, História

                Um conceito pesado

                Dominate

                Como muitos outros intelectuais ocidentais, Slavoj Zizek não gosta que se fale de islamo-fascismo. Para explicar a recusa invoca no entanto, em entrevista ao L’Humanité (republicada na edição portuguesa do Courrier International), um argumento algo falacioso. Declara uma verdade («ainda há trinta anos havia uma esquerda laica muito forte nos países árabes») e associa-lhe uma evidência («o Ocidente tomou uma decisão totalmente catastrófica ao apontar a esquerda laica, pelas suas ligações à União Soviética, como inimigo principal, e ao apoiar, por razões estratégicas, os fundamentalistas»). Mas infere daqui que, pela mesma razão, este Ocidente perdeu a legitimidade para apontar o dedo ao modelo agressivo e totalitário com um peso crescente no universo do Islão contemporâneo.

                O argumento terá sido simplificado por Zizek, dado aparecer numa entrevista curta onde é impossível detalhar razões. Mas infelizmente ele tem sido adiantado – justamente na sua versão simplista – por quem se preocupa em desculpabilizar os excessos das vertentes agressivas e intolerantes do Islão como justificáveis em função dos erros dos governos e da comunicação social do mesmo Ocidente. No limite, alguns sectores, de facto pouco ou nada preocupados com um convívio democrático e transcultural paritário, aceitam até esses excessos como parte de uma vertente da luta anticapitalista, anti-imperialista e anti-sionista que, na sua leitura míope e elementar, o radicalismo islâmico protagonizará de maneira legítima. Esquecendo, desta forma, a longa tradição histórica de um Islão tolerante para com o laicismo, incluindo o de pendor socialista, que tem sido particularmente reprimido por esse lado exaltado, fanático e totalitário de certas organizações e de determinados regimes auto-intitulados «islâmicos». Ou, se se quiser, «islâmicos de certa maneira».

                Sem papas na língua comme d’habitude, Christopher Hitchens – que ainda no passado 18 de Fevereiro esteve por cá, na Casa Fernando Pessoa, a defender «a urgência do ateísmo» – estabelece, em artigo publicado em 2007 na revista Slate, um conjunto de «similitudes óbvias» entre o fascismo histórico e o islamo-fascismo, conceito que aceita sem grandes objecções:

                «Both movements are based on a cult of murderous violence that exalts death and destruction and despises the life of the mind. (‘Death to the intellect! Long live death!’ as Gen. Francisco Franco’s sidekick Gonzalo Queipo de Llano so pithily phrased it.) Both are hostile to modernity (except when it comes to the pursuit of weapons), and both are bitterly nostalgic for past empires and lost glories. Both are obsessed with real and imagined ‘humiliations’ and thirsty for revenge. Both are chronically infected with the toxin of anti-Jewish paranoia (interestingly, also, with its milder cousin, anti-Freemason paranoia). Both are inclined to leader worship and to the exclusive stress on the power of one great book. Both have a strong commitment to sexual repression – especially to the repression of any sexual ‘deviance’ – and to its counterparts the subordination of the female and contempt for the feminine. Both despise art and literature as symptoms of degeneracy and decadence; both burn books and destroy museums and treasures.»

                É verdade que o uso da expressão islamo-fascismo pode ser histórica e conceptualmente discutível (como se sabe, o próprio uso alargado do conceito de fascismo é-o também). E é com toda a certeza injusto para com toda a tradição do Islão e para com muitos muçulmanos que são até vítimas dos seus ditames e das suas práticas. Mas corresponde a uma experiência com a qual todo o mundo – a começar pelo islâmico – tem de se confrontar. Aceitar a realidade política e cultural do islamo-fascismo constitui uma precaução que em nada deve afectar o relacionamento pacífico com o mundo islâmico. Uma conexão que, todavia, não pode ser mantida a qualquer preço.

                Adenda – Um erro de Hitchens no qual não reparei ao fazer a transcrição em copy-paste: a frase “Viva la Muerte!” foi bradada, em 12 de Outubro de 1936, durante um confronto público com Miguel de Unamuno, por José Millán-Astray – aliás, hoje recordado quase exclusivamente por estas palavras assassinas –, e não por Queipo de Llano.

                  Atualidade, Olhares, Opinião

                  O direito a dissidir

                  Dissidência

                  Pode parecer uma bizantinice, mas vale a pena encarar a questão levantada por Pedro Correia – de quem cordialmente ‘dissido’ neste particular (e por vezes noutros) – a propósito da palavra ‘dissidente’, quando considera que o termo não deve ser utilizado para referir opositores ou contestatários isolados dos regimes de Pequim ou de Havana. Para sustentar a sua opinião, refere que ele foi cunhado na antiga União Soviética «para designar todos quantos se afastavam da ‘normalidade’ política e social, insinuando uma espécie de doença psíquica». Se o regime dizia representar todo o povo, quem não se sentisse representado por ela só poderia então ser ‘dissidente’. Ou seja, anormal, louco e criminoso.

                  É parcialmente verdadeiro este referencial histórico, mas não o é inteiramente. Na verdade, a palavra surgiu de início, no ocidente, para se referir aos intelectuais soviéticos que se opunham, quase sempre isoladamente e de forma ilegal, a um regime totalitário que remetia a diferença, a divergência em relação ao pensamento único e a um sistema que se considerava a caminho da perfeição, para a esfera da marginalidade e da doença. Como era possível alguém em seu perfeito juízo, e para mais um cidadão supostamente informado, membro da intelligentsia, divergir do cientificamente determinado e comprovado, do tão indiscutivelmente justo que nem precisava ser sufragado? Foi o eco do combate desses homens e dessas mulheres – nem sempre com idêntico sentido, uma vez que agiam isoladamente ou em pequenos grupos e não constituíam propriamente uma associação com objectivos programáticos – que os revelou como… dissidentes. E para cunhar o qualificativo não foi preciso ir longe: bastou recorrer à velha palavra dissidentia, que em latim significa oposição, antipatia, desarmonia. E hoje lá vem no dicionário dissidência como o «acto de separar-se (de uma parcela de um grupo, agremiação, partido, etc.) em virtude de divergência de opiniões». Em qualquer tempo ou lugar.

                  Sim, Hu Jia ou Wei Jingsheng, como Guillermo Fariñas ou Yoani Sánchez, podem ser considerados dissidentes. E até o devem ser, uma vez que os antecedentes históricos do qualificativo apenas enobrecem o seu combate pelo direito a pensarem por si e a comunicarem aos outros aquilo que pensam. O direito a dissidir, o imperativo moral de viver e actuar em dissídio. Ainda que se enganem mil vezes.

                    Apontamentos, Democracia

                    Voo picado

                    Aviador

                    Um artigo «de opinião» saído hoje no Público, assinado pelo tenente-coronel piloto aviador Brandão Ferreira («A democracia e o casamento entre géneros idênticos»), constitui um dos exercícios mais retrógrados, intolerantes, violentos e sobretudo demagógicos que tenho lido nos últimos tempos. Não se trata de um texto que exprima uma posição da qual discordemos mas que possamos respeitar: este arrazoado execrável e rancoroso ultrapassa em muito o nível do ensaio argumentativo para se transformar num exercício proto-fascista de agressão à própria democracia. Pode ser lido na íntegra num post publicado no Jugular.

                    Publicado originalmente no Arrastão

                      Atualidade, Democracia, Olhares

                      O comunista tranquilo

                      Zhao

                      Acaba de chegar às livrarias a tradução portuguesa de Prisioneiro de Estado (ed. Casa das Letras), o diário secreto de Zhao Ziyang, antigo primeiro-ministro chinês e secretário-geral do PCC entre 1987 e 1989, forçado a retirar-se e viver em prisão domiciliária os últimos anos da sua vida por ter demonstrado uma atitude de compreensão perante as reivindicações estudantis e os protestos de Tienanmen. «Um olhar íntimo sobre um dos regimes mais compactos do mundo», escreve-se na badana. Resultado de 30 horas de gravação clandestina – guardadas em cassetes de baixa qualidade escondidas entre os brinquedos dos netos – mostram a permanente luta de facções, de interesses e de vaidades que se esconde por detrás do aparente monolitismo do regime. Roderick MacFarquhar, o prefaciador, recorda que na China de hoje, Zhao, morto em 2005, «é uma pessoa que não existe», mas quando um dia os chineses puderem ler estas páginas e perceber o seu lugar na história do país conhecerão o perfil tolerante e o esforço renovador deste comunista tranquilo que gostava de rir, de comer e de ouvir os outros.

                        História

                        A Pordata

                        Bastante útil, e também bastante impressionante, a Pordata, autodefinida como «um projecto destinado a todos, pensado para um vasto número de utentes que comungam do interesse em conhecer, com confiança e rigor, mais sobre Portugal». Um serviço público excepcional, a visitar regularmente por quem trabalha ou escreve sobre os últimos cinquenta anos da nossa vida colectiva.

                          Etc., Novidades

                          Protesto dirigido à embaixada de Cuba

                          À embaixada de Cuba em Portugal:

                          “Nós, cidadãos de um país que conquistou a sua liberdade há 36 anos, solidários com a resistência a todas as formas de imperialismo, críticos do bloqueio injusto e injustificável a Cuba por parte dos Estados Unidos da América, vimos através deste abaixo-assinado protestar contra morte do activista Orlando Zapata Tamayo depois de uma pena de prisão absurda e de uma greve de fome pelos seus direitos civis. E, através deste protesto, manifestar a nossa solidariedade empenhada para com todos os presos políticos cubanos e para com todos aqueles que em Cuba lutam por valores que, para quem, como os portugueses, viveu meio século de ditadura, são bens preciosos: a democracia, a liberdade e o direito a autodeterminação dos povos e dos indivíduos. Não há verdadeira independência de um povo sem democracia. Não há revolução que valha a pena sem liberdade.”

                          Pode assinar aqui. Divulgue através das redes sociais e do seu blogue.

                            Atualidade, Democracia

                            Toda a dissidência será castigada

                            Conta-me coisas de Cuba

                            O historiador e ensaísta cubano Rafael Rojas publicou no México, onde vive e trabalha por não poder retornar à sua ilha, Tumbas Sin Sosiego, um livro sobre a experiência da relação revolução-dissidência entre os intelectuais cubanos do exílio. Aí escreve a dada altura que a religiosidade política da ideia cubana de Revolução «não radica tanto na escatologia do marxismo-leninismo quanto na mitologia do nacionalismo revolucionário», o qual possui, como se sabe, um grande lastro histórico em toda a América Latina. É em parte por esta razão que todo o dissidente é equiparado a um traidor, traindo não propriamente a classe operária, que aliás mal existe em Cuba, mas sim «a Pátria». É por isso, inevitavelmente, um «mercenário» a soldo do inimigo externo, cujo «crime» – divergir e expressar a sua divergência, pedir uma ordem política que aceite a expressão de alternativas – é da ordem do delito comum, um a vez que atenta contra a unidade que presumivelmente garante a independência face ao inimigo imperialista.

                            Este é um dos grandes paradoxos do regime cubano: sustenta, desde 1959, um combate sem tréguas contra os Estados Unidos da América – contra aquilo que eles representavam nos primeiros tempos da Revolução, e depois contra o injusto e desnecessário bloqueio que têm mantido – mas precisa desse combate para justificar a repressão contra os «desordeiros sabotadores». Assim se compreende que as autoridades castristas tenham agora deixado morrer Orlando Zapata Tamayo, um canalizador de origem humilde, membro da organização de defesa dos direitos civis Directório Democrático, preso em 2003 quando foi apanhado numa vaga repressiva contra a oposição em que dezenas de pessoas foram acusadas de «conspirar com os Estados Unidos para derrubar o regime», sendo então quase todas condenadas a penas pesadíssimas, que chegaram aos 28 anos de prisão. A sua morte é «lamentável», como o próprio Raúl Castro acaba de reconhecer para estrangeiro ver, mas para a clique gerontocrática que governa a ilha ela é compreensível e, de certa forma, necessária. No final do excelente artigo disponível online («2009: El año en que se desvaneció el raulismo»), é ainda Rafael Rojas quem recorda:

                            «Esses anciãos sempre viveram em guerra, real ou imaginária, e as suas mentes acomodaram-se à lógica do confronto. Como guerreiros que são, compreenderam que quaisquer reformas, ainda que limitadas e controláveis, serão a porta de entrada para uma mudança maior que não querem viver. Qualquer decisão que tomem em política interna ou externa, nos próximos anos, reger-se-á por esse cálculo biológico: o tempo que lhes resta de vida deve ser invertido na perpetuação do sistema político, não na sua transformação, problema que diz respeito apenas aos jovens. É a isso que chamam “vitória”: morrer sem mudar.»

                            O mais difícil de entender é a existência, esparsa mas visível, fora de Cuba, de alguns rebentos serôdios seduzidos por uma Sierra Maestra de fantasia. Que medem a sua têmpera revolucionária em função da fidelidade a um modelo histórico que permanece «firme», inalterado, e que não foi democraticamente referendado em mais de meio século de regime. Que bradam sem hesitações «Patria o Muerte. Venceremos!». Para defenderem a sua quimérica e envelhecida Revolución, aceitam, justificam e fazem eco de todas as afirmações do governo de Havana contra os supostos traidores. Cuja prova de traição é facílima de identificar: não acreditam na perfectibilidade do regime, consideram a hipótese de o submeter à lógica «burguesa» e «reaccionária» do voto, e, calcule-se a suprema insolência, esforçam-se, com risco da sua liberdade, do seu emprego e até da própria vida, por declará-lo publicamente.

                            Três posts sobre o tema que publiquei num passado mais ou menos recente: A imensa tristeza (já de 2003), Do Caddilac ao Trabant e Relógios cubanos – 50 anos depois.

                              Atualidade, Democracia, História, Memória

                              Pró-diálogo

                              Outro Islão

                              Saiu este mês e ainda pode ser encontrado em alguns quiosques um número especial da revista Philosophie Magazine que tem o Corão como tema unificador de um leque alargado de documentos, citações, entrevistas e artigos. O ponto de partida é o único que possibilita uma leitura aberta e produtiva: considera-se que não existe uma leitura exclusiva do livro sagrado, reconhece-se a ambiguidade de muitos dos seus passos e aceita-se a possibilidade de uma crítica laica do seu conteúdo. Justamente os três aspectos que o islamismo radical rejeita em absoluto. Discutem-se assim, de uma forma aberta e com depoimentos contraditórios, temas como a liberdade, a sharia, o lugar das mulheres, a jihad, o papel da razão, e apresentam-se testemunhos que nos permitem humanizar e diversificar uma vivência religiosa por muitos associada a barbudos hirsutos com os olhos injectados de ódio anti-ocidental e o polegar no detonador. Um bom contributo para sobrepor riqueza analítica e compreensão aos juízos primários que, pró ou contra, têm naturalizado, e por vezes legitimado, a dimensão violenta das controvérsias políticas e religiosas envolvendo o Islão.

                                Atualidade, Olhares

                                O nosso mahatma

                                Tenho, como o terá qualquer pessoa que não considere os Médicos Sem Fronteiras e a AMI organizações não-governamentais ao serviço dos bárbaros do ocidente, um enorme apreço pela actividade de Fernando Nobre no campo da medicina humanitária. Pessoas de diferentes quadrantes que o conhecem garantem-me também tratar-se de uma pessoa afável, simpática, honesta e trabalhadora. Não me parece, porém, que só por si tais habilitações o qualifiquem especialmente para poder tornar-se em 2011 o próximo PR. A sua experiência política é, no mínimo, sinuosa e ininteligível, já que em 2002, com Durão Barroso no Governo, participou na convenção do PSD, em 2006 fez parte da comissão política da candidatura de Mário Soares, nas últimas eleições para o Parlamento Europeu foi o mandatário nacional do Bloco de Esquerda, e meses depois, nas autárquicas, integrou a Comissão de Honra de António Capucho, candidato do PSD à Câmara de Cascais. Além disso, declarar candidatar-se por um «imperativo moral e de consciência para Portugal», falando em abstracto de «valores» que é necessário retomar, é afirmação oca, vagamente «à la PRD» (para quem se recorde ainda do falecido), que nada declara para além da presunção de um papel moralizador e messiânico, e que nada significa em termos de qualificação para um cargo que supõe uma relação de confiança com parte significativa dos cidadãos, uma linha de intervenção previsível, experiência política e um estilo afirmativo e mobilizador. Existir, aparentemente, uma fracção da esquerda que se deixa entusiasmar por esta possibilidade de levar ao poder «a bondade em pessoa» e de assim derrotar Cavaco é, por tudo isto, uma situação que se afigura de recorte esotérico. É preciso não se gostar mesmo nada de Manuel Alegre. Ou ter-se um sentido táctico que toca o absurdo. Ou ainda experimentar uma certa nostalgia pela figura amável de Gandhi, o mahatma, a «grande alma». Só que a missão aqui é outra.

                                | Publicado também no Arrastão

                                  Atualidade, Opinião