Se há ligação a este blogue da qual não gosto mesmo é aquela feita a partir de outros blogues apenas acessíveis, através de password, a um círculo limitado de pessoas. Sinto-me um tanto do lado oposto ao da câmara do voyeur. Como se estivesse a ser espiado a partir de uma janela com o estore semi-corrido. Tem acontecido.
Princípio da realidade
Pensei ter entrado na quinta dimensão. Li o título da nota noticiosa sobre o perdão concedido a Jesse James e por momentos julguei tratar-se da revisão do rico registo criminal do bem sucedido (com o gatilho) bandido do Missouri, abatido à má-fila por um traidor em Abril de 1882. Afinal tratava-se apenas do perdão de Sandra Bullock ao trastalhão do marido, homónimo do fora-da-lei, que se tem andado a divertir à grande, benza-o Deus, com uma tal de Michelle «Bombshell» McGee. Os mergulhos no passado têm-me distraído um pedaço das coisas importantes.
Vozes da Revolução
Depois do cantautor Pablo Milanés é agora a vez de Silvio Rodriguez. Não se passa mesmo nada em Cuba para além dos murmúrios de uns quantos «mercenários do imperialismo», como se esforçam por fazer-nos acreditar os patéticos publicistas da Revolución traída e da ditadura?
Nota posterior importante – Como fui uma das pessoas enganadas pela informação que me chegara acerca da posição de Silvio Rodriguez, não posso deixar de apontar agora para o post «Diálogos Cubanos», no qual Joana Lopes oferece alguns links importantes para um mais completo esclarecimento do caso.
22,9 por cento
Um inquérito feito junto de 3849 cidadãos e realizado pela Faculdade de Ciências Médicas da UNL revela que 22,9 por cento dos portugueses manifesta sintomas que os situam na categoria dos mentalmente perturbados. O número aproxima-se só dos 26,3 por cento que ocorrem nos Estados Unidos. A percentagem de casos está, aliás, muito longe da verificada em países maioritariamente católicos do Sul da Europa com os quais Portugal é frequentes vezes comparado em termos culturais – a Espanha tem só 9,2 por cento de pessoas com problemas e a Itália apenas 8,2 – e bem distante dos dois países com prevalências maiores, como a França (18,4 por cento) e a Holanda (14,8). Segundo o Público online, no topo dos problemas estão a ansiedade (16,5 por cento), as situações depressivas (7,9), o controlo dos impulsos (3,5) e perturbações relacionadas com o álcool (1,6). Além disso, os mais afectados são as mulheres, os jovens dos 18 aos 24 anos, as pessoas mais sós (separados, viúvos e divorciados) e aquelas com níveis baixo e médio de literacia. 33,6 por cento não recebe qualquer tratamento, mesmo em situações julgadas particularmente graves.
Não vamos agora assobiar para o lado, considerando que estes académicos são uns exagerados, ou dar de barato que são só as empresas farmacêuticas a tentarem ampliar o mercado. Nem declarar, sem provas por enquanto, que a culpa é «do Sócrates» ou «do Cavaco». Mas temos em mãos um problema em relação ao qual é necessário tomar algumas medidas e fazer alguma pedagogia, já que épocas de crise social e de empobrecimento como aquela que vivemos tenderão a agravar os quadros clínicos. Um problema tão real, tão real, que foi possível chegar-se a este ponto – mais de um quinto dos portugueses, pois, com claros problemas do foro psíquico – sem que aparentemente alguém se tivesse apercebido da situação. Quer isto dizer que existem fortes probabilidades de encontrarmos nos órgãos de decisão pessoas diminuídas pela doença mental, dada a inexistência de exames de robustez psíquica para o exercício dos cargos (e feitos por quem, já agora?). Além de que já descartámos as velhas teorias da antipsiquiatria, que sempre nos permitiriam duvidar da capacidade de quem quer que fosse para fazer diagnósticos absolutos e chegar a números tão peremptórios. Provavelmente vai ficar tudo mais ou menos na mesma, pois parece que andamos assim há bastante tempo e o país ainda não foi abaixo. No fundo, quase toda a gente acha o tema um bocado embaraçoso e prefere passar-lhe ao lado. Mas a partir de agora iremos duvidar sempre da razoabilidade do cidadão do lado. Como ele da nossa. Vai ser esquisito.
O passado existiu?
No início do ensaio «Um dois, esquerda ou direita – o meu país», de 1940, integrado na antologia Livros & Cigarros agora editada pela Antígona, George Orwell escreveu o seguinte:
«Ao contrário do que muita gente julga, o passado não era mais fértil em acontecimentos do que o presente. Se assim parece, é porque, ao recordarmos os tempos idos, amalgamamos coisas que sucederam com vários anos de intervalo, e porque são bem escassas as memórias que nos chegam genuinamente virgens. É em grande medida devido aos livros, filmes e reminiscências vindas a lume entretanto que prevalece agora a ideia de que a guerra de 1914-18 possuiu um carácter tremendo, épico, que falta à guerra actual.»
De facto, a memória que reconhecemos como construída é frequentes vezes mais forte, e aparentemente mais sólida, do que os vestígios materiais que nos chegam do passado. Aquilo que me atrai é ver como essa memória construída ganha força, se autonomiza, e produz em nós certezas e percepções de experiências que jamais vivemos. Para o historiador profissional essa é uma dificuldade: a imaginação tolda a consciência e inventa ilusões, obrigando a um esforço suplementar, muitas vezes inglório, de busca da objectividade possível. Já para o cidadão comum essa dificuldade deixa de o ser, tornando-se até um factor adicional de enriquecimento do imaginário. O ideal, no limite, será podermos cruzar as duas perspectivas e perceber que a História não é apenas «o que foi» mas de igual forma aquilo que outros nos disseram que foi e nós próprios fomos construindo e interiorizando, sujeitos a múltiplas influências e leituras, como representação.
«Mas caso tenhamos vivido durante essa guerra e sejamos capazes de separar as nossas memórias genuínas dos acréscimos posteriores, verificamos que não eram habitualmente os acontecimentos grandiosos que nos faziam vibrar. Não creio que a Batalha do Marne, por exemplo, se tenha revestido, para o público em geral, da natureza melodramática que mais tarde lhe foi conferida. Nem sequer me recordo de ouvir a expressão ‘Batalha do Marne’ até se terem passado vários anos.»
O trabalho de construção ficcionada do passado produz também esse efeito. Quanto mais nos distanciamos temporalmente dos acontecimentos, mais deles emergem os grandes momentos, os grandes movimentos, os campos magnéticos. Mas quanto mais os estudamos, quanto melhor lhes observamos os detalhes, os ampliamos, mais deles se destacam os pormenores irrepetíveis, da vida comum, de todos os dias. Sem filtros ou grandes explicações. A «verdade» está assim em todo o lado: no passado e nos sucessivos presentes que o foram remodelando. Está em toda a parte e ao mesmo tempo em parte alguma. Por isso jamais tem fim o trabalho do historiador e por isso a História é sempre parcialidade e incerteza. O que só enriquece o seu poder de questionamento e de atracção.
A fábula
E contava a fábula que aquele era o país mais feliz do mundo.
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Pecado e remissão
De acordo com o cada vez mais inimitável diário i, João Paulo Borges Coelho, romancista e historiador, vencedor do Prémio Leya 2009 com O Olho de Hertzog, nasceu no Porto mas «confessa que optou por ser moçambicano». Vamos perdoar-lhe o pecado? Se confessa, por mim está perdoado.
Silêncio romano
Os anticlericais mais impenitentes têm-se divertido bastante com a recente revelação em catadupa de casos de abuso de menores ou de práticas de exploração e comércio sexual levadas a cabo, durante décadas, por um número indeterminado mas seguramente alto de membros do clero católico. Claro que, neste como noutros casos ocorridos com a Igreja romana, a procissão jamais sairá do adro. Ao longo de séculos, a sexualidade ínvia determinada pelos Padres da Igreja, que encaravam o sexo como um mal necessário, apenas admissível por ser indispensável à reprodução da espécie, bem como a prática compulsória do celibato, ambas associadas a posições de poder e de influência sobre pessoas, terão contribuído para atribuir a tais práticas uma natureza inevitavelmente endémica e continuada da qual jamais será possível conhecer a verdadeira dimensão. No entanto, nem todos os casos podem ser avaliados do mesmo modo: uma coisa são os abusos, desejavelmente denunciados e eventualmente punidos, outra são as legítimas escolhas de cada um daqueles homens e daquelas mulheres para viverem a sexualidade que jamais deixaram de possuir. O que não está a ser devidamente realçado é, por isso, a dimensão de hipocrisia que preside à convivência entre este tipo de situações e a atitude formal da suprema hierarquia da Igreja católica: existem com toda a certeza dramas intensos de infelicidade e de solidão, vividos por pessoas obrigadas a habitar uma vida inteira com os seus fantasmas e as suas secretas fantasias, das quais Roma e os seus representantes jamais falarão com clareza e verdadeiro arrependimento.
Mais Orwell
A Antígona anuncia para o final deste mês a saída da tradução portuguesa de O Pensamento Político de George Orwell (Orwell’s Politics, publicado em 2002), de John Newsinger. Tempo para tentar compreender melhor, e para revisitar, o percurso complexo do escritor, ensaísta e jornalista inglês que foi também, pelo menos desde os tempos birmaneses de onde emergiu a sua consciência política, um socialista. E para seguir o seu trajecto na Guerra Civil de Espanha, experiência determinante para se entender a irredutibilidade absoluta – que o levou a posições difíceis, polémicas, muitas vezes incompreendidas ou mesmo objecto de calúnia – perante toda e qualquer forma de colaboração com o estalinismo. Um tema e um combate que não pertencem apenas ao passado. Lá chegaremos.
Pela liberdade
Um novo abaixo-assinado, desta vez massivo e global, de protesto pela morte de Orlando Zapata Tamayo e pela libertação dos prisioneiros políticos em Cuba. Onde, é preciso não esquecer, estes possuem o estatuto particularmente cruel e humilhante de criminosos de delito comum. Pode ser assinado AQUI. Notícias sobre a campanha em curso aqui.
Não se matem pelo amor de Deus
Já meio mundo glosou a «lei da rolha» imposta ao PSD pelo ressabiamento de Pedro Santana Lopes e a asneira colectiva de muitos delegados ao ajuntamento de Mafra. Mas atribuir agora ao partido criado por Sá Carneiro o epíteto de «estalinista» é tão injusto para com o antigo Partido Comunista da União Soviética quanto para com o actual Partido Comunista Português. Acontece que, ao contrário destes, o PSD jamais terá condições, por congénita incapacidade de decisão e impossibilidade de pôr em prática o centralismo democrático e de gerar um Beria, para aplicar as medidas contra a divergência interna agora aprovadas. Tentar fazê-lo constituiria um trágico acto de harakiri e a maioria dos militantes social-democratas até é, se não estou em erro, «pela vida».
Tempo de tréguas
Para acabar de vez com a falta de stocks nas livrarias («não temos, está esgotado»). Para terminar com a destruição de livros por falta de espaço para armazenamento («zzzzzás, pás!»). Para espantar os biblioclastas mais impenitentes. E também para dar ao livro táctil, odorífero, em papel, um tempo de tréguas. As distribuidoras podem não gostar muito desta ideia (já com alguns anos de ensaio, aliás), mas todos os males do mercado livreiro fossem esse.
Este homem não é um homem?
«Hay momentos en que es necesario ser semilla, ser raíz, ser muerte…»
Guillermo Fariñas
Adenda em 15/3 – Imprescindível, sobre a democracia em Cuba e a responsabilidade dos intelectuais, o artigo de Antonio Muñoz Molina publicado este sábado no Babelia. Onde se fala da atitude de um segmento significativo da esquerda democrática europeia e americana que, em vez de assumir uma posição de princípio contra toda e qualquer ditadura, se esta se autoproclamar «de esquerda» prefere, indulgente, «olhar para outro lado», silenciar a opressão, com um medo terrível de que a acusem de ser «cúmplice da reacção». «Yo pensaba que ser de izquierdas era estar a favor de la igualdad justiciera de los seres humanos, del derecho de cada uno a vivir soberanamente su vida. No imaginaba que duraría tanto la costumbre estalinista de injuriar a los perseguidos y a los asesinados.»
Rapazes e meninas
É com espírito de naturalista, qual David Attenborough amador, que observo sempre, nos congressos dos partidos do Grande Centro, as manobras e ademanes das crias-jotas durante os seus rituais de iniciação. Afiando as facas, já de blazer sombrio convenientemente ajaezado, saia-casaco sem mácula, melena amansada, expressão rectilínea e voluntarismo à flor da pele. Preparando o currículo que as conduzirá ao futuro de predador anotado nas agendas. Clonadas e previsíveis como peças em cadeia de montagem. Soft-porno do bom para quem se excita com muito pouco.
Un jour, un jour [na morte de Jean Ferrat]
No inverno de 1971-1972 (ou seria no seguinte?) fui algumas vezes ao Porto em missão de risco. O perigo era real (a prisão, talvez a tortura – não, não era pouco), mas apesar da possibilidade a convicção era mais forte. O objectivo era trabalhar na ligação orgânica com estudantes da mesma área e os encontros obrigavam-me por vezes a passar a noite na cidade. Atravessei algumas delas, enregelado e enroscado num cobertor nauseabundo, deitado sobre um velho sofá que jazia numa das duas únicas divisões da pró-Associação de Estudantes de Economia (ou foi antes no TUP, ó querida memória?). Para mim vinha algo de especial e de fantástico com aquelas noites. Uma certa sensação de façanha e de aventura, admito, já que o edifício fazia paredes-meias com um quartel da temida GNR. Tratava-se pois, praticamente, de dormir com o inimigo, concebendo, ao mesmo tempo, um poder sobre ele que apenas podia advir da dose de «razão histórica» da qual me supunha investido. Mas existia também, naquelas madrugadas, um momento sublime de exaltação para o combate antifascista: um enorme gravador de bobinas no qual encontrei, pela primeira vez, as canções combatentes e sentimentais de Jean Ferrat (1930-2010). Foi com a sua voz preenchendo a escuridão que adormeci algumas vezes, imaginando um país livre, projectando um mundo melhor e sem dúvida feliz. Não seria bem este onde agora habito, mas enfim, vocês sabem, un jour, un jour… «un jour d’épaule nue où les gens s’aimeront / un jour comme un oiseau sur la plus haute branche». Fico a dever alguma coisa, como perceberam, a Jean Tenenbaum Ferrat.
Ler também o que escreve e faz ouvir Joana Lopes.
Contra o ódio
O conhecimento da História ajuda-nos a relativizar «verdades» absolutas, a entender a complexidade do que parece simples, a reconhecer que a perfeição possível resulta sempre da superação do transitório e da dispersão do inabalável. Ver e rever as sequências do passado faz-nos rejeitar as interpelações do mundo que trocam a análise objectiva, complexa, instável, pela afirmação peremptória de uma interpretação simples que parece irrevogável. É a recusa desta perspectiva fácil e maniqueísta que torna inaceitável que se some à denúncia das iniquidades contra os direitos humanos cometidas pelos americanos no centro de detenção de Guantánamo a compreensão pelos crimes cometidos em Cuba contra a liberdade de consciência e os direitos cívicos dos que a defendem. Que torna inadmissível que à exposição dos crimes consumados pelos responsáveis israelitas contra as pretensões legítimas dos palestinianos se junte a defesa irracional do anti-semitismo e a cumplicidade para com as manifestações de brutalidade do Islão radical. Que nos mostra como o único lugar para a firmeza e a irredutibilidade se deve circunscrever ao combate diário contra o elogio da incompreensão e a disseminação do ódio.
Há 34 anos em Praga
Plastic People of the Universe
Oh Yeah – How Nicely You Sleep [Egon Bondy’s Happy Hearts Club Banned, 1978]
PLAY
A música pop era um perigo para o Estado. E os Plastic People of the Universe (1968-), a banda mais conhecida de todas, eram perigo elevado ao quadrado. Com os seus cabelos compridos, blusões de couro, calças de ganga, t-shirts tingidas à mão, não passavam, para as rígidas autoridades socialistas, de «gente preguiçosa que foge ao trabalho». Estas consideravam que a sua música não tinha a ver com arte, «ameaçando seriamente os valores morais da sociedade», e que as letras das suas canções eram «de uma vulgaridade impressionante e com um impacte anti-socialista e anti-social, glorificador do niilismo». Muitos checos consideravam, no entanto, que «se Husák e a o regime estavam contra os Plastic People, então era porque a banda fazia aquilo que estava certo».
Apesar de, junto com outros grupos checos, terem sido proibidos de actuar em lugares públicos, conseguiam sempre arranjar forma de tocar em casamentos e festas de aniversário, em «reuniões privadas», em jardins ou pracetas de subúrbio. Mas a polícia secreta, a Stání Bezpecnost, seguia-lhes os passos, ao mesmo tempo que a sua popularidade irritava cada vez mais as vozes neo-estalinistas do regime saído da derrota da Primavera de Praga. Numa noite de Março de 1976, perfazem-se agora 34 anos, os Plastic foram finalmente detidos, acusados de «alcoolismo, toxicodependência e comportamento anti-social», e condenados a entre um e três anos e meio de prisão. Cerca de dois meses depois do julgamento, Václav Hável e outros escritores, artistas, académicos e músicos, originalmente 243 pessoas, lançaram uma campanha pela libertação da banda e a chamar a atenção para as violações dos direitos humanos na Checoslováquia e nos restantes países do leste europeu. Foi esta a origem da Carta 77. Tinha começado a contagem decrescente para o fim do regime.