Ensaio, solidão e audácia (na pista de Montaigne)

Typewriter

O nome de Michel de Montaigne permanece ligado à arte do ensaio por ter dado a esta forma de escrita as características essenciais que, quatrocentos e tantos anos depois, ela conserva ainda. Se o francês do Périgord tem sobrevivido como escritor «para todas as épocas», tal não se deve necessariamente às suas opiniões, muitas das quais hoje já ninguém levará a sério, mas à forma intemporal como se relaciona com o leitor. Em A Arte do Ensaio Fernando Savater define com clareza o género que Montaigne inventou e «levou ao seu mais alto grau de perfeição»: experimentações literárias, autobiográficas, filosóficas e eruditas que jamais pretendem esgotar ou delimitar um campo de estudos. Visam antes o inverso, que é corromper esse campo e convertê-lo num lugar de passagem, rumo a outros que, de momento, permanecem ainda longínquos. Nesta direcção, o ensaísta é necessariamente um céptico e um «perito em divagações», uma vez que o seu esforço exclui a certeza e a convicção de se encontrar na posse da verdade.

Esta atitude é comum ao conjunto de autores e de textos fundamentais do pensamento do século XX propostos neste texto sobre «a arte de ensaiar» do filósofo e escritor de San Sebastián, servindo ao mesmo tempo como um convite à descoberta ou ao reencontro com obras-chave, todas elas intensamente inquietantes, e sob muitos aspectos arrojadas e incompreendidas no momento em que foram escritas. Sartre, Camus, Bertrand Russell, Foucault, Freud, Adorno, Ortega y Gasset, Lévi-Stauss, Miguel de Unamuno, Marshall McLuhan, Octavio Paz, Elias Canetti, María Zambrano ou Hannah Arendt são alguns dos 25 pensadores seleccionados por Savater, todos eles capazes de dar esse passo na direcção do que não sabiam, nem podiam ainda saber, mas em relação ao qual possuíam uma forte capacidade de questionamento e um desejo de superação.

Aliás, o acento colocado em cada um dos capítulos, dedicados sempre a um autor e a uma obra, não é o da procura da sistematização, ou da «síntese» catequética da mesma, mas antes o esforço para mostrar como a sua escrita resultou sempre de uma pergunta incómoda para a qual não existia resposta e, por isso mesmo, derivou de um acto solitário. Ao mesmo tempo, a sua escrita emergiu como prova de um pioneirismo criador, aberto à novidade. Na realidade, e de acordo com Lukács, o autor da Teoria do Romance aqui evocado, se o ensaísta carece dos instrumentos científicos capazes de o ajudarem a resolver os problemas da sua época, «tem a audácia suficiente para examiná-los». Foi aquilo que fizeram, para pegar apenas em dois dos casos escolhidos, autores como Albert Camus em O Homem Revoltado, uma «meditação histórica de um inconformista perplexo», ou Michel Foucault em As Palavras e as Coisas, um texto inovador não tanto pelo que trouxe de objectivo mas «por ter assinalado que havia novas áreas a descobrir». A Arte do Ensaio pode servir, em simultâneo, como elogio da ousadia e um notável mapa do tesouro.

Publicado na revista LER de Fevereiro

Fernando Savater, A Arte do Ensaio – Ensaios Sobre a Cultura Universal. Trad. de Francisco Telhado e Pedro Vidal. Temas e Debates / Círculo de Leitores, 152 págs.

    Olhares.