A Angelus Novus está a relançar o meu livro O Poder da Imaginação – com o subtítulo «juventude, rebeldia e resistência nos anos 60» –, publicado originalmente em 2003. Se não o encontrar na sua livraria pode sempre encomendá-lo aqui. Se não estiver de todo interessado, saiba que também faz muito bem.
Goodbye Rimbaud
Posso aceitar a observação do livreiro Jacques Desse quando nos diz, a propósito do encontro com um singular Rimbaud adulto que descobrira entre um conjunto de fotografias à venda numa feira de antiguidades, que o poeta de Une Saison en Enfer aparece ali com «um ar de extraterrestre no meio dos outros, um pouco como se estivesse naquele e ao mesmo tempo noutro lugar». Por mim vejo-o antes, entre aquele grupo de bons burgueses a posar para a posteridade à entrada do Hotel de l’Univers, em Aden, lá pelos meados da década de 1880, como um sujeito normal, sem nada do jovem dandy dissoluto, ícone gay e arquétipo do poeta maldito, habitualmente associado ao famoso retrato tirado aos 17 anos. Como um tipo banal, conformado, que já deixara de escrever e exercia o melhor que podia a profissão de negociante de armas e café. Talvez pareça mais humano, embora mais triste.
A voz
No Diário Volúvel, Enrique Vila-Matas fala da voz de Van Morrison como voz que lhe pareceu sempre representar «a humanidade inteira». Cada um de nós, em certos dias, em determinados momentos, encontra de vez em quando uma voz assim. Que chega de parte incerta e nos segreda ao ouvido o momento límpido no qual todas as coisas, todos os tempos, todas as forças e vozes, parecem convergir. Só que apenas nós o percebemos, e, por isso, esse fragmento de humanidade fica por nossa conta, como um segredo impossível de transmitir. Como uma jóia rara, translúcida e sem peso, impossível de partilhar, que tocamos por cinco minutos e mais ninguém vê, mais ninguém ouve.
Conjurados
Esta manhã, enquanto tentava fintar o trânsito a caminho do trabalho, ouvi na rádio as últimas declarações do prefeito emérito da inigualável Congregação para a Causa dos Santos. Em mais uma imitação bem conseguida do Diácono Remédios, o cardeal José Saraiva Martins falava, a propósito da vaga de denúncias de actos de pedofilia praticados por membros do clero católico, de uma «conjura contra a Igreja». Existe, sem dúvida, uma coincidência de provas e de acusações cujo eco nos média suscita um efeito de avalanche, mas quanto mais este estilo de reacção tem lugar, mais se percebe a necessidade de ir ainda mais fundo nas denúncias e nas investigações. Se preciso for, descendo ao universo sombrio de seminários diocesanos e colégios de meninas. Um trabalho por fazer que a hierarquia da Igreja, se não estivesse impedida de renegar o seu mundo de sombras e meias-palavras, deveria reconhecer como benéfico para um retomar da dignidade dos próprios católicos. Necessário também para atenuar, tanto quanto possível, as feridas abertas e jamais saradas no passado das vítimas. E para que, de uma vez por todas, a hipocrisia romana a em matéria de sexo e de moral possa ser colocada no seu devido lugar. Se para que tal aconteça for preciso organizar uma acção concertada – vulgo conjura – dos queixosos, dos tribunais e da opinião pública, pois que se organize.
Publicado também no Vias de Facto
Timor plangente
Hoje, enquanto passava imagens de um espectáculo de Nuno da Câmara Pereira em Dili – para uma plateia visivelmente pouco motivada e com ar de frete – a RTP1 fazia correr em rodapé, com insistência, uma frase que continha um lamento: «ouvir o fado em Timor-Leste ainda é coisa rara». Presume-se pois que um dia, quando forem «desenvolvidos», os timorenses verdadeiramente castiços terão em sua casa, ao lado do aspirador eléctrico e de uma televisão com 183 canais, um pucarinho com tintol do bom, um miniatura da «águia» Vitória e uma guitarra portuguesa. E Câmara Pereira ofuscará Cristiano Ronaldo no entusiasmo do povo.
Terra prometida
Existe uma «falha de memória» no que respeita à vida dos portugueses que retornaram à «Metrópole» – muitos deles pisando pela primeira vez solo europeu – nos anos quentes da descolonização. Uma falha de memória processada em duas direcções: de um lado, esse passado foi praticamente apagado pela maioria dos «portugueses de Portugal», envolvidos na culpa e no remorso da dominação colonial e desejosos de se penitenciarem exorcizando-a; do outro, os próprios ex-colonos foram silenciando o que tinham vivido, esperando talvez, por essa forma, obter uma mais rápida adaptação à sua nova vida europeia. A própria historiografia participou deste processo, aplicando-se a partir de dada altura em conhecer a realidade da guerra ou a emergência das novas nações, mas omitindo uma parte importante da vida «branca» que ficara para trás. Quanto aos ex-colonos, o seu emudecimento contribuiu, imperceptivelmente, para a construção de mitos e fábulas a propósito da experiência passada, sublinhando as boas recordações de uma «vida maravilhosa» que se perdera, mas geralmente abafando as más.
Nos últimos tempos, porém, um certo revivalismo colonial apoderou-se da edição nacional. É verdade que a visibilidade pública dessa romagem de saudade permanece contida, mas o número de publicações – álbuns de imagens ou musicais, livros de memórias, romances de temática colonial – denuncia a existência de um público interessado e, pelo menos na aparência, ainda vasto. Imagino muitas dessas pessoas, no resguardo da sua sala de estar, folheando noite afora estes livros com emoção, algumas lágrimas ocasionais, e, não poucas vezes, também um pouco de azedume. Uma destas obras, que acabo de comprar já em 2ª edição, é Angola, Terra Prometida, subintitulada «A vida que os portugueses deixaram», da autoria da jornalista freelancer Ana Sofia Fonseca e publicada pela Esfera dos Livros.
Sirvo-me do texto da contracapa para um panorama que me parece correcto: «Através de testemunhos de uma pesquisa exaustiva [a autora] leva-nos aos bairros de Luanda, ao mato e às praias. Ao dia-a-dia dos portugueses, aos seus usos e costumes. Em suma redesenha os contornos de uma vida que já só existe nas recordações de quem a viveu.» Entrevistas, cartas, diários, fotografias, jornais, cartazes, postais, servem então para trazer à vida os banhos de mar quente, a Cuca gelada, as lagostas, o cinema ao ar livre, «o cheiro a terra encarnada, os bailes, as grandes festas». E também as caçadas, os amores, o sexo, as velhas amizades, «os melhores anos da vida de muitos portugueses». A realidade e a imaginação de um mundo-outro que de facto existiu, embora assente sobre um colchão de espuma ou rodeado por uma campânula de vidro que desvanecia ou distorcia a restante paisagem, cego para os fumos de guerra que lhe deveriam toldar o horizonte.
Ana Sofia Fonseca – que se serve aqui, por vezes, de uma linguagem pitoresca e aparentemente démodé, contaminada sem dúvida pela fala das pessoas com as quais dialogou e o vocabulário dos documentos dos quais se serviu – chama-lhe um livro «de memórias, histórias e emoções». É-o, sem sombra de dúvida, como é também um livro nostálgico. Mas a nostalgia não é um mal em si, e, como acontece neste caso, serve muitas vezes não só para ajudar a encontrar rincões de vida que de outra forma se perderiam para sempre, como para observar, a partir do presente e com diferentes olhos, aquilo que, na altura, a premência do quotidiano ou a magia da «vida boa» impediram de perceber ou remeteram para um plano distante. Falo, naturalmente, da guerra colonial e da experiência diária dos outros angolanos. Geralmente os de pele menos clara, sem tempo e dinheiro para habitarem esse «cenário perfeito para uma vida feita de pequenos e inesquecíveis prazeres». Um cenário no qual, sem dúvida pela interferência de um esforço de imparcialidade da autora, ainda assim vão de vez em quando assomando.
Ana Sofia Fonseca, Angola, Terra Prometida. A vida que os portugueses deixaram. A Esfera dos Livros, 2009. 328 págs.
Beatlemania
«Attraverso la loro musica quei quattro ragazzi di Liverpool, splendidi e imperfetti, sono stati capaci di leggere e di esprimere i segni di un’epoca che a tratti hanno persino indirizzato, imprimendovi un marchio indelebile.»
Lembro-me bastante bem. Há quarenta e quatro anos, as minhas pré-borbulhas regurgitavam de emoção porque John Lennon proclamara serem os Beatles mais famosos do que Jesus Cristo. Não sabia para que servia uma afirmação daquelas, mas soava-me bem: queria dizer que «nós, os jovens» estávamos a caminho de tomar o mundo, e que o Nazareno escanzelado e barbudo, já na altura com uns provectos 1966 anos, estava decididamente «velho» e deveria aposentar-se. Claro que a Igreja Católica Apostólica Romana não reagiu de forma tão entusiástica e resolveu tratar mal as Quatro Cabeleiras do Após-Calipso. A partir dessa altura, quem assobiasse «Strawberry Fields Forever» candidatava-se a viver até à eternidade ao lado de Lúcifer, com os pés nus bem assentes num tapete de brasas.
Pois agora, tanto tempo depois, e com dois dos Beatles já arrumados e os outros de mala aviada, L’Osservatore Romano decide prestar tributo às suas «belas melodias», concedendo o seu perdão aos antigos guedelhudos. Procura mostrar-se convincente: «sim, eles drogavam-se […] e tiveram vidas dissolutas», mas agora «ao ouvir as suas músicas, tudo isso parece distante e sem importância». A Igreja católica passou assim a amar os Fab Four e as «jóias preciosas» que são as suas músicas. E já quase podemos imaginar o Papa, de iPod e earphones nas Santas Orelhas, a bater o pé com o seu sapatinho vermelho Prada enquanto cantarola «Yesterday». Não sei porquê, este aggiornamento 2.0 soa-me a farisaísmo. Sim, porque a melhor forma de Roma se penitenciar por mais esse «erro de percepção» não é, de novo, batendo no peito em acto de contrição. É, ou deveria ser, evitando repetir a falta de capacidade para perceber na devida altura, de forma aberta e tolerante, os anseios, as expectativas e os problemas do mundo actual. E desses continua a Igreja católica, frequentes vezes, a procurar esquivar-se. Como o Diabo da cruz.
Um bom exemplo?
Tal como tantas outras pessoas, aderi de imediato ao vídeo de Cidinha Campos que tem circulado por tudo quanto é Internet lusófona. Ao ponto de já ter chegado à televisão portuguesa, cada vez mais seguidista em relação ao que se passa na rede. Não é difícil explicar a adesão automática a esse vídeo. A minha e a da nova legião transatlântica de admiradores da deputada estadual do Rio de Janeiro. Habituados a receber as ondas de choque de uma certa classe política brasileira, tantas vezes capaz de contemporizar com comprovados actos de corrupção, a reacção perante um gesto de denúncia tão claro e veemente só poderia ser de simpatia. Em Portugal, acostumados a um parlamento maioritariamente desbotado, no qual mesmo os deputados menos comprometidos com o sistema de prebendas institucionalizado pelo «centrão» jamais excedem o domínio da razoabilidade, a atitude ainda parece mais admirável. E se alguém pisa o risco no quadro parlamentar, como o «ministro dos corninhos», é um ai-jesus, credo, que parece impossível. Que saudades de pessoas como Acácio Barreiros (dos tempos da UDP), Francisco Sousa Tavares, Natália Correia ou Odete Santos! Para não recuarmos até Afonso Costa ou José Estêvão…
Perante tanto cinzentismo (alguns chamar-lhe-ão ausência de pathos), como não gostar então da atitude sonora e desempoeirada da deputada Cidinha? Bem precisávamos, diremos muitos, de uma quantas pessoas assim, para ver se, pelo menos por algum tempo, cresciam as audiências do Canal Parlamento e aumentava o interesse dos portugueses pela política. Porém, convirá dizer que nem tudo aqui é luz. Se repararmos bem nos termos e nos argumentos da deputada (perceptíveis neste e noutros vídeos acessíveis no YouTube), observaremos um estilo e o recurso a meios que são inaceitáveis em muitos países democráticos, como o uso público de informação judicial que se deveria manter reservada, a referência por alcunhas ofensivas a pessoas ainda não julgadas e condenadas ou a parentes seus, a exibição livre de epítetos e de insultos, ao melhor estilo de um «tribunal popular», que não podem aceitar-se num parlamento por mais hediondos que possam ser os crimes cometidos pelos seus destinatários. Por isto, e passada a novidade, fui deixando de achar grande piada aos vídeos populares da corajosa Cidinha Campos. Eles são reveladores de um lado populista e demagógico da democracia que também nos deve preocupar. Venha ele da esquerda ou da direita.
Originalmente no Vias de Facto
Ana Proletária
Anna Walentynowycz, Proletariuszka, a «Ana Proletária», era uma mulher de estatura muito baixa. Com 51 anos, estava a começar a ganhar algum peso, mas no gigantesco Estaleiro Naval Lenine continuavam a chamar-lhe também «Mala Anna», a «Pequena Anna». Sempre cheia de energia e de trato afável, toda a gente a conhecia e era um dos operários mais populares do estaleiro. Tinha trabalhado ali durante trinta anos e estava agora a cinco meses da reforma. Tendo ficado órfã durante a ocupação da Polónia pelos nazis, tornara-se então militante comunista. O seu projecto de vida tinha sido participar na construção do socialismo e o lugar onde começou a bater-se por essa tarefa foi o Estaleiro Naval Lenine.
Era uma operária exemplar, uma soldadora que por causa da baixa estatura era enviada muitas vezes para os recantos mais difíceis e estreitos da estrutura dos navios. Em 1951, aos 29 anos era membro da Brigada de Trabalho Rosa Luxemburgo e ganhou o prémio Herói do Trabalho. Segundo o discurso de louvor, no ano anterior tinha aumentado a sua produtividade laboral em 270% («um dos momentos de que mais me orgulho na minha vida», diria muito mais tarde). Após dezasseis anos a manejar o maçarico, Anna ascendeu a uma posição mais responsável, como operadora de grua. Somente um punhado de mulheres do estaleiro – que fabricava sobretudo cargueiros para exportar para a URSS – tinha as qualificações necessárias para manobrar uma maquinaria tão cara e potencialmente perigosa.
Em 1965 foi-lhe diagnosticado um cancro e deram-lhe poucos anos de vida, mas mais tarde, depois da radioterapia, os médicos descobriram que se tinham enganado e que afinal ela sempre estivera de perfeita saúde. Ao longo de todo aquele tempo mantivera-se sempre uma operária empenhada, «patriótica e leal ao comunismo». Era tão respeitada que os colegas de trabalho começaram a consultá-la cada vez mais com problemas pessoais. Ela tentava ajudá-los de forma prática, ou então limitava-se a ouvir as suas queixas com empatia. Começou a abrir os olhos aos poucos e a aperceber-se de como a sua «nova Polónia» estava bem longe do paraíso socialista pelo qual tanto trabalhara.
Os acontecimentos precipitaram-se em 1970, quando num grosseiro erro de timing, apenas uma quinzena antes do Natal o governo aumentou em 36% os preços de alimentos básicos como a carne, o pão, o leite e os ovos. Estalaram então motins em várias cidades polacas. O mais violento foi em Gdansk, onde a polícia disparou contra manifestantes desarmados no exterior do Estaleiro Naval Lenine. Morreram ali 44 operários. Ainda assim, Anna manteve-se longe dos problemas. Porém, tal como muitos dos seus compatriotas, começou a radicalizar-se à medida que se ia inteirando da vida quotidiana na «Polónia socialista». Referia-se sempre aos operários que tinham morrido em 1970 como «mártires» e tornou-se uma das pessoas que procuravam assegurar que houvesse sempre velas e flores nas suas campas. Descobriu entretanto um esquema de extorsão que envolvia uma fraude a larga escala, da qual beneficiavam pessoalmente os dirigentes do sindicato oficial do estaleiro, naturalmente controlado pelo Partido Comunista.
No 1º de Maio de 1978 deu então o primeiro passo que a iria colocar sob a mira dos apparatchicks do Partido como um problema potencial. Juntou-se a um grupo criado nesse dia, chamado Comité Fundador para os Sindicatos Livres da Costa Báltica. Em breve este comité receberia um nome mais fácil de decorar: Solidarnosc, ou Solidariedade. Começaram a publicar um jornal, O Trabalhador Costeiro, que na primeira página da sua edição inaugural declarava o seu principal e objectivo: «Somente os sindicatos independentes, que contam com o apoio dos trabalhadores que eles representam, têm uma oportunidade para desafiar o regime. Somente eles conseguem representar um poder com o qual as autoridades terão de lidar um dia numa base de igualdade.» Anna Walentynowycz foi um dos 65 activistas que assinaram a carta de direitos do jornal no dia da sua fundação.
Anna morreu hoje, aos 80 anos, no mesmo desastre de aviação que vitimou o presidente da Polónia e um grande número de dirigentes e quadros do país. Dirigiam-se todos para Smolensk, na Rússia, com o objectivo de participarem nas cerimónias fúnebres em memória das vítimas do massacre de Katyn, ocorrido em 1941 quando a polícia secreta estalinista, o NKVD, executou mais de 20 mil oficiais polacos capturados pelo Exército Vermelho. Dela poucos falarão, mas aqui fica a lembrança.
NOTA – Parte substancial deste post foi escrita recorrendo a Revolução 1989. A Queda do Império Soviético, um livro do jornalista húngaro Victor Sebestyen editado em 2009 pela Presença.
To Whom It May Concern
Além de se servir de uma fotografia minha com menos dez anos e mais dez quilos (não é gralha), a editora Angelus Novus deturpou completamente as minhas respostas a um inquérito sobre a Coca-Cola. Padeço de Doença do Refluxo Gastro-esofágico – Bill Clinton também – e não devo por isso consumir bebidas gaseificadas. Solicito pois que não tomem demasiado à letra o que aqui se pode ler. Principalmente as supostas graçolas, pouco condizentes com o meu perfil severo e comedido. Assaz, diga-se de passagem.
Ainda S.R.
Como fui uma das pessoas enganadas pela informação que me chegara acerca de posições públicas assumidas pelo cantor cubano Silvio Rodriguez, não posso deixar de apontar agora para o post «Diálogos Cubanos», no qual Joana Lopes oferece também alguns links que são importantes para um mais completo esclarecimento do caso.
Exageros
Ainda mal que pergunte, mas por que razão apoiar Manuel Alegre para PR – até instruções em contrário da minha consciência, será isso que farei – requer transformar o mesmo em Vate da Pátria? Do ponto de vista literário, Alegre é um conservador e escreve, muito classicamente, sobretudo coisas «bonitas» (para determinados gostos, not mine) e «com mensagem» (algumas delas foram importantes para muitas pessoas, inclusive para mim). Ficará, sem dúvida, num parágrafo da História da Literatura Portuguesa. E terá sempre quem goste de o ler. Mas daí a ser cantado e decantado como um Juan Manuel Fangio da pena vão umas quantas voltas ao Circuito de Monza…
Com um sorriso nos lábios
Já perdi a conta ao número de vezes que apontei para crónicas de Antonio Muñoz Molina saídas no suplemento Babelia. Quando o faço é quase sempre para realçar evocações, vidas ou ideias das quais me sinta cúmplice. Mas desta vez será diferente: sirvo-me de um artigo do escritor andaluz para rejeitar a perspectiva que adoptou no artigo desta semana. Intitula-se «Un elogio de la socialdemocracia» e nele Molina esboça uma resenha histórica das conquistas proporcionadas pela experiência social-democrata – equiparada por grande parte da esquerda, desde a intervenção revisionista de Eduard Bernstein, a uma «sistematização da traição» – que funciona ao mesmo tempo como elogio e obituário.
Primeiramente Molina celebra as conquistas:
«Todos, sin excepción, en Europa y en Estados Unidos, somos beneficiarios en algún grado de la revolución socialdemócrata, que supo favorecer la igualdad y la justicia fortaleciendo y no sólo conservando las libertades individuales: cuando vamos al médico, cuando asistimos a la escuela o mandamos a nuestros hijos a la universidad, cuando tomamos el tren o el metro, incluso cuando conducimos nuestro coche privado por una autopista que no habría podido construirse sin enormes inversiones públicas.»
Mas logo de seguida começa a diagnosticar a visível decadência:
«Y sin embargo, desde los tiempos de Margaret Thatcher y Ronald Reagan, el descrédito de lo público se ha extendido como una gangrena, en la derecha y también en la izquierda, que cuando llega al poder muchas veces adopta un lenguaje entre tecnocrático y cínico. Lo público es ineficiente. Cualquier servicio lo puede prestar mucho mejor una empresa privada, que se rige por la racionalidad del beneficio y no por la rutina o la corrupción de la burocracia. Hay una manera de que las profecías se cumplan: a los servicios públicos se les quitan los medios y se descuida su gestión y así se demuestra que no funcionan y que necesitan ser privatizados»
O que me tocou negativamente neste artigo não foi o desembaraço da análise, que é patente e nada oferece de novo, mas a perspectiva da qual Molina parte. Propõe uma crítica da esquerda lançada a partir do seu interior, num sentido, aparentemente regenerador, que até pode parecer positivo. Mas a «esquerda» da qual fala, e a única que parece verdadeiramente preocupá-lo, é a do PSOE de Zapatero, ou aquela alardeada por partidos análogos. Esquece pois, ou parece esquecer, que os compromissos à esquerda têm necessariamente de passar por uma abertura que envolva correntes e sensibilidades muito diversas, com tradições também elas diferentes. Tanto quanto possível devidamente imunizadas contra o vírus anestesiante do realismo político e unidas por cinco grandes vocações. A primeira impõe que as conquistas proporcionadas pela social-democracia nos países do capitalismo avançado sejam património a desenvolver e não a rever; a segunda requer que à esquerda não exista «linha justa», e muito menos «científica», à qual as outras se devam submeter; a terceira faz com que seja preciso manter uma grande abertura crítica e uma grande capacidade para ultrapassar os dogmas do passado; a quarta determina que as liberdades públicas e os direitos humanos são, à escala planetária, factores essenciais de equilíbrio e felicidade; e a quinta exige que para construir uma sociedade melhor, mais justa e mais igualitária seja preciso muito mais do que uma gestão «civilizada» do capitalismo: é preciso manter no horizonte a necessidade da sua superação. E trabalhar para isso, é claro. Desconfio, porém, que jamais um vislumbre de tal caminho faça com que Zapatero ou Sócrates adormeçam com um sorriso nos lábios.
Publicado também no Vias de Facto
A máquina de contar o tempo
Num dos prefácios o autor faz notar que «a medição do tempo é apenas um aspecto de um assunto muito mais vasto: o significado do tempo e a variedade das formas como é percebido e usado». Por isso esta história dos relógios é bastante mais que um relato detalhado da invenção e do aperfeiçoamento desses aparelhos mecânicos de medir os dias: representa também um esforço de compreensão da forma como estes rapidamente alteraram a vida colectiva e o modo dos humanos decifrarem o mundo. David S. Landes procurou, no fundo, fazer com os relógios aquilo que outros fizeram com a imprensa, mostrando como o seu uso fez detonar um conjunto de processos que excederam em muito os contornos da revolução tecnológica.
Publicada originalmente em 1983, A Revolução no Tempo foi revista em 1998 na sua edição em inglês, e foi esta que a Gradiva agora traduziu. Preservaram-se as três partes constitutivas da primeira edição – a que aborda a razão pela qual a invenção e o aperfeiçoamento do mecanismo ocorreu lugar na Europa, a que relata o modo como o relógio foi aperfeiçoado para ser cada vez mais portátil, fiável e duradouro, e a que descreve as vidas, os trabalhos e as conquistas dos que os foram produzindo – mas deu-se agora ênfase suplementar às profundas alterações técnicas das últimas duas décadas do século passado, em particular aquelas que disseram respeito à «revolução do quartzo» e ao uso do telemóvel, do computador, da rádio e da televisão como marcadores do tempo de todos os dias. Talvez seja sob este aspecto, porém, que esta obra acusa algumas falhas, uma vez que não discute o modo como a introdução destes novos processos de medição começou a apagar essa divisão do quotidiano em parcelas, em tempos fixos, que a utilização dos relógios mecânicos ainda supunha, substituindo-as por um «antes» e um «depois» cujo referente pode ser agora a chamada telefónica, o indicativo musical ou o programa de televisão.
Para além de um volume enciclopédico de informação sobre a história e a tecnologia dos relógios, produzida a partir de Galileu e da sua descoberta do isocronismo das oscilações do pêndulo, que só por si justificaria o interesse deste livro, destaca-se ainda o papel atribuído pelo autor ao facto da revolução produzida implicar uma metamorfose ética imposta pela possibilidade de rentabilizar os dias – detecta-se aqui uma articulação visível entre a nova forma de medir o tempo e uma ética calvinista do trabalho que teria escapado à análise de Max Weber – que se traduziu, para os europeus que rapidamente a adoptaram, num catalisador do crescimento económico e da sua afirmação planetária. Esta mudança ofereceu também à própria percepção da história um «cenário cronológico» anteriormente desconhecido, com implicações nos domínios da filosofia, da teologia, da literatura e até da política.
Publicado na revista LER de Março
David S. Landes, A Revolução no Tempo. Os Relógios e o Nascimento do Mundo Moderno. Trad. de Edgar Rocha. Gradiva, 544 págs.
Bruxelas como jamais
Devia ser o Théâtre Royal de La Monnaie
Todas as cidades vivem saturadas da sua própria imagem. Em especial as pequenas, pela razão evidente de possuírem menos ângulos a partir dos quais é possível obter perspectivas inéditas. Habito uma cidade dessas: se acreditarmos apenas no que proclamam as prédica oficiais ou lemos nos seus jornais, a imagem que a maioria dos seus habitantes tem do local onde mora é inflexível, ainda que desgastada. Nela a história serve habitualmente de argamassa. Um grafito numa parede – entretanto apagado por vândalos disfarçados de funcionários municipais – proclamava em tempos: ISTO JÁ NÃO É AQUILO QUE NUNCA FOI. Sabedoria rara que proclamava o óbvio: toda a repetição é inútil, uma vez que só se conserva igual aquilo que cada um deseja que assim pareça. Por isso gosto de imaginar, imaginar mesmo, cidades perpetuamente instáveis, das quais é sempre possível esperar mais e esperar melhor. Mesmo quando se trata das aparentemente mais monótonas ou aborrecidas. E por isso me atraiu um livro de itinerários de Bruxelas que encontrei, publicado pela Casterman, contendo textos de Christine Coste e desenhos de François Schuiten (com Benoît Peeters um dos autores da esplêndida série de BD Les Cités Obscures). Aqui toda a cidade é revista de alto a baixo, projectando-se imagens desejáveis, ou imagináveis, da face aparentemente oculta da capital dos belgas. Gostaria de ver a minha cidade assim tratada. Dessa maneira talvez fosse incapaz de deixar de gostar dela.
Revolução, esperança e nostalgia

Poucos temas são tão delicados para a consciência histórica partilhada pelas esquerdas quanto o é Cuba e a sua experiência após o 1º de janeiro de 1959. Sublinho a palavra escolhida: «esquerdas» e não «esquerda», uma vez que para regressarmos ao ponto em que era possível, no mundo capitalista, uma proximidade de expectativas e de metas entre as correntes divergentes que se reclamavam do socialismo – e que se reivindicavam da esquerda como sua «casa comum» – será preciso recuarmos ao tempo em que, há mais meio século, naquela noite de São Valentim, os guerrilheiros barbudos da Sierra Maestra entraram em Havana para expulsar o ditador Batista e os seus patronos norte-americanos. Naquela altura, é bom relembrá-lo, a Revolución cubana, apesar da cuidadosa desconfiança inaugural das rígidas chefias da União Soviética e dos partidos comunistas que as seguiam, fazia o pleno da simpatia e das esperanças do que então se designava «a humanidade progressista».
Criava-se então uma «lenda de Cuba», grata desde logo a um grande número de intelectuais da esquerda ocidental, e que foi capaz de seduzir, como experiência onde era possível projectar todas as expectativas de igualdade, boa parte da juventude do mundo inteiro. A guerra de guerrilha que se seguiu ao acidentado desembarque do Granma e que conduzira em pouco tempo à derrota de um exército e de uma força aérea apoiados pelo governo dos Estados Unidos, parecia, vista de fora, algo de miraculoso. E o facto da pequena ilha açucareira, situada a apenas noventa milhas marítimas da Florida, se haver tornado o primeiro «Estado socialista» do hemisfério ocidental, não fez senão crescer essa admiração. Em The Fellow-Travellers. Intellectual Friends of Communism, David Caute observou que a revolução cubana se tornara à época «a Revolução», funcionando como um exemplo e um modelo, reforçado, sobretudo entre gerações que acabavam de despertar para a experiência política, pelo facto de parecer desenvolver-se «sem cedências», ultrapassando, assim escrevia Simone de Beauvoir, «as noções do possível e do impossível». E, aspeto não menos importante, sem copiar o figurino de qualquer dos sistemas de poder então conhecidos.
O controlo de um Estado independente por homens e mulheres sem rugas ou complexos, belos e de porte informal, romântico, que utilizavam positivamente e sem limites palavras proscritas ou depreciadas em quase todas as partes – «revolução», «rebeldia», «anti-imperialismo», «igualdade», «coletivização» ou «alfabetização» – e atuavam centradas no presente, potenciou essa simpatia que tocou intelectuais e activistas, jovens ou maduros, tão diferentes como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Régis Debray, Susan Sontag ou Hans Magnus Enzensberger. O desembarque invasor pró-americano de 1961, na Praia Girón/Baía dos Porcos, o apoio político e militar prestado pelas novas autoridades cubanas a diversos movimentos de guerrilha espalhados pelo mundo, o empenho na alfabetização maciça da população da ilha, o esforço de colectivização da maior parte da propriedade fundiária, uma indiscutível ampliação dos serviços prestados aos trabalhadores nos domínios da saúde e da educação, fariam com que a auréola de exemplaridade do regime cubano não parasse de aumentar, sendo ampliada ainda com a atividade carismática de figuras desprovidas dos maneirismos e da linguagem estereotipada dos estadistas conhecidos, como eram a de Fidel, a de Camilo Cienfuegos, ou a do singular «Che» Guevara. Os textos de Régis Debray (Révolution dans la Révolution, 1967) e de K. S. Carol (Guérilleros au Pouvoir, de 1970), na sua época muito lidos e traduzidos em diversas línguas, contribuíram, e bastante, para ampliar esse processo de mitificação do significado e da missão daquela particular estirpe de «revolucionários em movimento».
Uma imagem poderosa da ilha de José Martí como, nas palavras de François Hourmant, um «cocktail de rum branco e de aparente euforia geral», ou como localização da utopia terrena possível, onde até o trabalho possuía uma dimensão festiva, fixava-se pois em numerosos ambientes, produzindo um «tropismo cubano» com um vigor tal que ainda hoje perdura na lembrança de bastantes pessoas da geração que recebeu o seu primeiro impacto, dando forma a algumas das suas actuais convicções, ou fazendo com que outras se continuem a mostrar incapazes de criticar abertamente as autoridades de Havana, ainda que muitas das iniciativas por estas tomadas nas últimas décadas já lhes não pareçam sedutoras ou sequer justificavéis. Como escreveu o ensaísta e crítico de arte cubano Iván de la Nuez em Fantasia Vermelha, para um certo número de pessoas «Cuba não é apenas Cuba, é qualquer coisa mais», funcionando como «um pretexto para criticar um mundo ordenado sob o signo do mercado, e, por extensão, os males do capitalismo», e mostrando ao mesmo tempo que aquilo que a maior parte dos cidadãos do planeta entende como democracia representativa é para algumas delas algo de dispensável. Para estas, a frase com a qual Sartre encerrou a sua visita a Cuba – «os cubanos devem triunfar ou perdemos tudo, até a esperança» – faz ainda todo o sentido. A esperança associada à nostalgia é, de facto, uma arma poderosa.
Rui Bebiano
Dois outros posts sobre o tema que fui escrevendo e permanecem razoavelmente actuais: A imensa tristeza (já de 2003) e Relógios cubanos (de 2009).
Rostos e vozes de Hitler
Não se trata de mais uma daquelas sinopses destinadas a difundir detalhes biográficos dos dirigentes do Terceiro Reich. Ferran Gallego, professor de história do fascismo na Universidade Autónoma de Barcelona, dirige-se aqui a quem já conhece os factos essenciais, procurando principalmente «compreender um movimento de época através da experiência pessoal que se cruza com o espaço público» e descortinar as motivações e os caminhos que levaram um certo de homens a materializar o compromisso activo de importantes sectores da sociedade alemã com o programa nacional-socialista. Enquanto experiência assente num poder absoluto de uma magnitude até então desconhecida, o nazismo é aqui apresentado como um caudal de energias que resulta da confluência de determinadas condições históricas com a acção decisiva de um conjunto de personalidades fortes próximas de Adolf Hitler.
Gallego ocupa-se de um grupo de destacados colaboradores do Führer constituído por combatentes da primeira hora, todos eles com um lugar proeminente na construção do Partido Nacional-Socialista, e de um outro, formado por homens mais jovens que se mostraram particularmente preparados para assumirem um papel activo na direcção do partido e do Estado. Do primeiro fizeram parte Anton Drexler, pioneiro do nazismo e porta-voz de um nacionalismo popular, Julius Streicher, anti-semita convicto instrumental na ascensão de Hitler, Gregor Strasser, representante da esquerda nazi e «estratega pragmático», Ernst Röhm, instrumental na organização das forças paramilitares das SA, Hermann Göering, o criador da Gestapo e chefe da Luftwaffe, um conservador vinculado aos grandes interesses económicos, Robert Ley, responsável máximo pelo controlo do trabalho operário, e Alfred Rosenberg, o teórico aristocrata que fez dos factores raciais o núcleo do projecto utópico nazi. Alguns destes, como Drexler, Strasser e Röhm, viriam a ser eliminados ou marginalizados para que o antigo cabo pudesse emergir como líder irrefutável. No segundo grupo incluem-se Joseph Goebbels, o nacionalista nihilista, esteta criador do mito de Hitler e ministro da Propaganda, Baldur von Schirach, o organizador da poderosa Juventude Hitleriana, Heinrich Himmler, líder das SS, administrador do Terror de Estado e responsável por «uma duplicidade de protecção e de repressão» que acostumou a sociedade à violência de massas, Alber Speer, o tecnocrata cínico e vaidoso do qual o historiador se serve para abordar a arquitectura no Terceiro Reich, e Martin Bormann, o burocrata eficaz que se transformou na «sombra do Führer».
O livro abre e encerra com a evocação dramatizada do discurso de Thomas Mann pronunciado em Berlim em 17 de Outubro de 1930, no qual, confrontado já com a ascensão fulgurante do nazismo, o escritor pedia um compromisso salvador entre a democracia liberal e a social-democracia. Uma proposta destinada ao fracasso no momento em que, como recorda Gallego, tinha ganho já enorme peso uma percepção estética do «poder da Comunidade» que iria destruir a República de Weimar e riscar do mapa o jogo partidário.
Publicado na revista LER de Março
Ferran Gallego, Os Homens do Führer. A elite do nacional-socialismo. 1919-1945. Trad. de Carlos Aboim de Brito. A Esfera dos Livros, 528 págs.
LER de Abril
Já está à venda o nº 90. Temas e colaborações em destaque aqui.