Arquivo de Categorias: Opinião

Na morte de Mikhail Gorbachev

Apesar de estar completamente afastado do poder há cerca de 31 anos, quando por discordar de um modo frontal da dissolução da União Soviética – bem ao contrário do que por aí se escreve e diz – se demitiu bruscamente da presidência, a morte, ontem ocorrida, de Mikhail Gorbatchev (1931-2022), também Prémio Nobel da Paz de 1990, não deixa de representar a de alguém com um papel decisivo no complexo curso do mundo contemporâneo. Apesar de já existirem muitas e detalhadas obras, tanto no campo da biografia como no do ensaio, publicadas a propósito da sua vida e do seu trajeto político e influência, a sua personalidade e a sua intervenção permanecem de uma interpretação bastante complexa, que talvez só venha a poder ser melhor clarificada no seu próprio país no dia em que este puder despertar do pesadelo putiniano e conhecer melhor tudo o que ali aconteceu nos últimos cinquenta anos.

(mais…)
    Atualidade, Biografias, Democracia, História, Opinião

    Contra as abreviaturas

    Na escrita, a abreviatura utiliza um ponto final, algumas vezes um traço oblíquo, para indicar que aquela se trata de uma palavra incompleta, em condições de dispensar parte da original. Nas últimas duas décadas, o veloz processo de simplificação associado ao uso intensivo das comunicações em linha, não só aboliu o uso desse ponto indicativo, como ampliou de um modo avassalador todo esse processo de simplificação, estendendo a hipótese de recurso à abreviatura a praticamente todas as palavras, e chegando até a abreviar abreviaturas consagradas. Para quem ama verdadeiramente a sua língua ou a dos outros, pode, todavia, seja no processo da escrita ou no da leitura, tornar-se um tormento, como ainda há pouco dias, na última entrevista que concedeu, afirmou a poeta Ana Luísa Amaral.

    (mais…)
      Apontamentos, Leituras, Olhares, Opinião

      Guerra de mundos: democracia versus autoritarismo

      Ao contrário do que se ouve e lê com bastante frequência, os conceitos de esquerda e direita, nascidos, como é sabido, do conflito de fações que teve lugar durante a Revolução Francesa, e depois determinados pela evolução simultânea do capitalismo, do nacionalismo e dos projetos republicano e socialista, não se encontram «mortos» ou «ultrapassados». Ainda que instáveis, complexos e pautados por contradições, ambos continuam a expor a eterna luta entre, de um lado, um ideal de justiça, igualdade e felicidade coletiva fundado no progresso e nos direitos sociais, e, do outro, uma perspetiva do mundo alicerçada no individualismo, no fétiche do lucro, no conservadorismo e numa ordem social baseada sobretudo em deveres. Anunciar o seu fim faz parte, aliás, do arsenal argumentativo da direita.

      (mais…)
        Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Opinião

        O eurocentrismo e a doença da eurofobia

        As Cartas Persas, escritas entre 1711 e 1720 e publicadas anonimamente no ano seguinte pelo barão de Montesquieu, são essenciais para compreender a primeira grande mutação no modo dos europeus olharem os que o não são. Nelas, dois fictícios amigos persas escrevem para o país de origem com impressões de uma viagem na França de Luís XIV onde questionam os seus costumes e leis. Para o leitor de hoje a sua crítica encontra-se muito desatualizada, mas o mais importante da obra é a forma como os valores de uma civilização são ali relativizados, mas não rejeitados, por comparação com os de outra. Este método abre caminho para uma das caraterísticas essenciais e mais avançadas do pensamento iluminista: produzir uma visão do mundo que, apesar de agora se reconhecer como eurocêntrica, se esforçava então por compreender as formas de pensar, agir e acreditar de outros povos. Uma perspetiva cosmopolita, até então desconhecida na história e na geografia da humanidade, europeia ou não, que emergiu como instrumento de valorização da diversidade do humano.

        (mais…)
          Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Opinião

          Guerra, identidade e aversão ao outro

          Sendo uma verdade que a história jamais se repete, pode ter alguma utilidade, na tentativa de compreender momentos complexos da vida dos povos e das nações, ensaiar comparações entre situações históricas situadas em diferentes tempos e lugares. Ao procurar refutar o filósofo Hegel por este ter afirmado que todos os factos e personagens de importância na história mundial ocorriam duas vezes, Marx escreveu no 18 de Brumário de Luís Bonaparte, terminado em 1852, que «ele esqueceu-se de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa». Vejamos se isto pode ser aplicado a um arriscado exercício de comparação entre o Portugal do século XVII e a atual Ucrânia.

          (mais…)
            Atualidade, História, Memória, Olhares, Opinião

            Crítica democrática e caixas de ressonância

            «Crítica» vem do grego kritikós, indicando a palavra aquele que está «apto a julgar». Manifesta-se na produção de uma opinião ou de um juízo de valor por quem a exerce. No campo das ideias, a «teoria crítica», expressão criada em 1937 por Max Horkheimer, é uma abordagem que, contrapondo-se à rigorosa separação das águas de matriz cartesiana, incorpora no pensamento tradicional uma tensão com o presente, de efeito criador e emancipatório. Na vida como professor, tenho insistido junto de quem escuta que a minha intervenção no espaço partilhado da aula, mais que destinada a comunicar saber, se destina a fazer com que cada aluno ou aluna seja capaz de usar o conhecimento para pensar por si e, seja na vida pessoal ou como cidadão, intervir de forma positiva e autónoma. Sublinho sempre: «criticar não é ‘dizer mal’, é dizer mais».

            (mais…)
              Democracia, Olhares, Opinião

              Os acossados

              Sempre vi como um tanto despropositado o título O Acossado atribuído em Portugal a À Bout de Souffle, a primeira longa-metragem de Jean-Luc Godard, com Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg, estreada em 1960 e um dos filmes basilares da Nouvelle Vague. Porque o personagem principal, Michel Poiccard, apesar de perseguido permanentemente pela polícia, é um homem livre, sobretudo à procura de uma vida em lugar distante onde tudo para ele possa recomeçar. Já o adjetivo «acossado» refere-se de forma muito objetiva a alguém perseguido ou atacado, que vive atormentado por essa condição e reage a ela envolvendo-se ainda mais no quadro de vida que lhe é constantemente imposto.

              (mais…)
                Apontamentos, Atualidade, Cinema, Opinião

                Três lições e três alertas

                Escrevo ainda sobre a guerra na Ucrânia, tema que tenho reiteradamente abordado nas últimas semanas. Não se trata de um epílogo, pois num futuro mais ou menos próximo muito haverá ainda a observar sobre as razões, as formas e as consequências deste episódio que marcará o nosso tempo, mas de uma sinopse onde se destacam algumas linhas de análise.

                Parece impossível, mas a invasão, que segundo a cândida previsão de um general comentador televisivo iria ir durar «três dias, cinco no máximo», completou três meses no passado dia 24. Na verdade, começara oito anos antes, em fevereiro de 2014, quando forças locais pró-russas, apoiadas por armamento e militares vindos de Moscovo, tomaram a península da Crimeia e parte do território do Donbass, internacionalmente reconhecidos como território ucraniano. Todavia, foi apenas nestes meses que o conflito se expandiu além daquelas regiões, com consequências que acompanham o cenário de destruição de um país e de intimidação de um povo, alargando os seus efeitos a toda a Europa e ao resto do mundo. A situação oferece-nos três lições e três alertas. 

                (mais…)
                  Atualidade, Democracia, História, Opinião

                  O PSD e a faixa da direita

                  Quando falo para estudantes estrangeiros europeus do Portugal politico contemporâneo costumo dar o PSD como uma prova mais da influência perene da Revolução de Abril no nosso sistema. Ficam sempre um tanto baralhados quando lhes digo que o Partido Social-Democrata é desde a fundação em 1974 um partido de direita, habituados que estão nos seus países a associar a designação ao movimento trabalhista e à corrente marxista-democrática – chamemos-lhe assim, embora eu saiba que o termo não é muito preciso – que vem da Segunda Internacional. Aquela criada em 1889 por iniciativa, entre outros, de Friedrich Engels, para substituir a Primeira, destruída pelos conflitos intestinos entre os partidários de Marx e os de Bakunine.

                  (mais…)
                    Apontamentos, Atualidade, Democracia, Opinião

                    Biden, Groucho Marx e a China

                    Considerando o tortuoso trajeto dos últimos cem anos anos, se de algo a política externa norte-americana não pode ser acusada é de coerência. Não me refiro à maldade ou à bondade das suas escolhas – essa será outra conversa -, mas da sua permanente capacidade para dar uma no cravo e outra na ferradura, usando o poderia económico e militar de que dispõe para tomar medidas e afirmar escolhas tantas vezes profundamente contraditórias. Talvez Rossevelt e Obama tenham, pelo menos em parte, procurado escapar a esse destino, mas ainda assim não o conseguiram de todo. E Joe Biden, com a forma como organizou a saída do Afeganistão, o modo como encarou inicialmente o problema ucraniano, e como está a tratar a vontade de reunificação do território chinês por Pequim, está a garantir um capítulo mais nessa tradição de incoerentes ziguezagues.

                    (mais…)
                      Apontamentos, Democracia, Olhares, Opinião

                      Duas vantagens e uma cautela

                      O impacto da guerra de invasão imposta à Ucrânia, a que o governo de Putin tem associado ameaças veladas ou manifestas a diversos Estados do leste europeu e da região do Báltico, também contém algumas vantagens. Duas destas relacionam-se com a construção da resposta europeia à agressão russa e com algumas fraturas expostas ocorridas no campo plural da esquerda, ambas motivadoras de clarificações que podem ter alguma utilidade. Todavia, elas apenas serão efetivamente proveitosas se resistirem a unanimismos, de uma origem principalmente emotiva, que sugerem harmonia de interesses onde, na verdade, subsistem contradições e conflitos.

                      (mais…)
                        Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Opinião

                        Uma realidade sombria e ameaçadora

                        Lembrou a comissária Ursula von der Leyen que a Europa se está a deparar com sombras de um passado que muitos julgavam extinto. Retirando os conflitos mais localizados que nos anos noventa, após o desmoronamento dos Estados do «socialismo real», tiveram lugar nos territórios da antiga Jugoslávia e do Cáucaso, há já perto de oitenta anos que o continente não assistia a uma guerra com a extensão e as consequências da que tem lugar na Ucrânia. Cidades inteiras destruídas, morticínios de civis, um povo inteiro em fuga e despojado de condições elementares de vida, ataques de artilharia pesada sem sentido aparente, impostos por uma estratégia de conquista e chantagem que utiliza uma política de terra queimada.

                        (mais…)
                          Atualidade, Direitos Humanos, Olhares, Opinião

                          Poder da ignorância em tempos difíceis

                          Está por fazer, e talvez pudesse dar até uma curiosa e bastante útil tese académica em ciência política, em filosofia ou em história contemporânea, um inventário crítico da literatura que, nestes domínios do conhecimento, os nossos militantes amigos de Putin – entre aqueles, reconhecidamente uma minoria, com hábitos de leitura para além dos títulos dos jornais, das redes sociais e da imprensa partidária – alguma vez lê, leu ou lerá. Não apenas em termos de qualidade de conteúdo, de rigor e de abertura ao fluir do mundo, mas também no que respeita à atualização das obras que conhecem, à honestidade dos seus autores e ao vocabulário de que se servem. 

                          (mais…)
                            Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Olhares, Opinião

                            O revelador regresso de Vorochilov

                            Nesta segunda-feira, 9 de maio, como acontece desde 2020, a cidade ucraniana de Lugansk, capital de uma das autoproclamadas repúblicas de maioria russa estabelecidas desde 2014 em território ucraniano por Vladimir Putin, voltará por um dia a chamar-se Vorochilovgrad, designação que já manteve entre 1935 e 1958 e depois entre 1970 e 1990. A designação homenageia o antigo marechal Kliment Vorochilov (1881-1969), nascido na Ucrânia e uma das mais sinistras e mortíferas figuras da história da União Soviética. Tendo sido desde cedo membro do Partido Bolchevique, quadro do Exército Vermelho e um dos poucos amigos próximos de Estaline, integrando o seu persistente núcleo duro de operacionais brutais, dos quais, além de Trotsky e de outros bolcheviques, o próprio Lenine manteve sempre distância. 

                            (mais…)
                              Democracia, Direitos Humanos, História, Olhares, Opinião

                              Mentes enlouquecidas

                              Regresso ao tema que está a condicionar as nossas vidas, incluindo, seja qual for a evolução que venha a tomar, as de quem faz todos os possíveis por dele se alhear ou para ele inventar soluções irrealizáveis. No contexto da guerra de agressão da Rússia sobre a Ucrânia, tem sido amplamente comentada a posição do PCP, dos seus dirigentes, e mais acentuadamente, a título individual, a de muitos dos seus militantes e simpatizantes. Favorável, de facto, em nome de uma paz que representaria a derrota do país invadido, a submissão do seu povo e uma vitória para o renascido imperialismo russo, à agressão que está em curso, com o seu cortejo de horrores e a sua avalanche de pesadas consequências. 

                              (mais…)
                                Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Opinião

                                O simples e o complexo das análises

                                Digo por vezes aos alunos que pedem para lhes recomendar «um livro onde esteja resumido o mais importante», que tudo é complexo, inclusive o simples. Porque quanto maior for a simplicidade de um determinado texto – e simplicidade não é aqui sinónimo de clareza -, mais denso será aquilo que permanece na sua sombra. No atual contexto de conflito, será bastante pedagógico comparar as análises da situação política e militar, sempre intrincada e em rápido processo de transformação, normalmente da autoria de especialistas, das declarações sobre o tema produzidas por partidos políticos e militantes seus, ou por pessoas que querem acima de tudo produzir doutrina.

                                (mais…)
                                  Apontamentos, Atualidade, Olhares, Opinião

                                  A Europa e as democracias debaixo de ataque

                                  A dada altura do seu emotivo discurso de receção na Assembleia da República a Volodimir Zelenski, presidente da Ucrânia, Augusto Santos Silva afirmou que «os países da Europa e do Atlântico Norte têm o direito de reforçar a sua capacidade de dissuasão». Para uma porção significativa da esquerda portuguesa esta declaração ainda representa algo inaceitável. Não custa elencar alguns dos motivos que determinam esta atitude de rejeição: a memória dos anos da Guerra Fria, quando parte desse setor via de forma positiva o outro lado da «cortina de ferro»; o entendimento da União Europeia como espaço de afirmação da política e da economia do capitalismo neoliberal; a consideração do caráter historicamente autoritário e belicoso do imperialismo norte-americano, do qual a NATO é uma extensão; e a desvalorização de poderes imperiais concorrentes, encarados até, na lógica do «inimigo do meu inimigo, meu amigo é», como ocasionais aliados.

                                  (mais…)
                                    Atualidade, Democracia, Opinião

                                    O PCP e o anticomunismo

                                    Ao chamar-lhe «fábrica de cristãos-novos», António José Saraiva desenvolveu, em Inquisição e Cristãos-Novos – publicado em 1969, mas saído em edição portuguesa apenas em 1985 – uma explicação sobre o que julgou ser uma das mais notórias e funestas consequências da Inquisição portuguesa. Considerou aí que a máquina trituradora por esta montada, ao «descobrir» judeus conversos em toda a parte, perseguindo e condenando por mais de dois séculos muitas pessoas que de modo algum o eram, não só ampliou muito o número dos perseguidos e sentenciados, como, por esta via, disseminou entre a população «cristã-velha» o medo e o ódio ao judeu, enraizando um sentimento antissemita preservado mesmo após o fim da instituição.

                                    (mais…)
                                      Atualidade, Democracia, História, Opinião