O humor em tempos sombrios

A expressão «tempos sombrios» é muitas vezes utilizada tendo como referência uma obra de Hannah Arendt onde esta reuniu um conjunto de ensaios biográficos sobre homens e mulheres que tiveram a coragem, através das suas vidas e da sua obra, de manter a independência de pensamento e de resistir aos fascismos em ascensão nas décadas que antecederam a Segunda Guerra Mundial. Tendo em conta o longo período de luminoso otimismo que na maior parte da Europa e das Américas se manteve entre o pós-guerra e os anos 80, marcado pelo crescimento económico, pela ascensão da classe média, pela evolução da democracia representativa e dos ideais de igualdade, pela expansão do Estado-Providência e pela valorização da emancipação, da liberdade e da diferença, usar hoje a expressão pode parecer estranho.

No entanto, nas últimas quatro décadas muito mudou. Emergiram cenários pautados, no quadro da expansão do neoliberalismo e do recuo das ideologias emancipatórias, por um reativar das desigualdades, pelo regresso do autoritarismo, pelo recuo público dos valores da solidariedade, pela propagação do espectro da guerra e do terrorismo, e ainda pela ascensão do populismo. É certo que continuam a desenvolver-se projetos progressistas, a existir quem se bata por eles, a afirmar-se combates positivos no domínio dos direitos sociais, do ambiente, do trabalho e da qualidade de vida. Todavia, estes processos enfrentam um quadro geral de pessimismo, imposto por instituições políticas desligadas dos cidadãos e por uma cultura dominante, ancorada nos média e nos interesses que os tutelam, que tende a desvalorizar as pessoas e a destacar o imediato e o fútil.

O humor, seja o quotidiano ou o profissional, tem sentido o impacto deste quadro pessimista e preocupante. Sabe-se que ele pode ser um instrumento de resistência contra regimes tirânicos, que sempre o temem, detestam e perseguem, servindo ainda como filosofia de vida, ou, lembrou-o o comediante Mel Brooks, «como uma defesa contra o universo». Porém, existe atualmente um humor público, chegado através dos meios de comunicação de massa, que tende a acompanhar o pior dos novos tempos sombrios. Basta ver as estratégias usadas pela fácil e barata comédia stand-up, que se serve, não da sátira e do absurdo – no coração do género originário da Grécia antiga –, mas da graçola fácil e pouco imaginativa, ou da depreciação de pessoas públicas, usando o seu aspeto físico, as suas falhas humanas ou as suas escolhas no domínio do privado. Num claro recuo do «humor inteligente», esse «riso pensativo», uma expressão do escritor vitoriano George Meredith, usado como ferramenta de divertimento, de alerta e de crítica.

Se é verdade, como escreveu Henri Bergson, que «não existe cómico fora do humano», algumas escolhas do humor contemporâneo são rejeitáveis, já que contrariam a função libertadora que este poderia ter. Como aconteceu com Ricardo Araújo Pereira – um humorista culto e inteligente, embora em visível queda –, que há pouco se serviu de uma entrevista de Pedro Nuno Santos, em que este foi às lágrimas quando falou de um drama pessoal, para dele fazer chacota, minimizando-o, de facto, como pessoa e como político. Precisamente na mesma lógica nefasta de depreciação «dos políticos», agora usada e abusada por alguns profissionais do gracejo, que é praticada pelo populismo. Sendo legítimo, em democracia, fazer humor com qualquer tema, este não deve denegrir pessoas, despertar baixos instintos ou desprezar o debate político, servindo objetivamente, nos tempos sombrios que cruzamos, a quem interesse desconsiderá-lo. 

Rui Bebiano

Fotografia de Moren Hsu / Unsplash
Publicado no Diário As Beiras de 24/2/2024
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