A esquerda e o medo da controvérsia

Chama-se controvérsia a toda a discussão sobre um tema ou uma opinião na qual são debatidos argumentos contrários, geralmente de uma forma acalorada e em tom de polémica. Ainda que ocorrida em tom amigável, assume quem a alimenta a existência de discordâncias importantes com a pessoa ou pessoas com quem a trava. Contém importantes vantagens, uma vez que permite exprimir diferentes modos de pensamento ou escolhas diversas, ajudando a alimentar a vida comum e, muito especialmente, a democracia, que sem ela tende a viver na estagnação e na incapacidade para lidar com a rápida transformação do mundo e fluidez da vida coletiva.

Controvérsia não significa necessariamente a construção de clivagens ou a quebra do entendimento, mas contém problemas e dificuldades, pois muitas vezes impõe posicionamentos contrários que podem produzir desavenças, instaurar a diferença ou mesmo gerar campos opostos. Por isto, representa sempre um risco, e quem a pratica sabe que, por esse motivo, pode criar inimizades. Se as quiser evitar tem bom remédio: calar-se, desviar o olhar, viver na penumbra ou agir só pelo seguro, quando sabe que aquilo que diz a ninguém incomoda. Embora este silenciamento possa suscitar o menosprezo de quem preza a frontalidade e o assumir da opinião pessoal. 

No mundo dos projetos políticos e do seu debate, a controvérsia é particularmente importante, imprescindível mesmo, sendo a sua rejeição sinal de degradação da vitalidade, conduzindo à estagnação dos argumentos e à instalação do conformismo. Curiosamente, sendo os projetos políticos de direita mais objetivamente conservadores – não os de extrema-direita, pois estes procuram mudanças bruscas – é neles que a controvérsia é mais habitualmente mantida sem que tal provoque clivagens demasiado fortes e irreversíveis. Ao contrário, no campo plural da esquerda, ela é habitualmente receada, causando com facilidade ruturas, por vezes pessoais e para a vida toda.

A razão para isto acontecer funda-se no vínculo de algumas das suas correntes a uma conceção determinista da história, criadora de distinções entre o que se toma por verdade e por mentira, ou entre a certeza e o erro, que tendem a considerar incómodo e perturbante todo o desacordo. Tem também um rastro vindo do passado – da Revolução Francesa às experiências do socialismo de Estado no século XX – quando a mera separação das interpretações ou das escolhas foi resolvida pela exclusão dos setores minoritários e pela violência extrema sobre estes. É este um problema que afeta ainda boa parte da esquerda, impedindo colaborações e acordos. Por isso deve a controvérsia ser estimulada, não para dar lugar à falta de convicção, mas para lhe associar dinamismo e diversidade. Estimulará igualmente a coragem individual, essencial no combate político. O seu contrário é esse cobarde conformismo de quem na dúvida se cala. 

Rui Bebiano

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