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O aquário

Waldsiedlung Wandlitz

Quando se observa a esta distância o mundo perdido do «socialismo real» e a forma como as suas elites dirigentes passaram de inflexíveis e autoritárias a autistas e paranóides – não se apercebendo, para o final, das rápidas mutações produzidas quando foi removido o aparelho protector oferecido pela União Soviética –, um dos exemplos que sobressai é o da estranha microcidade de Waldsiedlung Wandlitz. Situada a cerca de 30 quilómetros a norte da zona leste de Berlim, foi aí que, entre 1960 e 1989, fixaram residência oficial os membros do topo da classe dirigente da ex-República Democrática Alemã. Existem numerosas descrições do aspecto e da «vida» daquele bairro, o «Gueto dos Deuses» como lhe chamavam as pessoas comuns, completamente fechado por um forte cordão de segurança e habitado por homens idosos e as suas taciturnas esposas. Pessoas que se temiam e se vigiavam constantemente, que sabiam que tinham microfones da Stasi encaixados nas paredes e no soalho, que eram vizinhos quase sem falarem uns com os outros fora das funções oficiais, que gozavam de privilégios mas não conseguiam fruir da mais elementar liberdade pessoal.

Seguiam quotidianos rigorosamente idênticos, vestiam-se todos sensivelmente da mesma forma, circulavam no mesmo modelo da Volvo com motorista, guarda-costas e sinais intermitentes ligados, tinham casas beijes de dois pisos de concepção inalterável e mobiladas de forma previsível. Quando se encontravam dentro do bairro era necessariamente no único restaurante sempre com os mesmos pratos, no único cinema com uma única sessão diária, na única lavandaria, no único infantário, na única clínica veterinária, nas poucas lojas que vendiam produtos ocidentais aos quais mais ninguém tinha acesso. Vivendo, como conta em O Mundo Perdido do Comunismo, de Peter Molloy, a actriz e encenadora Vera Oelschlegel, que ali morou por ter sido casada com um dos moradores oficiais, num universo sempre silencioso e sem alegria, segundo o «estilo de vida da classe média baixa muito bem comportada, com um naperon em cima do televisor Vertico e que regava as plantas envasadas no jardim». E o pior é que esse era o único mundo conheciam, uma vez que há muitos anos, alguns deles havia décadas, tinham deixado de ter empregos normais, de frequentar livremente as ruas e as praças que observavam a partir das janelas fechadas dos carros oficiais, de entrar sem comitiva nas casas simples dos concidadãos que governavam. Decidiam sobre os destinos de milhões de pessoas a partir de um aquário. Como poderiam assim as coisas ter deixado de acontecer como aconteceram?

    História, Memória, Olhares

    «A derrota é uma coisa preciosa»

    Não basta deixar um link para este artigo do Rui Tavares nos destaques que costumam ficar por uns dias ali na coluna da direita. Quero sublinhá-lo pelo que nele se diz e pelo dele emana como exemplo. Gostaria muito de ouvir responsáveis do Bloco – e não apenas companheiros de jornada ou outsiders – a reflectirem assim, em público, construtivamente mas sem complexos, sem a preocupação de aparentar unanimismo, sobre o caminho próximo futuro da democracia e da esquerda que conta, aceitando que o caminho por si escolhido nem sempre tem sido perfeito, que as prioridades por vezes podem ser outras, que existem frentes por ocupar.

      Atualidade, Olhares

      Atão isto faz-se ó Pacheco?

      Pacheco 1 Pacheco 2

      O blogue da Pó dos Livros está a promover a eleição da pior capa de livro editada em Portugal. Após uma fase de pré-selecção, estão agora a votação pública as 10 que foram consideradas «mesmo mesmo mesmo» as piores de todas. Eu já votei e coloquei em primeiro lugar a dos Exercícios de Estilo, do Luiz Pacheco, lançada pela Estampa (que tem, aliás, 3 capas neste top ten). O mais estranho é que a capa da 1ª edição, que tenho aqui mesmo ao lado, me acompanhou durante anos como uma das favoritas da ficção portuguesa. E o mais extraordinário é que essa edição foi, em 1971, da responsabilidade da mesmíssima Estampa. Como escrevia Pacheco nos próprios Exercícios, «perdoai-me, senhor, mas ele há coisas…». Ora compare o leitor o antes e o depois.

        Memória, Olhares

        Intrinsecamente necessário, mas pouco

        Drive my car

        José Rodrigues dos Santos tem, salvo erro desde Agosto, um programa na RTPN – Conversa de Escritores – no qual pretende manter um registo de cavaqueira amena e sadia com alguns autores que toma por seus pares. Até se me esgotar a paciência, vi há dias um bom bocado da conversa com o chileno Luis Sepúlveda. O chorrilho de banalidades e frases-feitas, a incapacidade para um verdadeiro diálogo, foram impressionantes, dando claramente a ideia de que Santos contacta durante aqueles momentos um mundo que lhe é, no mínimo, exterior. Sepúlveda esforçou-se por ser simpático, como lhe competia, mas qualquer espectador normal pôde perceber o desconforto que sentia perante certas afirmações e algumas perguntas aflitivas. Como esta: «Quando escreve sente que escreve porque tem algo para escrever ou porque isso lhe é intrinsecamente necessário?»

          Olhares

          Desespero e silêncio

          Cadência

          Não são «manifestamente exageradas» as notícias que chegam sobre o número de suicídios – 24 pessoas em 18 meses – entre os trabalhadores da France Telecom incapazes de corresponderem às metas brutais, às cadências impossíveis e às deslocações forçadas que têm sido impostas pela administração da empresa. Como método, o processo não é novidade alguma, e conhecem-se desde há décadas situações análogas ocorridas, por exemplo, nos EUA, no Japão ou em Singapura. No passado, a União Soviética das brigadas stakhanovistas viveu também muitos casos semelhantes. A diferença estará apenas no facto de, por esta vez, as organizações de trabalhadores se terem revelado particularmente atentas denunciando o drama através dos media. Afinal a tradição francesa de independência do movimento sindical e de luta pelos direitos dos trabalhadores não constitui propriamente uma lenda. Talvez ela possa servir de inspiração a muitos dos nossos sindicalistas, por vezes mais preocupados em fazer coincidir as suas batalhas com metas políticas externas do que em ir ao fundo do lado menos visível, mais sombrio, da realidade humana com a qual lidam e que é suposto representarem. Porque é impossível, no actual contexto envolvendo tantas reestruturações profundas e unilaterais, e um culto declarado dos «índices de sucesso», que não ocorram entre nós casos análogos de depressão e desespero. Onde pára a voz das pessoas que têm de os suportar?

            Atualidade, Democracia, Olhares

            Deserção

            O desertor

            É dúbia, esquiva, quase sempre sombria, a aparência do desertor. Amaldiçoada ou reconhecida, criminalizada ou heróica, a deserção começa por ser aquilo que os outros – aqueles que a avaliam à distância – declaram que é. Na guerra de 14-18 os pacifistas exaltavam-na como acto de coragem, ao mesmo tempo que os códigos de justiça militar agravavam os castigos sobre os «traidores». No confronto civil que se seguiu à revolução de 1917, o julgamento variou consoante a direcção tomada pelo foragido. O mesmo aconteceu em Espanha durante a Guerra Civil, na Segunda Grande Guerra, no Vietname, em Angola, em Israel, na Chechénia ou no Afeganistão. A cada momento, em cada situação, foram quase sempre os outros, aqueles que não calçavam a bota militar, a decidir sobre a dimensão ética e o enquadramento penal desse gesto radical e sem retorno de desertar.

            Raramente têm sido reconhecidas as razões dos que não aceitam uma motivação política ou moral para continuarem a combater e se decidem pela recusa. Os que o fizeram, ou continuam a fazer, não por um belo dia darem por si na trincheira errada de uma guerra justa ou injusta, ou por se descobrirem pacifistas, mas apenas pelo humano medo da morte, por lhes parecer que a vida é demasiado hospitaleira para caírem no campo de batalha, esventrados por uma granada ou com os miolos perfurados por uma bala. Esses são aqueles que ambos os partidos combatentes rejeitam, mas cujas razões são tão válidas, tão certas, tão admissíveis, quanto as dos que encontram uma explicação para morrerem ou para trocarem de lado e prosseguirem o combate. São aqueles cuja decisão urgente os leva a decidirem-se pelo último assomo de coragem que só faltou ao valente soldado Schweik porque Hašek não chegou a concluir o seu romance.

              Etc., Olhares

              Eleições autárquicas e kitsch

              Kitsch

              Não é fácil abordar a dimensão kitsch de um certo poder autárquico e das campanhas eleitorais que o consagram. O exercício pode ser visto como um gesto imprudente, resultante de snobismo ou de arrogância. Pode ser olhado como manifestação de desdém por um dos círculos do regime democrático onde mais se têm feito sentir as mudanças positivas. Embora qualquer pessoa honesta e razoável reconheça que corresponde também a um dos campos nos quais a corrupção, o esbanjamento e o desatino têm ido mais longe. Em regra impunemente, pois os seus promotores têm quase sempre o bom senso de irem apagando as pistas. Mas resta a obra e o estilo, e sobre estes podemos sempre ir conversando.

              A voga do kitsch enquanto experiência de mau gosto com capacidade para consagrar códigos estéticos que contribui para sacralizar o poder – nesta direcção, o nazi e soviético foram particularmente eloquentes – materializa uma dos sinais mais fortes deste lado lamentável e disforme da política. Reportando-se à sua ligação com o campo das artes, Gillo Dorfles anotou, num artigo publicado em 1963 na revista Aut-Aut, que o próprio conceito de kitsch é aplicável «à obra de arte, ao seu criador e ao seu desfrutador». Acredito que a ideia pode ser estendida à dimensão visual e simbólica de um certo modo de exercer, de dar voz e de legitimar o poder local.

              Sob esta perspectiva, exercer o poder local significa então sobretudo «mostrar obra», independentemente da sua integração harmoniosa no meio e da racionalidade do valor de uso que comporta. Produzem-se então – todos conhecemos centenas ou mesmo milhares de casos – estradas e arruamentos desnecessários, rotundas supérfluas, praças megalómanas, edifícios sem serventia clara, museus e bibliotecas desprovidos de recheio e de programação, estátuas e mobiliário urbano de péssimo gosto, opções toponímicas duvidosas, quando não ridículas, e políticas culturais atentas apenas ao paladar e aos ímpetos identitários mais primários.

              Dar voz passa, nesta dimensão, por personalizar o poder, não tanto em função do resultado final mas antes a partir do rosto visível do «dono da obra». Só isto pode justificar o alastramento frequente de uma política clientelar local tendo como vértice, nos casos de maior sucesso, figuras de chefes locais reconhecidamente autoritários, por vezes corruptos, com uma má imagem para além dos limites físicos do concelho, mas associados a um discurso e a uma imagem populista e kitsch, próprias daquele «chico-espertismo» arrivista e bem sucedido do qual recentemente falou José Gil. Os casos de Ferreira Torres, Valentim Loureiro ou Fátima Felgueiras, com uma iconologia própria, são os mais conhecidos, por mais mediatizados, mas estão longe de serem únicos (o campeonato de Isaltino de Morais é, reconheça-se, um pouco diferente).

              As eleições autárquicas são também um momento decisivo no processo que visa legitimar a autoridade e as opções de quem se instala. Dada a visibilidade do momento, torna-se aqui mais perceptível do que nunca a dimensão do mau gosto exibido pelas campanhas e pelos seus figurantes. Desde logo na propaganda concebida para a ocasião: a pose «presidencial» na roupa domingueira, o grafismo exuberante e primário dos cartazes, a sobreposição até à náusea da simbólica identitária local, as palavras de ordem sobre a devoção filial do candidato à sua terra e sobre o amor desmedido que consagram às ruas, às tradições e, naturalmente, aos seus eleitores. Aliás, na Fenomenologia do Kitsch Ludwig Giesz chamou a atenção para o sentimentalismo – como é sabido, um subproduto do ultra-romantismo – como um dos recursos mais poderosos de «mau gosto estético». Daí a proliferação de candidatos que se servem dos cartazes para, mimando a publicidade aos concertos de Tony Carreira, chegarem, «com amor», «com ternura», com açúcar e afecto, aos corações sensíveis de quem os elege.

              Por último, intimamente associados a estes aspectos, as políticas e os programas culturais seguem muitas das vezes a mesma lógica kitsch, assumindo o conceito de cultura na sua perspectiva mais popular – no sentido do vulgar, nem tanto no do etnográfico – e passadista. Declaram, para o efeito, uma opção de interesses por um passado histórico frequentemente manipulado e pelo culto do «popularucho», rejeitando, em regra por inabilidade política, provincianismo e fechamento de perspectiva, uma lógica de adequação ao mundo contemporâneo e às expectativas dos segmentos mais informados e dinâmicos da população que os escolhe.

              Este panorama não pode ser generalizado, pois subsistem bons exemplos de atitudes completamente diversas. Mas vivendo como vivo em Coimbra, posso dizer que habito um dos mais destacados vórtices da política autárquica kitsch. Fazendo, garanto, um esforço diário para lhe sobreviver e para não deixar de amar a minha cidade.

                Atualidade, Olhares, Opinião

                Bagatelas [virando a página]

                Labirinto

                * O Partido Socialista recebeu uma transfusão de sangue de Manuel Alegre e de alguns dos «históricos» que os seus mais fiéis apparatchiki tanto depreciaram ainda há pouco tempo atrás. Em larga medida, e em conjunto com a energia de Sócrates, foram eles quem estancou no limite a hemorragia que iria fazer crescer ainda mais o eleitorado do Bloco. Não foram as Lurdes, os Albertos ou os Augustos.

                * PS e PSD – partidos «aparelhistas» e, na verdade, pouco politizados – perderam terreno para as forças com um eleitorado mais convicto e mais militante. Basta escutar com alguma atenção a longa fila de pessoas que vota em ambos por hábito e fé, frequentemente incapaz de declarar o porquê da escolha. Poderiam acorrer às eleições para o seu clube do coração ou a tomar a camioneta para Fátima. Com os outros não é tanto assim, embora em democracia, como é sabido, não existam votos de 1ª e de 2ª.

                * Todos subestimaram o CDS. Provavelmente, até uma boa parte dos centristas o terá feito também. Mas o CDS, deveriam sabê-lo os estrategos, é voz atávica de uma boa parte do «país real». Aquela que vem de passado que perdura, do respeitinho pelas hierarquias que atravessa a longa duração, do preconceito de classe que separa patrões e empregados, patroas e empregadas, do catolicismo ultramontano que sobreviveu a trinta e cinco anos de laicismo democrático como sobrevivera noutros tempos aos dezasseis de republicanismo costista.

                * Quem vendeu uma imagem dinâmica, cintilante, optimista, atenta à sede de novidade que alimenta as maiorias e às regras básicas da mobilidade cénica ganhou (o PS e mesmo o BE, que agora investiu muito nesse campo). Quem apostou numa campanha repetitiva, negativista, e apoiada em valores antieuropeus ou conservadores, no medo ou no rancor, perdeu (o PSD e, do outro lado, o PCP). O CDS, esse trilhou uma campanha autónoma, pois dirige-se a um eleitorado conservador que reconhece um certo padrão de imutabilidade como próprio da natureza humana.

                * O método de Hondt continua a fazer das suas. O CDS apenas com mais 0,61% de votos que o Bloco conseguiu eleger mais 5 deputados. Já o BE com mais 1,97% de votos que o PCP conquistou só mais 1 deputado que este. Mas contra isto, sem um irrealizável acordo de revisão da lei eleitoral – que até poderia produzir uma lei pior –, pouco se poderá fazer. Ou não?

                * O peso da opinião pública na construção de consensos e de dinâmicas de mudança pode agora ganhar uma nova dimensão. O fim do «quero, posso e mando» tenderá a ampliar o debate democrático, uma vez que no novo contexto político é possível fazer vingar posições, e não apenas «marcar posição». A vontade de participação tem assim condições para viver um novo impulso. Resta saber como e se por muito tempo.

                * O Bloco de Esquerda está numa encruzilhada. Ao contrário do que pensam alguns simpatizantes mais optimistas, dificilmente crescerá mais do que cresceu agora sem se assumir como partido de combate pelo poder. E apenas o pode fazer questionando aquela parte da sua matriz fundadora que se assume como visceralmente anticapitalista e protestativa. Abre-se um tempo de reflexão para que tudo se torne mais claro e equilibrado, antes que o balão comece a esvaziar e as fragilidades apareçam à luz do dia.

                * Espera-se que a parte sã do PS se deixe de teorias da conspiração e perca a nostalgia da maioria absoluta. E que não permita a repetição da atitude autista ou a vertigem autoritária, apoiadas nas costas largas do «contexto de crise», que dominaram o partido ao longo destes quatro anos últimos. Que tenha coragem política para procurar primeiro o consenso ou o acordo, e não o confronto. Para colocar as pessoas à frente das estatísticas. Provando finalmente que uma maioria relativa pode impor um clima de abertura que o poder não partilhado inevitavelmente rejeita.

                [virar de página]

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                  Precisamos falar

                  Conversa

                  Em função dos resultados destas eleições – e da inconsistência de muitas escolhas, claramente camaleónicas, episódicas e volúveis –, não é preciso ser-se adivinho para prever quatro anos, ou provavelmente menos, de contorcionismo táctico, negociações complicadas e difíceis debates intestinos. Uma coisa é certa: encerrou o mais recente ciclo do poder absoluto. A discussão e e o confronto de ideias ganharam um novo sentido e são agora indispensáveis.

                    Atualidade, Olhares

                    De repente, os outros

                    Musical Chairs

                    De repente lembro-me dos outros. Daqueles que permaneceram na penumbra, verdadeiramente na penumbra, ao longo da campanha. Olhados como eleitores potenciais, a quem seduzir, mas quase sempre ignorados na materialidade das suas vidas, nas diferenças que consubstanciam, nas expectativas e anseios que são só seus. Nas mulheres destacadas por preencherem quotas, aparentando paridade onde existe desigualdade de facto. Nos jovens transformados em figurantes, protagonistas para fazerem ruído e simularem futuro. Nos desempregados que perdem voz à medida que se distanciam da vida activa e se deprimem, fora de comícios, manifestações e arruadas. Nos imigrantes diligentemente varridos para longe das câmaras embora participem do nosso destino comum. Nos idosos cujos rostos passam num instante quando a televisão persegue os candidatos. Nos gays, nas lésbicas, nos artistas, nos intelectuais, arregimentados para evocarem um «capital de modernidade» perante a opinião pública, mas excluídos ou confinados a recantos invisíveis nas propostas concebidas para serem lidas pelo cidadão comum e decifradas pelos legisladores. Lembro-me de todos estes, que são milhões, e pergunto-me sobre o que lhes oferece a política institucional, aquela que verdadeiramente decide e governa as nossas vidas. Aquela cujos actores, após a dança das cadeiras, reocupará hoje os seus lugares reservados.

                      Atualidade, Olhares

                      Uma nova servidão

                      A colmeia

                      «The government is to stop funding “pointless” university research, forcing academics to prove that their academic inquiry has some relevance to the real world, funding chiefs will announce today.

                      Universities will have to show that their research influences the economy, public policy or society in order to secure the biggest research grants, the government’s funding body for higher education said.»

                      De acordo com um artigo publicado hoje no Guardian, do qual retirei os dois parágrafos anteriores, os planos do governo britânico para o financiamento da investigação – e o custeamento das próprias universidades – deverão rapidamente excluir a pesquisa pura, considerada perdulária, supérflua e até risível. A outra, a «útil», aquela «que serve para alguma coisa», será, presume-se, superintendida por gestores, aplicados amanuenses, software avançadíssimo e laboriosos gabinetes de marketing. Arrumada num mundo perfeito, inspeccionado, sem desperdício.

                      Ainda não se chegou tão longe por cá, mas sabendo-se como os burocratas domésticos aprendem depressa, e conhecendo-se alguns indicadores espalhados já por regulamentos conhecidos dos centros de investigação e das universidades, não surpreenderá ninguém se em breve habitarmos idêntica paisagem siberiana. E se, pouco tempo depois, alguém nos vier propor que a imaginação exibida em público passe a pagar imposto. Até que num dia não muito distante, se tudo correr bem aos polícias do conhecimento e nos formos conservando quietos, distraídos e veneradores, estudar pelo insano prazer de saber, ou adiantar ideias contrárias à «paz social» por serem absurdamente criativas, serão considerados crimes. Castigando-se os criminosos com trabalhos forçados em «projectos de conhecimento relevante». A ver se aprendem, esses inúteis.

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                        A marca de Zane

                        Um dos meus primeiros heróis literários foi Zane Grey (1872-1939). É impossível saber quantos rapazes que se criam temerários, quantas moças ousadas às escondidas das mães, com ele descobriram o mundo selvagem, perpetuamente inquieto, no qual cowboys de génio estupendo, e caravanas de pioneiros fugindo da miséria, enfrentavam hordas de índios bravíssimos e, nas suas páginas, alucinadamente suicidas. Somente muitos anos depois soube que até se tornar conhecido pelos seus romances populares Grey passou pelo Oeste profundo apenas por uma vez, em 1906, durante uma apressada lua-de-mel. Percebi então que a imaginação de tanta gente foi alimentada, ao longo de sucessivas gerações, pela mais completa fantasia criada por aquele pacato dentista de uma pequena cidade do Ohio. O homem que ajudou a conceber os índios e os cowboys da forma como os encarnámos nas brincadeiras da infância – cientes, na nossa inocência, de um mundo que acreditávamos justo, no qual os bons e os maus conheciam o seu lugar e não desejavam outro –, entre faltas às aulas, muros de tijolo como esconderijo e arbustos que tornavam quase selvagem o cenário em que elas tinham lugar. Como acontecera com Zane, ao mesmo tempo dentro e longe das pradarias desejadas enquanto territórios de aventura.

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                          Edith e Zé Manel

                          Edith Piaf

                          Na viragem para a década de 1970 tornou-se muito popular em França uma cantora que os jornais consideravam «a nova Piaf». Mireille Mathieu tinha de facto uma voz interessante, num registo gutural próximo daquele que caracterizara Edith Piaf, e quem a ouvisse cantar num vulgar rádio de pilhas em onda média, ou numa longínqua instalação sonora de festa de aldeia, facilmente confundia a sua voz com a da intérprete de Non, je ne regrette rien. Mas quando se prestava maior atenção à pessoa, à música e ao tom, as diferenças tornavam-se flagrantes. O aspecto de jovem perfeita, asseada e bem comportada, o conteúdo açucarado do seu repertório, e principalmente a ausência daquele pathos que caracterizava a minúscula Edith e a tornava um animal de palco, mostravam imediatamente as debilidades de Mireille. Por isso ninguém se espantou verdadeiramente quando ela desapareceu de cena. Lembrei-me desta distância entre a Piaf e a sua cópia após ler a notícia sobre a confirmação de José Manuel Durão Barroso no segundo mandato como presidente da Comissão Europeia. Confrontando a sua presença medíocre e o discurso apenas melífluo e de circunstância com os de Monsieur Europe, o socialista Jacques Delors, uma personalidade forte que chefiou a Comissão entre 1985 e 1995 e fez com que a voz europeia fosse ouvida e respeitada muito para além do perímetro de Bruxelas, vemos como foi rápida a passagem do original para a sua indigente cópia.

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                            Bandeira vermelha com banda sonora

                            Bandeira Vermelha

                            O Bloco fica-se e o PCP avança em «Um neo-reformismo de fachada socialista». Teoria de altíssima densidade, mes amis. Estão a ver as coisas agora um pouco melhor? Só falta falar – mas está quase tudo lá – da «cobardia que se encobre na bravata verbal», da embriaguez da «própria concepção do poder do verbo»,  de «sentimentos e ambições de classe», de «aliança objectiva com o capital», de «desligação das massas populares» ou de «perda de contacto com a classe operária». Apenas algumas das centenas de expressões de idêntico teor utilizadas por Álvaro Cunhal no recuado Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista, um livro de 1971, para tratar dos «esquerdalhos e outros bandalhos». Como se escreve no prefácio à 3ª edição, publicada já depois do 25 de Abril, «a luta ideológica e política contra o radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista não terminou com o derrubamento da ditadura (…), conserva plena actualidade». E dura, e dura, e dura.

                            [audio:http://aterceiranoite.org/sons/Samba De Uma Nota So.mp3]
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