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Política à esquerda e proximidades

Apesar de ter sido curta a militância a que posso chamar partidária – só entre os finais de 1970 e meados de 1977 – creio que me interesso militantemente por política desde os 13 anos, quando, talvez sem compreender muito bem o enredo em que me estava a meter, consegui convencer os colegas de turma do antigo 3º ano do liceu a não irem aplaudir um ministro de Salazar de visita à escola. Daí até hoje já passaram mais de cinquenta anos, e nem por um só momento – antes, durante e depois do 25 de Abril – deixei de «militar» na área da esquerda, a favor de causas que me têm parecido justas, urgentes ou eticamente necessárias. Todavia, essa militância teve sempre, nas suas diferentes fases, um traço comum: ser um espaço de aproximação aos outros, fossem estes aqueles que eram os companheiros e as companheiras do combate do momento, ou os que se inscreviam no dever de solidariedade para com os cidadãos aos quais este dizia respeito. Jamais um lugar para odiar quem, estando no essencial do mesmo lado da barricada, de mim discordasse.

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    O Bloco e uma dor partilhada

    Ao contrário do habitual, esta crónica inclui uma forte componente pessoal, partindo da posição adotada pelo Bloco de Esquerda ao rejeitar o Orçamento de Estado. Sei que o essencial do que vou referir, em especial a identificação de um sentimento de perda e de uma desilusão, está a ser partilhado por um bom número de homens e de mulheres que mantiveram as mesmas expectativas, agora perdidas ou em vias de o serem. 

    Nunca fui militante do Bloco. Em 1999, o ano da fundação, era apenas mais um daqueles milhares de cidadãos, politicamente empenhados desde os anos da ditadura e da revolução, então conhecidos como «independentes de esquerda». Foi nessa qualidade que participei em reuniões ligadas ao processo de formação do partido. Não me tornei militante porque de há muito compreendera não ter temperamento para a disciplina partidária, que tantas vezes impõe o silêncio da dúvida e da crítica, mas passei desde aí a colaborar com o novo partido, participando como «companheiro de jornada» em muitas das suas iniciativas.

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      Equivocados

      Deparo nas redes sociais com posts de amigos do Bloco e do PCP, para quem a fé move montanhas, que entre artifícios de demagogia e malabarismo se esforçam por mostrar que os problemas criados com a votação do Orçamento ao lado da direita e da extrema-direita são praticamente inexistentes. Quanto muito, serão um mal que vem por bem. Para eles, o que aconteceu a 27 de outubro foi pois da exclusiva responsabilidade do PS, esse partido «de direita» que «só pretendia eleições antecipadas» (sic). Além disso, os inúmeros apoiantes e votantes seus que se estão a mostrar incrédulos, indignados e desiludidos – bem mais do Bloco que do PCP, por razões sociológicas e políticas conhecidas – não estarão é a entender patavina da estratégia aplicada. Nas palavras desses amigos, o crescimento eleitoral será mais que seguro e tudo se irá resolver lá para janeiro, pelo que a história os absolverá. Quem não perceba isto só pode ser gente de má-fé, pouco inteligente ou crédula. Tudo isto é triste e tudo isto existe, embora não seja fado.

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        Mitografias, certezas e insónias

        Seja ele o passado, o presente ou um idealizado futuro, não podemos viver sem ficções do real que recorrem a mitos. A definição de mito – os relatos fantásticos que deram significado à vida quotidiana da Grécia antiga serão sempre o seu modelo primordial – é complexa e cheia de sentidos; todavia, para o que aqui importa, destaco dois que constam do Dicionário Houaiss: «a construção mental de algo idealizado» e, a ela ligado, «um valor social ou moral (…) decisivo para o comportamento dos grupos humanos em determinada época». O mito é, pois, indispensável para o funcionamento das sociedades humanas, ao participar como peça nuclear na construção da sua coerência e dos diferentes sentidos de pertença de quem as habita. As mitografias, por sua vez, juntam constelações de mitos, com eles compondo modos sistemáticos de representar o mundo.

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          Atualidade, Democracia, Etc., Memória, Olhares, Opinião

          Exercícios de estilo

          Tenho dito e escrito isto em diversos lugares e diferentes momentos: aquilo de que mais gosto quando leio um texto de não-ficção (alguns de ficção também) é de pensamento complexo expresso de forma clara e razoavelmente transparente. É claro que quando falo de pensamento complexo não me refiro a juízos crípticos, mas a raciocínios que não são meramente lineares, de mera causa-efeito. E que quando falo de formulações claras, não estou a falar de discursos simplórios, expectáveis e cravados de clichés.

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            Apontamentos, Devaneios, Olhares

            Gil, Caetano e a Internet

            Em 1996, Gilberto Gil cantava entusiasta «Eu quero entrar na rede / Pra manter o debate / Juntar via Internet / Um grupo de tietes de Connecticut». E mais adiante: «Quero entrar na rede pra contactar / Os lares do Nepal, os bares do Gabão». Há vinte e cinco anos eram muitos, entre os otimistas e atentos à mudança, aqueles que partilhavam uma relação confiante com a Internet como ferramenta de conhecimento e informação, mas também como veículo de democracia e da luta social. Já em «Anjos Tronchos», tema agora lançado, Caetano Veloso proclama sombrio: «Agora a minha história é um denso algoritmo / Que vende venda a vendedores reais / Neurônios meus ganharam novo outro ritmo /E mais, e mais, e mais, e mais, e mais», lembrando que, «vindo desses que vivem no escuro em plena luz (…) um post vil poderá matar».

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              Apontamentos, Cibercultura, Democracia, Etc., Olhares, Opinião

              Livros, lixo e crítica no campo da história

              Tenho desde há anos, como colaborador do Plano Nacional de Leitura, agora destinado a leitores de todas as idades, avaliado parte considerável dos livros publicados em Portugal no campo da história, ou que com esta confluem. Este trabalho tem-me dado uma boa panorâmica da edição neste domínio, seja de autores nacionais ou em tradução. Todavia, o aspeto positivo que representa a elevada quantidade dos títulos é contrariado pela baixa qualidade de uma parte significativa deles, principalmente da responsabilidade de portugueses. Esta é particularmente manifesta entre os que não são academicamente validados ou escritos por historiadores profissionais – o que também não é sempre atestado de qualidade –, dependendo apenas de um acordo entre autor e editor. Vejo três grandes problemas.

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                História, Leituras, Olhares

                Gramática das gerações

                Todos temos a noção da existência de declives, ou mesmo de despenhadeiros, entre o que vulgarmente chamamos gerações. Os historiadores sabem-no ainda melhor, dado que, para além da perceção empírica comum a toda a gente, desenvolvem todos os dias um trabalho de compreensão mais alargado, comparativo e situado numa escala longa do tempo. Conhecem bem, a par sobretudo dos sociólogos e dos antropólogos, o modo como esta transformação sofre hoje uma espécie de expansão geométrica, conduzindo esta a que o que se designa «salto geracional» seja cada vez mais curto. O que outrora demorava milénios a mudar, passou a levar séculos, depois décadas, mais recentemente apenas alguns anos, cada vez menos.

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                  Apontamentos, Atualidade, Olhares

                  Vinte vezes 11 de setembro

                  A impressão dominante que produz em muitos de nós esta passagem dos vinte anos sobre o 11 de setembro de 2001 – «esta comemoração», como de forma absurda se dizia ontem numa televisão – é a de incredulidade. Desde logo por terem passado tão rapidamente duas décadas sobre um momento que parece ter ocorrido há apenas alguns meses, mas também pelo caráter intensamente plástico do acontecimento. Cujas imagens, sobretudo aquelas que se ligam ao derrube do World Trade Center e ao intenso drama humano então ali vivido, ainda hoje contêm algo irreal, como uma ilusão cinematográfica produzida com recurso a efeitos especiais. Existe, todavia, uma outra dimensão, que remete para uma realidade agora muito presente na qual permanecemos inequivocamente mergulhados: a de um mundo inseguro, onde os equilíbrios relativamente estabilizados do tempo da Guerra Fria deram lugar a um mapa pós-apocalíptico, dentro da qual os fatores de instabilidade, de incerteza e de perigo se multiplicaram, ampliaram e todos os dias desdobram.

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                    Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

                    Nostalgia e passadismo

                    Todos/as temos passado e só quem tenha problemas sérios de memória ou seja mesmo completamente tonto o pode rejeitar de forma absoluta. Somos sempre, e somos bastante, também aquilo que fomos. Além disso a nostalgia – conceito sobre qual tenho trabalhado profissionalmente nos últimos tempos – não é apenas uma tristeza causada pelo distanciamento de algo que vivemos, nomeadamente na nossa juventude, nem sequer um mero estado melancólico causado pela ausência de algo que somos capazes de identificar. Na verdade, pode também ser uma forma positiva de uso do passado, servindo este uso, ou parte dele, para alimentar e dinamizar a nossa própria vida, seja ela a pessoal ou a coletiva. O conceito de «melancolia de esquerda», divulgado pelo historiador Enzo Traverso, aponta nesta última direção, sublinhando o papel politicamente positivo de determinados aspetos ou episódios vividos ou herdados.

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                      Atualidade, História, Memória, Olhares

                      Os populismos e o mundo «a partir do sofá»

                      Os populismos, sejam os associados a diferentes ditaduras do século passado, ou aqueles que ocupam um lugar de destaque nos sistemas políticos contemporâneos, incluindo nestes os que parasitam hoje a democracia representativa procurando transformá-la em «iliberal» – um oximoro difundido pelo primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán – são mais habitualmente conotados junto da opinião pública com a extrema-direita política. A sua proposta formal de superação do fosso existente entre a elite e o povo não é, sob essa perspetiva, senão uma tentativa de aprisionamento deste último por parte de um grupo que proclama falar em seu nome justamente para lhe retirar poder e ter condições para agir de forma autoritária e completamente arbitrária.

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                        Democracia, Etc., Olhares, Opinião

                        Apontamento quase autobiográfico

                        Com algum trabalho de memória para fixar a data, creio poder dizer com segurança que desde 1966 pertenço à grande família política da esquerda. Ainda que de início essa ligação envolvesse mais uma difusa consciência de pertença, nascida num rapaz que estava a começar a quebrar os laços com a sua fé e com a autoridade incontestada, que de um empenho consistente, para o qual, aliás, não tinha idade, experiência, contactos ou leituras. O grande momento de viragem foi, disso já de há muito tenho a certeza, duplamente vivido no ano de 1968, com os acontecimentos de Paris e de Praga, determinantes para perspetivas e escolhas que me moldariam para sempre. De seguida, passando pelos anos rápidos e intensos do marcelismo e da Revolução de Abril, e depois sensivelmente até 1981, foi um trajeto heterodoxo, com uma fase inicial libertária e radical, de seguida mais organizada e razoavelmente consistente.

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                          Perspetivas do poder local em ano de eleições

                          O poder local sinaliza muito do que de melhor produziu a nossa democracia com um historial agora de já perto de meio século. É também uma das áreas da coisa pública onde mais facilmente se podem encontrar marcas de bloqueio e insuficiência. Em ano de eleições para as autarquias, faz sentido projetar uma breve visão panorâmica desta componente fundamental da nossa vida coletiva. Ultrapassadas que foram as intensas, embora fugazes, experiências de democracia direta que foram ensaiadas durante o biénio revolucionário de 1974-1975, aquela que mais perto se encontra do cidadão comum, afetando o seu dia-a-dia, as suas escolhas e as suas expectativas.

                          Comecemos pelo início. Durante a ditadura, aquilo a que chamamos hoje poder local era limitado por pesados constrangimentos. Desde logo por não ser democraticamente eleito, sempre sujeito a nomeações governamentais, atribuídas apenas a pessoas fiéis ao regime e provindas das elites. Depois, porque tinham um âmbito de intervenção restritíssimo, diretamente subordinado à orientação, à autorização e à vigilância do poder central, intermediado pelos antigos governos civis. Além disso, dependiam nas suas iniciativas de um apertado regime de influências, sendo a obra realizada, para além de muito limitada na comparação com os projetos que conhecemos hoje, em regra atribuída ao favor de um governante ou à dádiva de um benemérito, cujo nome ficava associado ao melhoramento. 

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                            Democracia, Olhares, Opinião

                            Esquecimento e desfiguração da memória da democracia

                            Num dos últimos livros que escreveu, La mémoire, l’histoire, l’oubli(2003), Paul Ricoeur falava da possibilidade de a memória permitir aceder, não a uma revisitação ou a uma réplica, mas a uma reapropriação lúcida do passado, mesmo daquele mais afastado ou ao qual se encontrasse ligada uma forte carga traumática.

                            Destacava também o poder do esquecimento, na sua capacidade para soterrar boa parte de tudo o que aconteceu, mas também na intervenção que detém na seleção, sempre parcial e fragmentária, daquilo que se considera ser merecedor de memória. Ao constatar a impossibilidade real de tudo recordar, Ricoeur vincava o caráter seletivo da memória, concluindo ser a capacidade de esquecer um dos fatores que permite reaver parte do vivido.

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                              Democracia, Ensaio, História, Leituras, Memória, Olhares

                              O «novo normal» de agosto

                              Desde que tenho a profissão que tenho, com horários maleáveis, mas extensos e jornada de trabalho sempre a rondar as 60 horas semanais, muitas vezes sem fins de semana, feriados e boa parte das férias, tento viver o mês de Agosto de forma tranquila, cortando as amarras físicas com o espaço habitual de trabalho e fazendo por viver num regime mais livre, ainda que cumprindo muitas vezes extensas jornadas de leitura e escrita. Na verdade, são parte do que sou e do que faço desde muito cedo, e por isso não as tomo como um fardo. Conheço muitas pessoas que durante bastante tempo foram agindo de uma forma análoga, fazendo do Agosto sempre um tempo de descanso e respiração. As circunstâncias ajudavam, pois também ninguém ia exigir de mim, ou de nós, que durante esse mês investíssemos em algo que nos impedia de fruir esse pulmão.

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                                Otelo essencial

                                Como quase toda a gente saudável de espírito, ao longo da vida pública e pessoal Otelo Saraiva de Carvalho (1936-2021) foi por vezes algo contraditório. Teve um trajeto de vida complexo, sempre pautado por uma entrega muito grande às empreitadas em que se foi metendo. Daí também os erros cometidos: uma ou outra frase menos pensada pronunciada durante o PREC, a associação ingénua, na ressaca do 25 de Novembro, a um radicalismo político que interpretava como mal necessário, algum momento de desencanto mais para o final da vida. Mas foi sobretudo um dos estrategos essenciais da vitória do 25 de Abril, que comandou do posto instalado no Quartel da Pontinha, para além de homem de um romantismo profundo, o que é sempre marca de convicção e entrega, como mostrou muitas vezes. Talvez uma das imagens que melhor pode ser olhada como sinal do seu legado seja este blusão militar com os galões de major, aquele que usou na madrugada libertadora de Abril e que doou ao Centro de Documentação 25 de Abril. [Fotografia Coolectiva]

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                                  Conhecimento do passado e democracia

                                  A produção e a perda da memória são fenómenos inerentes à vida de todos os dias, seja esta individual ou coletiva. Não se considera aqui o processo essencialmente biológico, traduzido na capacidade humana para recordar experiências anteriores inserindo-as numa narrativa, que a passagem do tempo tende a deteriorar, ou por vezes a embelezar, referindo-se antes o eterno fenómeno da evocação memorial do passado. Ao contrário da história, que é um saber analítico associado a rigorosos meios de prova, contendo uma forte componente de objetividade e segurança, a memória, encarada nesta segunda perspetiva, é em larga medida uma construção livre, subjetiva, ancorada em evocações que chegam, se transformam e logo partem, sempre pautadas por uma dose de incerteza.

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                                    O caráter caduco da tradição

                                    Encontrei hoje em artigo de jornal, uma vez mais, o uso do conceito de tradição a servir como argumento de autoridade para justificar uma dada escolha. De acordo com esta maneira de pensar, isto ou aquilo é bom, ou está certo, ou é adequado, ou deverá acontecer, porque se inscreve numa sequência que se crê repetida. Ao invés, para quem segue esta lógica, uma determinada escolha deverá ser modificada, ou mesmo rejeitada, porque se manifesta «contra a tradição». Como se sabe, o termo tradição vem do latim traditio, que tem o significado de «entrega» ou «passagem de testemunho», e integra a transmissão social, realizada dentro de um mesmo tempo ou passada de geração em geração, de determinados costumes, comportamentos, hábitos, memórias, rumores, crenças ou lendas. 

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