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O sufixo «-ite» e a vida social

Na linguagem utilizada pela ciência médica, o sufixo «-ite» aplica-se em regra a uma doença, à inflamação de um determinado órgão ou à falha de uma estrutura anatómica. Por analogia, ele costuma ser usado também para referir uma certa deterioração do funcionamento associada a atitudes de natureza social ou política que, sob determinadas circunstâncias, assume em alguns indivíduos uma dimensão que pode ser tomada como patológica. Vou referir-me aqui a duas delas, numerosas vezes associadas a uma apreciação pública muito negativa de dadas formas do comportamento pessoal: a «clubite» e a «partidarite».

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    A Fronda dos adeptos

    Quem não dá a menor importância ao futebol provavelmente não terá percebido o que aconteceu nos últimos dias no mundo peculiar que ele agrega. Goste-se ou não deste desporto – sou dos que gostam, e muito, apesar de lhe reconhecer bastantes aspetos condenáveis e de detestar a «clubite» – ele moveu e move largas centenas de milhões de pessoas, homens e mulheres de todo o mundo, de todas as crenças, de diferentes convicções, em grande parte motivadas por uma componente de prazer e de paixão que sempre o associa ao que de melhor essas pessoas vivenciam e esperam. Já uma vez dei este exemplo, para mim inesquecível: alguém que acompanhei até ao fim da vida e que, no último dia, me pediu um cigarro e que lhe dissesse qual o resultado do jogo de domingo do seu clube do coração.

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      Palavras da indiferença

      Um certa frase anda a ouvir-se muito por aí, em regra para marcar um fim de conversa. É uma daquelas que não passa de modismo, mas que quando emerge, como acontece com todos os modismos, ecoa uma tensão existente. «É o que é!» constitui a expressão acabada do conformismo, da predisposição, hoje dominante, para considerar, ou aceitar, que existem – na vida pessoal, como em todas as sociedades – forças às quais não é possível resistir, não valendo a pena sequer tentá-lo. Como o «there is no alternative», o conhecido TINA, divulgado nos idos de 80 por Margaret Thatcher, que dessa forma conclamava os cidadãos a conformar-se, aceitando como inevitáveis e impossíveis de alterar as dinâmicas de servidão impostas pelo neoliberalismo. «É o que é!», ainda que pronunciada sem pensar, é, de facto, uma aberração, que pretende banalizar a mansidão e a indiferença. Porque, eis outra frase de sentido análogo, «o que tem de ser, tem muita força».

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        Panfletarismo e dinâmicas da cidadania

        O uso do panfleto na atividade política pode ser de grande importância. O apoio veemente e persistente a uma causa, a uma doutrina ou a uma campanha, que ele geralmente serve, é imprescindível para que estas possam transcender o pequeno círculo de seguidores e obter uma ressonância acrescida. Desta forma se fomentam as dinâmicas da cidadania, que não existem sem um apelo claro e sonoro à participação. Todavia, se este esforço não for exercido de uma maneira equilibrada, se tiver um formato excessivo, repetitivo ou enfadonho, torna-se praticamente ineficaz, podendo mesmo produzir um efeito oposto ao pretendido.

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          Curar o cansaço em In Guezzam

          Como acontece com boa parte das pessoas com quem me relaciono nos espaços de sociabilidade que nos últimos tempos, devido às circunstâncias, mais tenho frequentado – como o Zoom que se multiplica por si só, o Email que jamais vai ao zero, o Instagram, o Twitter, o Messenger, o WhatsApp, o Doodle, o Academia.edu ou o Facebook, esses lugares onde é possível sentir por estes dias o rumor crepitante das multidões – tenho experimentado um cansaço constante, determinado pela progressão geométrica de trabalho a eles associada.

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            Patriotismo bacoco e pedra na mão

            Que fique bem claro: estes dois parágrafos não são sobre um futebolista ou sobre futebol. Justamente um dos três temas, a par da existência de deus e do policiamento da língua, sobre os quais seja onde for eu evito escrever ou mesmo falar muito, dado facilmente transformarem pessoas pacíficas em animais irracionais e de dentes aguçados. Tem como motivo, todavia, um episódio recente que com a referida modalidade se relaciona. Liga-se com a situação vivida no final do desafio Sérvia-Portugal, quando, após erro notório e com consequências para o resultado da responsabilidade do árbitro da partida, Cristiano Ronaldo se irritou bastante, atirando ao chão a braçadeira de capitão enquanto abandonava o relvado. Foi o que bastou para que meio país agarrado às redes se indignasse. Não tanto com o holandês Danny Makkelie, o descuidado juiz da partida, mas com o conhecido craque, por alguns acusado de «ter insultado um símbolo nacional» (sic). Relevo a ideia estúpida que leva a considerar uma tira de pano azul com um C de capitão bordado a branco como um «símbolo nacional» e penso antes numa situação bastante doentia que é recorrente nas redes sociais.

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              Marx (Groucho ou Karl) e o ABC

              Ao contrário do que o título em epígrafe pode sugerir, este texto não é sobre o dichote surgido e propagado na segunda metade do século XX, segundo o qual quem o proferia se declarava «marxista, mas da tendência Groucho». Talvez alguém capaz de afirmar, como o Marx nova-iorquino mais velho, mano de Harpo, Chico e dos outros dois, que «estes são os meus princípios, mas se eles não vos agradarem, tenho outros». Há quem o ligue a frase às pichagens situacionistas do Maio de 68, ou então aos efervescentes meandros do marxismo heterodoxo e da «nova esquerda» expandidos a partir dos meados da década de 1950. Porém, tanto quanto sei, não existem certezas sobre quem se lembrou de o dizer pela primeira vez. Aliás, nem isso interessa muito no caso aqui em apreço.

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                As sondagens e o dever da esquerda

                Até há pouco a generalidade dos cidadãos, democratas ou não, vivia uma ilusão que tomava por realidade. Ela assentava na convicção de não existir espaço em Portugal para a afirmação política de uma extrema-direita com vocação de poder ou sequer visibilidade. Prendia-se também com a quase certeza de que, com as conquistas sociais e políticas trazidas pela democracia, a sua emergência jamais seria possível fora dos apertados círculos compostos por indivíduos saudosos do antigo regime, ressentidos ou automarginalizados. Mesmo após o início da nova vaga de acensão, por todo o mundo, de governos, partidos e movimentos daquela natureza, continuou a crer-se que se tratava de algo momentâneo e distante. 

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                  Bella Ciao, Marco Paulo e a memória

                  Pensei que se tratasse de brincadeira quando alguém me disse que Marco Paulo tinha gravado uma versão do ‘Bella Ciao’. Temi, naturalmente, o pior. Não por ter sido o cantor a fazê-lo – dentro do género, até será dos mais profissionais dos «artistas» -, mas porque, com forte grau de probabilidade, dado o estilo totalmente despolitizado dos temas que canta, este iria desvirtuar o sentido de uma canção de profundo significado na história e na memória cultural do antimilitarismo e do antifascismo. Na minha própria memória pessoal, como na de várias gerações de outros homens e mulheres que participaram na resistência à ditadura, ela é recordada em associação com momentos nos quais funcionou como instrumento de incentivo ou de encorajamento.

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                    Academia e estultícia

                    Jamais alguém me ouviu defender a academia ‘per se’. Bem pelo contrário, sendo académico de condição completaram-se quatro décadas em novembro último, sempre tive com um ambiente universitário autocomplacente e corporativo (e ele existe, sem dúvida, oh se existe) uma relação, digamos, complicada. Talvez um dia me dê para dela fazer um balanço. Mas posso dizer desde já que, na vida profissional, procurei sempre combinar a «solidariedade institucional» com a liberdade crítica. Com alguns dissabores, naturalmente, mas cada um, ou uma, «é para o que nasce». Isto significa que procurei sempre ser solidário como o que a academia, e em particular o meio universitário, têm de bom – que é muito, que será mesmo a maior parte (fala quem conhece) -, contestando ou rejeitando aquilo que há a contestar ou a rejeitar.

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                      Uma ferramenta de liberdade e inovação

                      Foram os filósofos Michel de Montaigne e Francis Bacon, no final do século XVI, a projetar o ensaio como género literário. No livro sobre o humanista francês que publicou quando a guerra iniciada com a agressão nazi arrasara já o mundo de progresso material e pluralismo que conhecera durante a juventude em Viena e Berlim, Stefan Zweig salientou que Montaigne, mergulhado numa sociedade também ela dominada pelo ódio e pela intolerância, escolhera essa forma de escrita como modo de resistência. Para escapar às «exigências tirânicas» impostas pelos grandes poderes, para se proteger «contra a submissão a regras e a medidas ditadas do exterior», começou a escrever de acordo com a sua própria consciência. Tratava-se de «tentativas», de formas de descrever e de interpretar o seu mundo sem delas procurar fazer doutrina.

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                        O alerta da desconfiança

                        Não me custa reconhecê-lo: sou viciado em informação. Talvez isso se deva em boa parte a ter aprendido a ler pelo jornal, ao colo do meu avô, nessa época correspondente local do Diário de Notícias e leitor aos fins de semana d’O Primeiro de Janeiro, ou por o meu pai ter o hábito de trazer para casa dois diários, por vezes três. Gosto de pensar que assim é também por escolha pessoal: graças a ter crescido num lugar onde não se passava nada e era preciso levantar o pescoço para espreitar o que acontecia mais além. A generalização da televisão, mesmo a censurada, ajudou bastante a ampliar esse olhar. Depois, o telejornal da noite tornou-se horário sagrado nas casas que fui habitando. A rádio, de início em onda média ou curta, ajudava também. Mais tarde, quando passava férias longe de algum quiosque, todos os dias conduzia vinte ou trinta quilómetros, sem pestanejar, só para poder comprar o jornal. E fui praticamente pioneiro da Internet, que comecei a usar regularmente logo em 1993.

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                          Raios de sol

                          Todos conhecemos a expressão recorrente, aplicada a alguém que reencontramos e desejamos elogiar, que diz ser essa pessoa «como o vinho do Porto, quanto mais velho, melhor». Ou seja, que nos parece estar muito bem, talvez melhor do que esperávamos. Quem percebe de vinhos sabe que a qualidade do Porto não depende necessariamente (ou apenas) da idade que tem; a ideia que a frase incorpora, todavia, aplica-se a muitos casos reais. Homens e mulheres a quem os anos foram, de forma visível, apesar das rugas e dos cabelos brancos, melhorando a inteligência, o discurso, a forma de estar, o saber, a sageza política, a tolerância, por vezes até a beleza ou a capacidade de sedução. Todos conhecemos casos destes, felizmente. Gente que um dia vimos baça, tímida, sem voz, e que hoje brilha pelo que é ou pelo que faz.

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                            Orwell, 1984 e a pandemia

                            A obra de George Orwell, desde os ensaios e artigos na imprensa aos romances, manteve sempre, do processo de criação ao impacto da publicação, um vínculo fortíssimo com a atualidade. A que acompanhou a vida do autor, mas também aquela que foi tendo lugar nas décadas que se seguiram e se desdobraram até ao presente. A força deste elo nunca foi, todavia, tão evidente como com os dois romances finais, os mais conhecidos e editados: A Quinta dos Animais (em Portugal traduzido também como O Triunfo dos Porcos), de 1945, e 1984, saído em 1949, poucos meses antes da morte de Orwell. Em particular com o segundo, que superou a conceção alegórica do primeiro, limitado no essencial a um universo não-humano, onde os animais eram «todos iguais, embora alguns mais iguais que os outros». 1984 foi, de facto, construído como uma distopia humana, tendo como referente medos, realidades e conflitos que na época inquietavam o mundo. 

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                              «Conselheiros» que não aprendem

                              Desde que sou capaz de me recordar de interpretar as relações com os outros, sempre detestei que me «dessem conselhos». Ou, em sentido inverso, de ser eu a dá-los. Quando sinto que, por distração, tique ou cansaço, o estou a fazer, tento logo moderar o tom e mostrar que o que digo é apenas uma possibilidade, de modo algum algo de absolutamente certo e definitivo. Isto nada tem a ver com aprender com os outros, com a própria experiência, com a partilha de ideias, com a hipótese de mudar uma posição por influência alheia e com a necessidade de saber sempre mais. Tendo nascido e sido criado durante o Estado Novo, foi tempo demais a receber «conselhos», apresentados, aliás, como normas.

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                                Alusão e cultura geral

                                Como sabe quem escreve com regularidade textos que contêm uma dimensão literária – sobretudo se estes forem de opinião ou de ficção, seja no romance ou na poesia –, uma das técnicas a que recorre muitas vezes é a alusão. Falo do recurso estilístico pelo qual se faz referência direta ou indireta a uma pessoa, a uma situação, a um livro, uma peça musical ou um filme, contendo uma carga simbólica ou representativa que se pressupõe seja do conhecimento do leitor e por este percebida. Faço isto muitas vezes e posso dar como exemplo uma linha de comentário publicado há pouco a acompanhar uma fotografia de ocasião. Quando nela escrevi «finalmente sábado» estava, como muitos e muitas notaram, a aludir a Finalmente Domingo (Vivement dimanche), o título do último filme de François Truffaut, estreado em 1983. E também ao próprio filme.

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                                  O erro da obsessão antiamericana

                                  Após a primeira tomada de posse de Barack Obama, a forte dimensão simbólica de teor emancipatório que representava, a sua integração no combate pelos direitos cívicos, vinda dos anos cinquenta, foi insuficiente para que sectores associados à esquerda mais ortodoxa lhe dessem o benefício da dúvida, começando de imediato a erguer a voz contra o que nesse momento materializava um forte sinal de esperança para o povo americano e boa parte do mundo. Assim voltou a acontecer agora, a partir do próprio dia da tomada de posse de Joe Biden e Kamala Harris. Mesmo ocorrendo esta numa altura crítica, quando os Estados Unidos enfrentam a dupla e grande ameaça, herdada dos anos de Trump, expressa na ausência de uma política coerente contra a pandemia e na iniciativa agressiva da extrema-direita e do suprematismo branco.

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                                    O título deste artigo recupera o de uma das mais influentes obras de Alexis de Toqueville, A Democracia na América, publicada em 1835 e escrita após o périplo pelos Estados Unidos que o filósofo, historiador e diplomata francês levara a cabo quatro anos antes, no tempo do presidente democrata Andrew Jackson. Apesar da sua origem aristocrática, Toqueville era um ardente defensor dos ideais de democracia e de liberdade, tendo procurado com o livro dar a conhecer aos seus compatriotas o exemplo de um sistema político que via como avançado. As caraterísticas que mais o surpreenderam durante a viagem foram, por um lado, a forte dimensão de separação e de equilíbrio dos poderes legislativo, executivo e judicial, e, pelo outro, a forma comprometida como muitos cidadãos comuns se interessavam genuinamente por debater os temas que a todos diziam respeito. Fala mesmo de ter assistido a um «permanente tumulto», devido a muitos americanos se empenharem naturalmente em «tomar parte do governo e discutir as suas medidas».

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