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Banalidades necessárias

Mais uns quantas banalidades. Banalidades necessárias, porém, dado corresponderem a evidências que, justamente por o serem, com frequência acabam esquecidas. O uso da expressão «isso já se sabe», tantas vezes escutada sempre que alguém procura lembrar ao cidadão comum alguns princípios, verdades e lógicas que convirá não esquecer, corresponde sempre a uma combinação de arrogância e de descaso. De arrogância quando exprime uma rejeição do senso comum, sempre indispensável à vida coletiva, embora tantas vezes esquecido. E de descaso quando traduz o encerramento de quem a expressa na sua pequena bolha. A dos que «já sabem» e preferem não tocar no assunto porque isso os aproxima de uma vulgaridade que abominam.

Isto vem a propósito de uma experiência constantemente partilhada no contacto com os outros, em particular com quem assume posições públicas, seja a que escala for. A experiência de quem prega a justiça, a ética e a coerência, mas apenas em abstrato, jamais as aplicando à sua própria vida, à relação empática com os outros, ou à apreciação do comportamento objetivo do seu grupo ou da sua família política. Encontra-se por todo o lado, bem sei, mas na direita, estruturalmente assente na defesa do individualismo, da ordem e da desigualdade, acaba por ser uma contradição «natural». Nela bem menos chocante, afinal, do que quando ocorre entre pessoas situadas no espectro da esquerda, que é, ou deverá ser, tendencialmente solidária, igualitária e justa.

    Apontamentos, Democracia, Etc., Olhares

    Dois postais de bom ano | 1º Postal

    No último dia de 2013 publicava aqui um postal, a acompanhar os habituais votos de bom-ano, onde se misturavam em dose desequilibrada a esperança e o desânimo. Nessa altura, estávamos no pico da atuação do governo PSD/CDS. Aquele, convém não esquecer, que então respondeu à crise global do capitalismo e dos mercados reduzindo dramaticamente as condições de vida dos trabalhadores – em particular os da função pública e os aposentados -, diminuindo-lhes ou retirando-lhe direitos com décadas de conquista, cortando feriados, forçando muitos milhares de jovens com formação elevada a sair de Portugal, submetendo-se a todos os ditames dos agentes do neoliberalismo que regiam os destinos da União Europeia, colocando o país de mão-estendida perante os outros. Ao mesmo tempo que prometia um crescimento económico assente principalmente na redução do consumo e na exploração do trabalho.

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      Apontamentos, Devaneios, Etc., Olhares

      Nem sacerdote, nem anjo

      Como historiador profissional que ao mesmo tempo tem uma intervenção pública regular enquanto cidadão e não separa com um cordão electrificado as duas qualidades, de tempos a tempos encontro sempre alguém que, ao discordar de uma opinião que possa ter expresso, justifica essa discordância associando, a razões ou desacordos inteiramente legítimos, uma frase que integra um juízo de valor inaceitável: «parece impossível um historiador escrever isto». Não porque eventualmente tenha expresso algo de errado ou de impreciso do ponto de vista do conhecimento do passado, mas porque a pessoa que emite esse juízo chama à colação uma certa ideia de historiador que o desqualifica se ousar sujar as mãos na realidade do mundo em que vive. Como se fosse um sacerdote, um etéreo oficiante do passado, que teria o dever de se desvincular inteiramente do presente, ainda que muitas das opiniões que neste campo emita o possam ser na sua qualidade de cidadão, não de profissional do «métier».

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        Apontamentos, Etc., História, Olhares

        A ignorância é atrevida e perigosa

        Tem corrido nos jornais e nas redes sociais uma controvérsia, mais uma, que envolve declarações do conhecido jornalista e responsável por romances de sucesso popular José Rodrigues dos Santos (JRS). Não irei repetir factos e argumentos que a integram e que podem ser facilmente encontrados por quem os desejar conhecer. Direi apenas que ela começou com o que JRS disse durante uma entrevista de promoção do seu último livro na RTP1, e depois repetiu num «esclarecimento», a propósito do caráter supostamente humanitário do gaseamento dos judeus nos campos de concentração e de extermínio nazis. Também não irei preocupar-me com o préstimo literário do autor – questionado por tantos, entre os quais me conto, mas também apreciado por muitos outros –, o que me levaria a um argumento bem diverso daquele que escolhi para esta crónica. Aquilo em que vou insistir, a partir deste exemplo, é no perigo que representa a manifestação da ignorância, em regra acompanhada pela manipulação da ignorância dos outros, por parte de pessoas que detêm um lugar de reconhecimento público. 

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          Etc., Ficção, História, Memória

          Pio IX e a Imaculada Conceição

          Foi em 8 de dezembro de 1854 – há 166 anos, e não «há sete séculos», como hoje pude ler, embora na altura tenham sido invocadas referências bíblicas e dos primeiros textos da Patrística como justificativas para a decisão – que na bula Ineffabilis Deus o papa Pio IX proclamou o dogma da Imaculada Conceição. Basicamente, este dogma considera a concepção da Virgem Maria, «cheia de Graça», como ocorrida sem a mácula do pecado original, na qualidade de um sinal da intervenção da providência divina e de precaução para preparar, através de uma linhagem que fosse pura, a vinda de Cristo.

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            Apontamentos, Etc., História, Olhares

            Avatares da bibliometria

            Como muito bem sabe quem circula pelo mundo académico, a bibliometria, tendo surgido por algumas boas razões – nomeadamente para tentar impedir que certas pessoas progredissem na profissão sem provas dadas, apenas por antiguidade ou por esquemas corporativos de proteção – transformou-se numa doença. Acabou por fazer inverter, no prestígio e valorização da produção científica, a relação entre a qualidade e a originalidade, de um lado, e a quantidade e a mimetização, do outro. Hoje em dia, e por este motivo, a maioria dos investigadores preocupa-se mais em acumular referências no currículo, e assim ir somando pontos e subindo nos concursos, do que em «deixar marca» com um trabalho original, necessariamente moroso e que é escassamente classificado.

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              Apontamentos, Etc., Olhares, Opinião

              Uma aventura no passado (1996-2002)

              Entre Março de 1996 e Outubro de 2002 criei e mantive no ar, com o apoio de alguns amigos, mas a maior parte do tempo inteiramente a solo – daí, aliás, a inevitabilidade do seu fim – a primeira publicação portuguesa inteiramente online. Nenhum jornal o fazia nessa altura, lembro-me bem, e ainda não havia blogues. Chamava-se NON!, e tinha por subtítulo «revista crítica de opinião, ideias e artes». Era totalmente artesanal, montada «à unha» em linguagem HTML. Durante esses anos quase não tive fins de semana, pois passava-os a reunir colaborações, a editar e a melhorar a publicação. Muitos/as dos/as que por aqui me seguem talvez recordem ainda esta aventura – a revista chegou a ter vários milhares de acessos diários – e continuam por aqui. Outros desapareceram já do mundo dos vivos. Outros permanecem amigos para a vida. De um ou outro, meia dúzia, acabei por me distanciar. Não sei o que me levou a pensar hoje neste bocado de passado, mas aqui fica o registo da recordação. Deixo a lista completa dos colaboradores: quem não sabe do que falo aferirá por ela a qualidade da «coisa».

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                Apontamentos, Cibercultura, Etc., Leituras, Memória

                Males que vêm por bem

                É bem conhecida a forma como a atividade nas redes sociais tem tanto de positivo e de construtivo quanto de incómodo ou de prejudicial. Tende a reproduzir em meio virtual as relações sociais tradicionais, desenvolvidas em meio físico, adicionando-lhes uma forte capacidade para dar voz a quem habitualmente a não tem, permitindo que todos possam transmitir rapidamente o que pensam. Isto conduz a frequentes imprudências, dizendo-se o que talvez não devesse ser dito ou que poderia ter sido melhor ponderado. Este apontamento não toma esse sentido negativo, mas poderá tornar-se pouco simpático.

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                  Apontamentos, Democracia, Etc., Memória, Olhares

                  Não, não será a mesma coisa

                  Quando no dia 6 coloquei a cruz no boletim, votei no partido político do qual me vejo mais próximo, mas, tal como muitos milhares de eleitores, subscrevi também a «Geringonça», no que isto significa de adesão a uma solução razoável capaz de construir consensos à esquerda, de assegurar alguma estabilidade política e de manter a direita acantonada. Se tomei o gesto como a assinatura de um contrato, deverão, no entanto, ter-me escapado as letras miúdas, pois nada parecia levar a que o resultado final do processo fosse aquele agora anunciado.

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                    Apontamentos, Atualidade, Etc., Opinião

                    Uma declaração de voto

                    Nestas eleições irei votar no Bloco de Esquerda. Entre 1999, ano da fundação, e 2011, colaborei muitas vezes com o Bloco e fui seu eleitor. Nesse ano afastei-me um tanto. Por dois motivos centrais: devido ao voto de desconfiança partilhado com o PCP e a direita que ingloriamente acabou por levar aos quatro anos do governo PSD-CDS; e porque me parecia possível e necessária uma aproximação a setores do PS já então disponíveis para a acolher. Devido a estas escolhas, nas eleições de 2015 participei na experiência de uma «candidatura cidadã» que visava estimular essa aproximação para derrotar a direita. O resultado dessa experiência foi inglório, mas o esforço de convergência viria depois a ocorrer sob a forma da Geringonça, com as conquistas, dificuldades e contradições que se conhecem.

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                      Atualidade, Democracia, Etc., Opinião

                      Um revolucionário e a sua consciência

                      «Sinto muita vezes que sufoco no interior de um magnífico deserto», escreveu Victor Serge (1890-1947) a partir do exílio no México. Serge, bolchevique internacionalista desde a primeira hora, vivia essa impressão na dupla condição de opositor a Estaline e também ao comodismo dominante na comunidade de exilados que se lhe opunham. Num apontamento de 1943 falava da «cobardia dos intelectuais» – ele, toda a vida um intelectual – e do maior interesse de muitos destes pelas questões teóricas, pelo puro diletantismo, em detrimento do combate diário. Considerava a política como «feita essencialmente de pessoas, não de análises», propondo até ao fim uma atitude de compromisso e iniciativa radicada na melhor tradição bolchevique. Aquela que Estaline destruiu três vezes: primeiro pelo golpismo interno, depois pela violência e pelo medo, por fim pela desmobilização de boa parte dos que se lhe haviam oposto e Serge considerava «desertores». Para ele, todavia, a desistência era impensável, ainda que a sua vida de revolucionário passasse agora pelo «deserto» que referiu, «magnífico» porque feito, contra todas as adversidades e fugas, de convicção e empenho.

                      Na fotografia: Victor Serge, o poeta dadaísta Benjamin Péret, a pintora surrealista Remedios Varo e André Breton, que Serge considerava o típico diletante (França, 1941)
                      A partir da recente edição crítica de «Notebooks: 1936-1947», de Victor Serge, e de uma nota de leitura de Alex Press
                        Apontamentos, Democracia, Etc., História

                        O medo como técnica

                        «Escrito em 1946, este pedaço de um artigo de Albert Camus saído no jornal Combat tem, naturalmente, a marca do seu tempo.» Escrevi isto há sete anos, a anteceder a publicação do texto que abaixo se transcreve. Neste momento já não sei se assim é. Ressalvando a mistura verbal do «homem» e do humano – que hoje fere um tanto os nossos ouvidos – todo ele parece ter também, e muito, a marca destes dias.

                        «O século XVII foi o século das matemáticas, o XVIII o das ciências físicas e o XIX o da biologia. O nosso século XX é o século do medo. Dir-me-ão que o medo não é uma ciência. Mas, em primeiro lugar, a ciência é de certo modo responsável por esse medo, uma vez que os seus últimos avanços teóricos a levaram a negar-se a si mesma e porque os seus aperfeiçoamentos práticos ameaçam destruir a terra inteira. Além disso, se bem que o medo em si mesmo não possa ser considerado uma ciência, não há dúvida que é uma técnica.

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                          Democracia, Direitos Humanos, Etc., Olhares

                          «Por trás de um grande homem…»

                          A frase é conhecida e recorrentemente citada, se bem que a sua origem literária seja, tanto quanto sei, desconhecida: «Por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher». Ela possui em regra uma óbvia e forte tonalidade machista, subentendendo que certos homens estão vocacionados para grandes obras, ou para grandes causas, e para terem tempo de se dedicar a elas deverão ter, na retaguarda, mulheres que arrumem a casa, vão às compras, eduquem os filhos, paguem as contas da água e da luz e lhes confiram a paz de espírito necessária para poderem dedicar-se por inteiro à nobre missão da qual se crêem investidos. Grandes mulheres, para muitas das mentes que produzem aquele juízo, serão estas, e não tanto as que concorrem com os homens por igual ou que não asseguram aos seus a devida supremacia na vida privada e em sociedade. Esta relação desigual é, obviamente, antiga, pois Plutarco, sem tomar como objecto da suas perto de cinquenta biografias uma só mulher, colocou-as sempre como fatores benfazejos ou influentes, imprescindíveis para acalmar a destemperada valentia que julgava caracteristicamente masculina.

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                            Artes, Cinema, Etc., Olhares

                            Esquerda: a «extrema» e a «radical»

                            Há poucos dias, em entrevista concedida ao jornal online Observador, Catarina Martins afirmou, quando confrontada pelos entrevistadores com o uso qualificativo da expressão «extrema-esquerda», que esta «está associada a totalitarismos, perseguição, ódio», acrescentando que nada disso se encontra no Bloco de Esquerda. Afirmou preferir, se uma categoria houver mesmo de ser utilizada, a expressão «esquerda radical», uma vez esta ter mais a ver «com a raiz da esquerda, a raiz das lutas».

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                              Democracia, Etc., Olhares, Opinião

                              Euro-2016: anatomia de uma paixão

                              Fotografia de Kristina Truluck
                              Fotografia de Kristina Truluck

                              De cada vez que acontece um grande torneio ou se celebra uma vitória memorável, emergem nas redes sociais – goste-se ou não, com os seus defeitos e capacidades, o lugar onde circula hoje a opinião mais autónoma e plural –, muitas vozes que rejeitam o futebol como desporto de massas e celebração de um prazer ou de uma paixão. Pode ser apenas a demonstração verbal de um legítimo desinteresse por algo de que se não gosta, ou então a rejeição dos gastos e dos negócios obscenos que envolve, ou ainda o natural protesto pelo destaque exagerado e obsessivo que nessas alturas o jogo ocupa nos meios de comunicação.

                              Outras vezes, porém, é mais que isso, surgindo em certos casos como expressão de repulsa ou mesmo de ódio. Um ódio irracional e agressivo, como todos os ódios, que é diretamente projetado sobre quem o acolhe como praticante ou como adepto. Os argumentos são sempre os mesmos: o futebol será manifestação de despolitização ou de incultura, o reino negro do dinheiro sujo e do desperdício, recreio para rapazes estúpidos ou para fanáticos, pura perda de tempo quando tanto há de «verdadeiramente importante para fazer». Ainda que a vida seja feita também dos vícios e dos nadas que a tornam mais complexa e emotiva. (mais…)

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                                Corpo de Deus – apontamento histórico

                                corpodedeuspenafiel

                                Texto sobre o papel da procissão do Corpo de Deus para a definição do cerimonial político do absolutismo que escrevi em 1983 para o meu livro D. João V. Poder e Espectáculo (aqui adaptado).

                                A procissão do Corpo de Deus foi instituída em 1264 para todo o mundo cristão pelo papa Urbano VI. A festividade começou a ser celebrada em Portugal – sempre na primeira quinta-feira depois da oitava do Pentecostes – no reinado de D. Afonso III. Viria a ganhar um brilho invulgar a partir do governo de Manuel I, sendo sempre a sua procissão aquela que de maior luxo e aparato Lisboa conheceu. O rico espetáculo que habitualmente continha, as possibilidades que oferecia como momento de dramática manifestação de fé, tornavam a sua realização num momento intensamente vivido pelo povo da capital. Porém, até ao século XVIII, o desfile religioso serviu de instrumento para a expressão combinada de crenças e tradições diversas. Sem qualquer ordem prevista, seguiam aí as autoridades municipais, os representantes dos ofícios com os seus antigos símbolos e bandeiras, as imagens sagradas, nessa altura ainda de grande sobriedade plástica. Mas também gente vestida das formas mais bizarras, figuras bestiais, indivíduos de toda a qualidade, sem qualquer distinção. Em 1493 seguiram no cortejo «o rei David, diabos, reis, imperadores, príncipes, gigantes, feiticeiros, verdadeiro concílio de cómicos e truões». E em 1669 ainda desfilavam «cervos, figuras de cavalo, invenções e danças».

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                                  Cidades, Etc., História

                                  Queima 72 em Coimbra e no Porto

                                  O desaparecimento da Queima das Fitas, tal como o das praxes, materializados em Coimbra com o «luto académico» decretado em 1969, foi um gesto coletivo de coragem e de grande impacto político, até porque se ergueu contra as expectativas de algumas famílias ciosas dos seus meninos doutores e as conveniências de parte do comércio da cidade. No entanto, não caiu do céu e, visto sob a perspetiva do tempo, não pôde deixar de ficar ligado a uma gradual democratização política dos valores em curso dentro das comunidades estudantis universitárias da cidade e do país. A escolha dos estudantes foi o resultado de uma evolução natural e daí o facto de, nos anos que se seguiram, a suspensão de tais práticas não ter sido levantada. (mais…)

                                    Coimbra, Democracia, Etc., História, Memória