Arquivo de Categorias: Etc.

Monstruosidades

Na mitologia grega, Ortro, o cão bicéfalo, filho da mulher-serpente Equidna e de Tifão, que tinha cabeça de cavalo e comandava os ventos fortes, era irmão do tricéfalo Cérbero, o terrível guardador do Hades, lugar de destino dos mortos. O dono de Ortro era o pastor Gerião, disforme gigante de três cabeças, três corpos, seis asas e seis braços que se apoderou dos bois vermelhos destinados a Hércules. Motivo pelo qual este o matou.

    Apontamentos, Etc.

    História pouco edificante

    Em Dezembro de 1949, no mesmo ano em que foi proclamada a República Popular da China, Mao Tsé-Tung fez uma visita de Estado a Moscovo e a Estaline. Levou consigo uma autêntica arca do tesouro de ofertas chinesas e vários vagões carregados de arroz. Muitos dos ornamentos de laca ainda hoje decoram as paredes do apartamento, situado na Rua Granovski, onde Molotov viveu. Já o arroz, então um bem raro na capital soviética, foi distribuído pelos altos dignitários do Partido. Em troca, segundo conta Simon Sebag Montefiore, Estaline ofereceu os nomes dos agentes soviéticos infiltrados no Politburo dos comunistas chineses. De regresso a Pequim, como seria de prever, Mao liquidou-os imediatamente.

      Apontamentos, Etc., História

      Mestre de culinária

      Avô paterno do atual senhor do Kremlin, Spiridon Ivanovich Putin (1879–1965), foi um caso único da arte culinária ao serviço do poder instalado em Moscovo. No tempo do czar chegou a cozinhar para o monge Rasputine, mas fez carreira principalmente como chef privado de Lenine e de Nadia Krupskaia, bem como de José Estaline. Depois da morte deste trabalhou ainda numa dacha do Comité de Moscovo do PCUS. Pelo que dele conta o neto, parece que era pouco falador e particularmente reservado a respeito dos episódios aos quais pôde assistir a partir do excelente posto de observação que é sempre a cozinha dos poderosos. Não deixa de ser curiosa a ligação deste homem silencioso e esquecido com os três grandes regimes da Rússia contemporânea.

        Apontamentos, Etc.

        A imprescindível primavera

        Não cheguei a ter grandes esperanças, e, como toda a gente, agora ainda tenho menos, no futuro promissor das «primaveras árabes». Foi a sua parecença consigo próprios aquilo que muitos ocidentais vislumbraram de positivo nas praças de Tunes e do Cairo, naqueles grupos de jovens de aspeto cosmopolita, de funcionários de barba diligentemente aparada e de mulheres maquilhadas, sexos aliados, telemóveis de última geração, que falavam inglês e gostavam dos mesmos filmes e leituras dos quais gostavam os seus contemporâneos de Estocolmo, Munique ou Quioto. Foi a quimera de um mundo, outro e o mesmo, no qual todos os discursos e compromissos fossem possíveis e aceitáveis. Foi, por momentos, um certo esquecimento da diferença real no ser e no viver daquelas latitudes. Alguns viram até, por aqueles dias e naqueles movimentos, o acordar de utopias perdidas, de projetos abandonados, o regresso à ideia de um mundo feito de entendimentos e de paz. (mais…)

          Etc.

          Nos 200 anos de Dickens

          Oliver Twist segundo Roman Polanski

          Não foi Cristo, Marx ou sequer o Zorro. Esses foram importantes mas chegaram em alturas menos decisivas. Foi Charles Dickens quem, pela mão de Oliver Twist e numa edição pobre mas digna da Romano Torres, no momento certo fez de mim uma pessoa de esquerda.

            Apontamentos, Etc., Olhares

            A repulsa

            dois

            Para Orwell, «não existe sentimento de simpatia e antipatia tão essencial quanto um sentimento físico». Superamos mais facilmente as divergências de opinião, os confrontos de ordem moral, a distinção da língua ou da pele, a diferença de estatuto – até mesmo, para muitos, os vínculos mais fundamentais da fé – do que aquela distância, invisível mas rígida, incerta mas intransponível, que é imposta pela repulsa física. O olhar que se desvia repentinamente, o odor estranho que logo afasta, o toque ou a voz que apenas incomodam, provocam a exclusão imediata e quase sempre definitiva. A química do ódio – como a do erotismo ou a do amor, também elas súbitas – jamais será explicada pelos tratados de ciência certa ou pelo a-bê-cê da luta de classes. Nunca será considerada nos manuais de civilidade ou nas páginas do código penal. Mas persiste para nos separar sem remissão.

              Apontamentos, Etc., Olhares

              Upgrade da imaginação

              A máquina de escrever de Nietzsche

              De acordo com The Iron Whim: A Fragmented History of Typewriting, do canadiano Darren Wershler-Henry, Mark Twain e Friedrich Nietzsche serviram-se com alguma desenvoltura de máquinas de escrever. Daquelas primitivas, ruidosas, difíceis de manipular e cheirando a lubrificante. A verdade é que sempre imaginei qualquer deles a escrever servindo-se com afinco de delicadas penas de pato, o primeiro numa varanda ensolarada à beira do Mississipi, o alemão de Röcken sentado num calmo, soturno e silencioso gabinete, algures entre Sils Maria e Rapallo. Preciso por isso de recorrer a um upgrade parcial da imaginação.

                Apontamentos, Etc., Olhares

                A contar até doze

                Estou a ficar preocupado. Em todos os finais de ano, nas resenhas de obituários que acompanhavam os suplementos dos jornais e das revistas, encontrava sempre mortos relevantes de cujo passamento não me havia apercebido ao longo das restantes cinquenta e uma semanas. Ocupado com os ritmos ardentes, com os momentos e os pormenores, esquecera as partidas de alguns dos notáveis, ou dos notados, cuja vida pública algures havia tocado à tangente o meu modo de tomar consciência do tempo. Este ano, não, nem um só dos admiráveis recém-falecidos escapou à minha atenção. Quando começamos a olhar em excesso para as páginas das necrologias, isso quer dizer, creio, que estamos a ficar velhos ou a precisar de férias. Ou de nos sintonizarmos noutro comprimento de onda.

                  Apontamentos, Devaneios, Etc.

                  Melhores blogues de 2011

                  No ano passado o programa da TVI Combate de Blogs designou-me «blogger do ano». Na altura, o facto inquietou-me um pouco, por motivos que então expliquei (poderá revê-los). Filipe Caetano, o responsável pelo programa, sugeriu entretanto que fizesse parte do painel que nomearia os candidatos deste ano aos melhores blogues de esquerda, de direita, coletivos, individuais e revelação. Sob novas condições, aceitei a proposta e colaborei então na escolha – obviamente discutível e parcial – dos que vão agora a votação. Um deles é uma vez mais A Terceira Noite, que não estava evidentemente entre aqueles que nomeei. Se quiser, pode votar aqui até ao dia 5 de janeiro.

                    Etc., Oficina

                    O professor de latim

                    «Quosque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? Quam diu etiam furor iste tuus nos eludet?» («Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência? Até quando teremos nós de suportar o teu escárnio?») Lembrei-me hoje, por via de uma daquelas figurinhas que nos cabem na administração paroquial ou continental da coisa pública, do velho professor de latim e do seu Cícero. Abria muito os braços, e mais ainda as mãos, e recitava de cor parágrafos completos da agastada e furiosa Oratio in Catilinam. Com tal ênfase que fechava sempre a última frase num violento ataque de tosse. A seguir acendia um cigarro Porto, produzia sucessivos anéis de fumo, e calava-se durante dois ou três minutos enquanto nos recompúnhamos dos efeitos da onda de choque verbal e do mais puro terror. Pensando no prazer que daria responder-lhe na mesma moeda.

                    [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=v6rLLE48RL0[/youtube]
                      Apontamentos, Etc., Olhares

                      Manual para manetas

                      Parece o esboço de um sketch perdido dos Monty Python. Mas não é. Ao folhear um recém-traduzido livro de Peter Sloterdijk, deparei com uma estranha referência bibliográfica. Em 1915 foi publicado na Alemanha um manual para manetas (esqueçamos a contradição nos termos), que foi preciso reeditar no prazo de um mês, dado o aumento da procura determinado pelo crescimento exponencial dos mutilados de guerra. Na segunda edição da obra, constatava o seu autor, Eberhard Von Künzberg, com um mal disfarçado alvoroço, que a afluência de novos manetas chegados da frente viera dar «um novo impulso aos antigos manetas». «Como é favorável a situação do mutilado de guerra! Graças à sua pensão está para sempre ao abrigo da necessidade.» Digamos, passe o caráter sinistro da comparação, que se pode antever no atual aumento do número de pobres e no alijar das responsabilidades do Estado o imparável incremento, a médio prazo, das instituições de caridade capazes de assegurarem um prato de sopa certo e seguro. Há um ano, o paralelismo pareceria um absurdo ou uma brincadeira de mau gosto. Agora ficamos a pensar se não corresponde a uma premonição.

                        Apontamentos, Etc., Olhares

                        Partida

                        A. Rimbaud

                        Um dia antes de morrer, já semi-inconsciente, Rimbaud ditou à irmã Isabelle uma carta urgente, destinada a uma certa companhia de navegação: «Estou inteiramente paralisado e por isso desejo embarcar de imediato. Tenham por bem informar-me da hora a que poderei entrar a bordo.» A volúpia da partida, da viagem sem fim, ao dispor de todos os perigos. Para sempre.

                          Etc.

                          Olhar e resistência

                          Vivemos escravos do olhar. O que não é mau, pois o olhar é um mestre esquivo, que muda muitas vezes de rosto, dá ordens inesperadas, e por isso admite um quinhão de independência a quem escraviza. Permite-nos ver e rever as mesmas coisas de maneira diversa, passando por elas como passamos pelas cidades invisíveis do Calvino italiano, sempre abertas a trajetórias novas, a roteiros que projetamos e percorremos à nossa própria custa, sem nos preocuparmos em demasia com os mapas, as polícias, os muros, os sinais de trânsito. Rei dos sentidos, como insistiam os poetas barrocos, o olhar é o último reduto da resistência e da liberdade.

                            Apontamentos, Etc., Olhares

                            Pesadelo regionalista

                            Vira do Minho

                            Talvez por vergonha ou esquecimento, já quase ninguém fala do tema, mas numa destas noites ele deu corpo a um horrível pesadelo noturno que me fez acordar sobressaltado, com suores frios e os piores presságios. Nele o referendo de 8 de novembro de 1998 tinha afinal aprovado o plano de regionalização do país que ia multiplicar os cargos, as prebendas, as parcerias público-privadas, os processos do Tribunal de Contas, as Madeiras e os Audi pretos. E agora tínhamos um défice das contas públicas vinte vezes pior e quarenta vezes mais difícil de resolver do que o da Grécia. Quando percebi de que lado estava a realidade senti um imenso alívio. Por instantes achei até que tinha despertado na Noruega.

                              Apontamentos, Devaneios, Etc.