Arquivo de Categorias: Democracia

«Relógios de repetição»

Os «relógios de repetição» para uso doméstico ou no pulso surgiram por volta de 1890, possuindo a característica inteiramente inovadora de anunciarem com clareza, de forma acústica, uma hora pré-programada, ou tocarem um alarme por duas ou mais vezes sucessivas. Por analogia, passaram a ser pejorativamente apelidadas de «relógios de repetição» aquelas pessoas com tendência para falarem sempre do mesmo assunto, ou pronunciarem constantemente, como num eco, frases produzidas por outrem. 

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    A Coreia do Norte e a falsificação da História

    Ao ver na AppleTV uma excelente série que percorre oitenta anos da história da Coreia, e ao procurar aferir da veracidade das inúmeras referências históricas, dou de caras com um facto poderoso que ignorava e com uma mentira que tomava por verdade, ainda que manchada por algum exagero do qual já suspeitava. Em Pachinko, de Soo Hugh, estreada em 2022 e falada em coreano, japonês e inglês, uma saga familiar baseada no romance homónimo da escritora coreana-americana Min Jin Lee, encontra-se um cenário que reporta a relação complexa e traumática da Coreia com o Japão ao longo do século XX. O facto que ignorava tem a ver com a dimensão do domínio japonês sobre a península, exercido entre 1910 e 1945, ter sido traduzida na redução à escravatura, ou pelo menos à servidão, da quase totalidade da população local, com, níveis de repressão e de crueldade sem comparação à escala europeia.

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      Democracia, Etc., Ficção, História, Olhares

      Escrever ou falar sem temer, como um dever

      Mesmo fora do campo de trevas, hoje maioritário à escala planetária, das ditaduras ou das «democracias musculadas», vivemos tempos difíceis para a liberdade de opinião. Não se trata de um problema novo, pois ela sempre incomodou aqueles que procuram impor aos demais as suas razões e a sua vontade, mas hoje tem novos contornos. O que nesta altura distingue as atuais das situações do passado de assalto à liberdade é esta ser frequentes vezes atacada ou diminuída por quem tem o dever de a utilizar e de a defender. É o que acontece com muitas das pessoas a quem as redes sociais conferiram uma voz que até há poucos anos jamais sonharam deter, utilizando esta possibilidade, não para divulgar informação fidedigna, além de opiniões sinceras e justificadas, assumindo a diversidade e aceitando o contraditório, mas para disseminar a mentira, a ignorância e o ódio.

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        Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Opinião

        O meu 11 de março: uma memória

        11 de março de 1975, data sobre a qual se completam hoje 48 anos, corresponde, como sabe quem na época já tinha razoável tempo de vida ou quem estudou alguma coisa sobre a a nossa história recente, ao dia no qual, iniciada e gorada a tentativa de golpe de Estado de direita que tinha António de Spínola como «cabeça de cartaz», a revolução portuguesa se radicalizou. Superando anteriores hesitações, passou-se então à ocupação de muitas empresas e propriedades rurais, bem como a um processo acelerado de nacionalizações, incluindo a da banca. Dando-se também início a uma fase da revolução na qual o socialismo foi definido como meta por quase todos os partidos democráticos. Ao ponto de a nova Constituição a ter integrado logo no artigo 2º.

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          O fenómeno woke e as caricaturas

          A última coluna de opinião de António Guerreiro é sobre o fenómeno woke. Como sei que muitas pessoas cultas e informadas não sabem do que se trata – nem toda a gente pode estar permanentemente atenta à infinita e cada vez mais rápida renovação dos léxicos – faço copy-paste do primeiro parágrafo do artigo da versão portuguesa da Wikipédia, inevitavelmente sintético e limitado

          «Woke, como um termo político de origem afro-americana, refere-se a uma perceção e a uma consciência das questões relativas à justiça social e racial. O termo deriva da expressão do inglês vernáculo afro-americano “stay woke” (em português: continua acordado ou desperto), cujo aspeto gramatical se refere a uma consciência contínua dessas questões. No final da década de 2010, woke foi adotado como uma gíria mais genérica, amplamente associada a políticas identitárias, causas socialmente liberais, feminismo, ativismo LGBT e questões culturais (…). O seu uso generalizado desde 2014 é resultado do movimento Black Lives Matter.»

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            Dar ou não a cara na rede

            Como faz a generalidade das pessoas que têm muitos e constantes contactos fora do seu círculo próximo de vida e de trabalho, recorro inúmeras vezes aos motores de pesquisa ou às redes sociais para conhecer melhor quem me está a contactar ou quem pretendo contactar por isto ou para aquilo. Por vezes para ver por onde anda quem um dia conheci e gostaria de rever. É essencial ler a sua pegada: saber minimamente o que faz ou fez, conhecer-lhe um pouco o rosto, ter um mínimo de referências que nos permita identificar com razoável dose de segurança com quem queremos falar ou quem a dado momento nos procura.

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              Da aventura de ler ao desvario de rever

              Quando comecei a decifrar as letras tornei-me logo um leitor voraz. Por isso a minha perspetiva do mundo confunde-se com a imaginação, a dúvida, a experiência e os saberes proporcionados pela leitura intensa e quotidiana. Sem ela, jamais teria conhecido tantos lugares distantes, nunca teria voado sobre falésias e despenhadeiros, navegado até outras épocas e planetas, conversado com personagens de romance ou medido a extensão do real e do irreal. Também pouco ou nada saberia da história do mundo e do seu legado, de outras línguas, de filosofias que libertam, do imperativo das utopias e da infinita diversidade do humano nas escolhas e na subjetividade. Habitaria apenas realidades expectáveis, servo de destinos que não entenderia e jamais poderia contrariar.

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                A morte exagerada do PCP

                Escuto Ana Sá Lopes, analista com a qual na maioria das vezes concordo, afirmar num podcast que «num prazo de 20 anos poderemos assistir à extinção do PCP». É claro que duas décadas são muito tempo, e hoje tudo muda a mil à hora; todavia, sem ter qualquer simpatia por um dos últimos partidos comunistas europeus ortodoxos que ainda mantém algum peso social, tendo aqui a recorrer à ultracitada frase de Mark Twain sobre o exagero que tinham sido as notícias sobre a sua própria morte. A matriz, autoritária em política externa e conservadora nos costumes, que domina o partido, tenderá com toda a certeza – e sem estar aqui a fazer adivinhação – a ver-se transformada. Não de dentro para fora, pois boa parte dos seus mais rígidos militantes são precisamente muitos dos mais novos, mas antes de fora para dentro, em função da mudança social e, como dizia Cunhal, «da vida».

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                  Waters na sua franja

                  O músico Roger Waters, um dos fundadores dos antigos Pink Floyd, é claramente uma pessoa com uma orientação política incomum no seu meio. Está no seu pleno direito, e algumas das posições que toma até poderão ser em parte justas. Mas duas delas são obviamente erradas e nocivas, embora ambas coincidentes com as que defende como suas aquela franja, autoproclamada «de esquerda», para a qual tudo o que se oponha aos EUA é por uma boa causa e merece defesa, seja quem for que o faça e a forma como o faz.

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                    «A luta» não é sempre justa

                    Ao contrário do que ocorre sob as ditaduras, quando todos os meios para combater a tirania e a repressão são perfeitamente legítimos, em democracia o objetivo da luta social, em especial a de rua, não é derrubar o regime, mas sim defender medidas justas, procurar alargar e melhorar os direitos, e aperfeiçoar a própria gestão da vida coletiva. Por este motivo é muito importante distinguir quem sai da sua concha pessoal para combater coletivamente por causas e interesses legítimos, protestando e reivindicando, se necessário com força e veemência, de quem tem como objetivo da luta de rua enfraquecer um governo democrático, fazê-lo cair e trocá-lo por outro, a seu contento. De preferência, um que faça tábua rasa daquilo que foi maioritariamente decidido em eleições livres. Não existe comparação ou conciliação possível entre as duas escolhas.
                    [originalmente no Facebook]

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                      Um ano de sofrimento, hipocrisia e esperança

                      Completa-se hoje um ano sobre o início da guerra na Ucrânia, determinada pela súbita invasão russa imposta pela política imperial e belicista de Vladimir Putin. Um ano que, na altura, apressados analistas, alguns deles oficiais generais, anunciavam ir durar «no máximo, uma semana». Um tempo determinado em primeiro lugar pela sistemática e brutal destruição de boa parte do país invadido, pelo imenso sofrimento do seu povo, pela devastação de vidas e de esperanças, e por um número, ainda indeterminado, mas na escala dos largos milhares, de mortos, entre civis e militares. Contando-se também entre estes muitos cidadãos russos, alguns deles mercenários e ex-presos de delito comum incorporados com a promessa de um perdão, embora a maioria sejam recrutas e reservistas incorporados à força, às dezenas de milhar, pelo regime de Moscovo.

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                        Fazer os outros de parvos

                        Parte dos partidos e organizações que integram o nosso espectro político, de um extremo ao outro, manifesta muitas vezes uma importuna tendência para afirmar pontos de vista que tendem – perdoe-se a crueza – a fazer os outros de parvos. A prática ocorre mais em algumas forças que em outras, e por certo não em todas, mas é muito negativa para a democracia, sobretudo quando vem de correntes que se bateram e batem pela justiça e pela igualdade. Consiste em afirmar ideias que qualquer ser pensante, informado e honesto consigo mesmo sabe que não são verdadeiras, mas esses setores insistem em proclamar ‘urbi et orbi’ como indiscutíveis verdades.

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                          Paz não pode ser injustiça

                          Trazer a paz diariamente na boca, tomando-a como um valor absoluto, mas sem distinguir a que se conquista e funda na justiça, na equidade e na democracia, daquela outra que se baseia na opressão, no direito do mais forte e na tirania, é, ao mesmo tempo, prova de hipocrisia, cegueira e cobardia. A paz é um valor essencial da dignidade humana, sem dúvida, e deveria corresponder à ordem natural do mundo, mas não pode ser alcançada e mantida à custa da indiferença e da injustiça.
                          [originalmente no Facebook]

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                            Para além e para aquém de Kiev

                            Ao longo de vários séculos a população da Europa viveu atormentada por uma sombra ameaçadora que os historiadores designaram «o medo do turco». Isto é, o constante receio subjetivo de uma conquista otomana que virasse o seu mundo ao contrário. Ao mesmo tempo, setores da elite cultural ocidental foram alimentando uma dimensão de fascínio por esse universo, instalado a oriente, que a maioria desconhecia tanto quanto temia. Num e noutro dos casos, o sentimento dominante era o de grande estranheza perante hábitos, crenças, valores e formas de organização política e social substancialmente diversos daqueles que, apesar da pluralidade de regimes e sociedades, eram basicamente compartilhados pela generalidade dos europeus.

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                              O espírito gregário e a pobreza da opinião

                              Uma das boas vantagens que tem trazido a massificação da Internet e das redes sociais traduz-se na forma muito fácil e rápida como estes dois fenómenos contemporâneos tornaram possível que praticamente qualquer pessoa seja capaz de disseminar informação pertinente e de partilhar a sua própria reflexão crítica. Com múltiplos e complexos problemas à mistura, e com muitos erros e desvios também, alguns deles gravíssimos, sem dúvida alguma, mas não são eles que estão em causa neste apontamento. Aquilo que aqui se pretende sublinhar é que essas capacidades positivas são em boa parte contrariadas pelo facto de um grande número de homens e de mulheres, tendo capacidade reflexiva e conhecimento para poder exprimir opinião de uma forma sustentada e crítica, ser incapaz de dialogar com ideias e problemas que transcendam aqueles de momento invocados, no domínio do imediato, no interior do seu próprio universo político.

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                                As circunstâncias dos abusadores

                                Dois apontamentos mais sobre a revelação, agora em Portugal, de um número bastante elevado – ainda assim, sem dúvida, muito inferior aos dos casos não testemunhados ou que foram e são recorrentemente silenciados, que jamais verão a luz do dia – de vítimas de abusos sexuais praticados nas últimas sete décadas com a completa impunidade da generalidade dos seus perpetradores e da instituição eclesiástica que os enquadrou e lhes conferiu o poder para poderem abusar. Uma instituição, forçada pelo ar do tempo e pelo próprio papa a enfrentar o tema, e que agora vem lamentar o ocorrido sem todavia abordar com clareza formas de punir os criminosos ainda vivos e de compensar minimamente as suas inúmeras vítimas. Não serão, por certo, apenas desculpas e piedosas orações a resolver o seu terrível lastro.

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                                  Calamidade e hipocrisia

                                  O número de vítimas mortais do terrível sismo que afetou o sul da Turquia e o norte da Síria vai já, neste momento, em mais de 5.200 pessoas, estimando-se que possa ultrapassar os 20 milhares. O volume de feridos e desalojados será colossal, numa paisagem de devastação, horror e sofrimento que chega em imagens brutais ao conforto das casas de quem, neste lado do mundo, se sente seguro e protegido. No caso da Síria, com a agravante de se tratar de uma área em larga medida controlada pelas forças que combatem Hassad e eram já um constante alvo dos ataques militares de Damasco.

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                                    A justa luta dos professores sob um olhar crítico 

                                    O atual alargamento dos processos de comunicação e a crescente facilidade de produzir opinião fazem com que, quando se abordam de uma forma analítica e não linear temas que suscitam grande controvérsia, facilmente quem sobre eles escreve possa ser mal interpretado. Esta realidade relaciona-se também com formas ligeiras de leitura, vendo-se apenas aquilo que se deseja ver, a branco ou preto, muitas vezes sem ponderar a totalidade do argumento. Por isso este texto começa com uma necessária cautela: o seu autor é inteiramente favorável à luta dos professores de todos os graus de ensino por condições de vida e de trabalho que de há muito se têm vindo a desvalorizar. Mais: não lhe parece que ela consiga algo de positivo se não for levada a cabo de uma forma unitária e vigorosa, impedindo os seus interlocutores de a desvalorizarem.

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