Arquivo de Categorias: Democracia

A autoria como gato por lebre

Até ao século XVIII a condição de autor de uma obra escrita era de tal forma desvalorizada que o seu nome surgia no rosto sempre na última linha em caracteres muito pequenos. O destaque era conferido ao patrono – quem pagava o trabalho ou a quem a obra era dedicada -, de seguida a um título invariavelmente muito longo, e depois ao impressor, que também editava. O justo triunfo do autor foi, em larga medida, um produto do movimento romântico e, se a ele raramente passou a corresponder uma compensação justa pelo trabalho – salvo se for um best-seller, daqueles que se vendem hoje nas estações de comboio e nos hipermercados, ao lado de pastilhas elásticas e bolachas -, ocorre ao mesmo tempo um reconhecimento visual do seu papel, sendo agora identificado com clareza.

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    Apontamentos, Democracia, Olhares

    Pela militância

    Li numa reportagem que a Iniciativa Liberal, atormentada por alguns fantasmas, se recusa a designar os seus inscritos como «militantes», antes lhes chamando «membros». Amigos do Bloco de Esquerda corrigem-me de vez em quando fazendo-me ver, aparentemente com orgulho, que também não têm «militantes», mas «aderentes» ou «ativistas». Por mim, continuo a considerar nobre e de profundo sentido a palavra «militante», historicamente associada, sobretudo na grande área da esquerda, a quem combate por uma causa, dando por ela o melhor de si, diariamente e com empenho. Militantemente, portanto. Se alguém pode ver como negativo o qualificativo, associando-o a uma relação de dependência e de apagamento individual, esse será um problema do partido ou do movimento que a impõe, ou então da pessoa que dessa forma a vive e aceita, não da nobre e necessária condição de militante. Porque sê-lo foi e permanece uma forma de liberdade e de cidadania.
    [originalmente no Facebook]

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      Promiscuidade entre política e negócios

      Apesar de determinada por episódios recentes envolvendo dois ou três membros de segunda linha do governo do Partido Socialista – de uma forma que, sendo inaceitável, foi artificialmente ampliada pelas oposições, em especial as de direita, empenhadas em generalizar as críticas a partir de casos singulares – existe nas democracias contemporâneas, e na nossa também, um problema sério que pode ser relacionado com esta situação. Diz respeito ao modo como certo número de pessoas, em lugares de responsabilidade pela coisa pública, e que deveriam colocar em primeiro lugar o espírito de serviço à comunidade que determinou a sua eleição ou escolha, se envolvem ao mesmo tempo em atividades que visam sobretudo o rápido enriquecimento pessoal, tornando-se esta uma das fontes da crescente opinião «antipolíticos».  

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        A democracia e as feras

        O factor mais impressionante de toda a barbárie que passou por Brasília, e que tende a emergir noutras paragens, consiste em a espécie de seres que a protagonizou – tendo a nem lhe chamar gente – apenas reagir aos slogans vagos que lhe inculcam e ser «anti» algo que nem sabe explicar. Não tem reivindicações objetivas, não possui um manifesto, não é capaz sequer de respeitar os valores patrimoniais comuns, como se viu na destruição indiscriminada de valiosas peças de arte, de mobiliário, de computadores e dos próprios edifícios públicos. Lula disse ontem, durante a visita que fez ao local após uma reunião com os governadores estaduais, que «a democracia é a coisa mais complicada para a gente fazer, porque exige gente suportar os outros, exige conviver com quem a gente não gosta.» Palavras justas, sem dúvida, mas construí-la e mantê-la terá de ser sempre com homens e mulheres, na sua diferença, jamais com feras ululantes, incapazes de agir fora do bando e que apenas respondem ao instinto.

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          Totalitarismo: um conceito plural e útil

          Usado hoje de uma forma constante em artigos de opinião, notícias e reportagens, mas também em campos do conhecimento como a história, a ciência política, a filosofia ou a sociologia, o conceito de totalitarismo é, ao mesmo tempo, útil e questionável. Para ser útil deve utilizar-se em contexto, e não como um chavão aplicado indiscriminadamente, segundo formas que chegam a tocar o absurdo. Exemplificando, ainda há pouco tempo encontrei uma referência ao estilo de direção pouco dialogante do presidente de um grande clube de futebol caraterizando-a como «totalitária», o que é, obviamente, tão impreciso quanto disparatado. Já a sua dimensão questionável depende do caráter não consensual da pluralidade de significados que realmente encerra. A mesma que faz com que parte da esquerda o rejeite liminarmente e certa direita dele se sirva de uma forma politicamente obscena.

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            «Pegada digital», vida pública e solidão

            A rápida transformação nos processos de comunicação que teve lugar nos últimos trinta anos, associada ao papel dos meios eletrónicos, determinou alterações bruscas e extremas nas diferentes formas de qualquer de nós se relacionar em sociedade. À distinção tradicional entre os que procuravam o reconhecimento pessoal e o das suas ideias, e aqueles que preferiam viver no completo anonimato, juntou-se um campo híbrido intermédio e em constante expansão: o daqueles que, tendo ou não produzido «obras valerosas», podem ser escutados por bom número dos seus semelhantes.

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              Semente de esperança vinda do passado

              Dizia-me alguém, num registo ao mesmo tempo pedagógico e trocista, que «iluminismo não é palavrão». Não posso estar mais de acordo. A afirmação cega de um relativismo radical, assente na ideia absurda segundo a qual a tradição cultural europeia – sem dúvida associada também a formas de injustiça, opressão e desigualdade – é pobre e nociva, levando muitas pessoas sectárias ou sem informação a ignorar o papel emancipatório dos princípios basilares dessa corrente cultural laica que se afirmou no século XVIII. Na direção contrária, sectores do pensamento contemporâneo, defensores de formas de autoritarismo e de controlo dos cidadãos, olham-na como instrumento fundador de um conceito de liberdade e progresso municiador nos séculos seguintes de dinâmicas democráticas e revolucionárias, que rejeitam e pretendem destruir. 

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                A «ortodoxia suave» do PCP

                Talvez mais em resultado da conjugação dos astros que por um efeito do mero acaso, no mesmo dia desta semana de dezembro os jornais «Público» e «Diário de Notícias» atribuem um grande destaque ao que consideram ser sinais de moderação, ou de distanciamento e de suavização da ortodoxia, por parte do PCP. Os sinais que referem não permitem, no entanto, inferir com clareza essa dinâmica, e apontam a aspetos que até nem seriam os mais importantes num processo de eventual e efetivo «aggiornamento» do partido. Os articulistas, porém, entendem que assim é.

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                  Extrema-direita e apatia da democracia

                  Com dezenas de prisões de pessoas com algum destaque social e político, acaba de ser desmantelada na Alemanha uma conjura, sustentada em teorias da conspiração, destinada a preparar a tomada do parlamento e a provocar um golpe de Estado, da qual sairia de seguida uma revisão das condições de rendição do país após a Segunda Guerra Mundial. A reação imediata de muitos de nós foi de incredulidade, pois geralmente damos como assente que a Alemanha é uma democracia estabilizada e que os traumas associados à ascensão e à queda do nazismo estariam enterrados. Esta é, todavia, mais uma prova da ascensão da extrema-direita revanchista fundada agora nas dinâmicas do populismo, nas falhas da memória coletiva e na visível apatia da democracia.

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                    Contra o referendo sobre a morte assistida

                    Salvo em momentos de total bloqueio político, sou absolutamente contrário ao recurso, em democracia, à experiência do referendo. Se nos colocarmos no plano estrito dos princípios, ele pode, sem dúvida, parecer uma forma de democracia direta que completa as da democracia representativa. Todavia, tende a minimizar a reflexão e o debate, cingindo-se a respostas primárias, de «sim» ou «não», face a perguntas muito simples, o que tenderá sempre a dar maior poder de decisão aos setores menos informados e mais despolitizados. Por isto mesmo é uma arma perigosa, sempre bastante apreciada pelos populistas.

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                      O Catar, nervo político e «novo normal»

                      Apesar das objeções colocadas logo em 2010, quando a FIFA anunciou a sua escolha, nas últimas semanas tem sido especialmente contestada a realização do Mundial de futebol no Catar. As razões são múltiplas e persistentes, embora aqui deixe de parte as que têm uma natureza desportiva e as que se relacionam com casos de corrupção logo denunciados quando da escolha do local e da altura da prova. Centro-me antes em três questões de uma natureza política: a levantada pela caraterização do regime que governa aquele país do Golfo Pérsico, a que envolve a forma como os mais importantes responsáveis políticos nacionais a têm encarado e a que respeita ao modo como esta situação interpela a atividade e a consciência de quem se preocupa com os dilemas da «polis».

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                        Operários em construção

                        Por um destes dias, se entretanto não mudar de ideias, procurarei escrever algo substancial e historicamente sustentado sobre o tique «obrerista» – sempre justificado no plano teórico, como é óbvio – que fez e faz com que muitos quadros de partidos e organizações ligados ao amplo e diversificado movimento comunista sintam o dever de, mesmo não tendo sido de facto operários, ao longo da vida se fazerem passar por tal.

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                          E agora, Brasil?

                          Logo no dia após a vitória tangencial de Lula, colunistas e jornalistas de todo o mundo começaram a elaborar listagens dos «problemas» e dos «desafios» que a partir de 1 de janeiro de 2023 terá pela frente a nova presidência do Brasil. Não repito esse esforço, em regra bastante completo, mas anoto os meus oito principais temores e desconfianças em relação ao que aí vem. Acreditando que serão partilhados por bom número de pessoas, muitas delas apoiantes ou votantes do candidato do PT.

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                            Brasil: vislumbre do ódio

                            Os portugueses que na noite eleitoral de ontem prestaram atenção aos canais nacionais com reportagens e espaços de comentário sobre as eleições no Brasil puderam ter um rápido e eloquente vislumbre daquilo que, nos últimos anos, brasileiros e brasileiras pacíficos e de bem tiveram de suportar diariamente no seu próprio país, ao ponto até de tantos terem decidido emigrar ou de terem deixado de expressar publicamente os seus pontos de vista. 

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                              A China e o espetáculo do poder

                              Há alguns dias, perante uma fotografia dos membros do novo Comité Central do Partido Comunista Chinês rigidamente perfilados na tribuna do Congresso destinado a estender e reforçar o mandato de Xi Jinping, senti um frémito de horror. Não é preciso ser semiólogo para ler aquele rebuscado cerimonial, a fixidez dos corpos robotizados, a impassibilidade dos rostos, a coreografia de cores e gestos, incluindo-se nestes a exclusão forçada, diante das câmaras, de Hu Jintao, o anterior presidente caído em desgraça. Mais que traduzir «uma especificidade cultural», como certas boas almas julgarão, eles visam impor internamente a aceitação incontestada da autoridade e, no plano externo, o reconhecimento da força. Se ao cenário juntarmos a quase ausência de mulheres, temos a imagem perfeita de um poder misógino e arbitrário que se celebra a si próprio. 

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                                Sei que a regra, para muitas pessoas perturbadas com a complexidade dos factos – não, não se trata de um linear conflito entre «bons» e «maus» -, ou com receio de ser injuriada, até por pessoas que considera (ou que até agora considerava), é falar o menos possível sobre o tema. O mesmo acontece com os setores, enredados na defesa de uma paz a todo o custo, que esquecem a necessidade de uma política de alianças em caso de guerra e tendem a equiparar um esforço de defesa a um plano de ataque. Uns e outros procuram meter a cabeça na areia, e isso passa por deixarem, mesmo neste espaço, de escrever sobre o tema ou sequer de o comentarem.

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                                  Este é um olhar sobre os efeitos na opinião pública da guerra na Ucrânia, não «apenas mais um artigo» sobre esta. O conflito, que de início comentadores e especialistas militares acreditaram terminar em uma ou duas semanas, está a completar oito meses sem que se vislumbre um quadro de paz. De facto, o aparente desequilíbrio inicial, fundado na força bélica da Rússia, foi rapidamente contrariado por dois fatores: de um lado, a ajuda dos Estados Unidos, da NATO e da União Europeia ao governo de Kiev; do outro, a preparação dos militares da Ucrânia e a valentia do seu povo, que contam com a enorme vantagem moral de conhecerem o terreno e se oporem a um invasor. Ao mesmo tempo, a capacidade militar de Putin revelou-se bem mais frágil do que se supunha, compensando a debilidade com a ameaça do potencial nuclear e a mobilização de reservistas.

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