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Próxima estação: Portugal?

Greece

Um fragmento da crónica de Clara Ferreira Alves – «Agora, estamos a enlouquecer» – saída hoje no suplemento Única do semanário Expresso. Não sei se o mail do amigo grego que cita é verdadeiro ou um mero artifício de cronista. Não importa, pois num caso ou no outro ele é demasiado real, confrontando-nos com um clima geral de desesperança, depressão e raiva que não augura nada de bom. Principalmente se as tentativas para encontrar uma saída continuarem a ser conjunturais, sem tino e sem norte. Desculpem se vos estrago o sábado.

«O que está a matar a Grécia é a incerteza, com a incerteza ninguém põe aqui um tostão. Querem que privatizemos mas quando privatizamos quem é que vai investir num país que é considerado, diariamente, perdido? As notícias sobre a Grécia matam a Grécia, os alemães ajudaram a matar a Grécia. Como querem que um devedor pague a dívida depois de estar morto? Quando nos emprestaram dinheiro ninguém quis saber se o íamos pagar. Ninguém. Toda a gente fingiu que não viu o que se estava a passar, a corrupção, os partidos a contratar as clientelas, as contas aldrabadas. Vir dizer que foram apanhados de surpresa, os devedores, é uma colossal mentira. Os gregos sabiam, os bancos sabiam, toda a gente sabia, e toda a gente ganhava dinheiro à custa disso. Esperar que um povo se reforme de um dia para o outro é um erro. Tempo é do que precisamos mais, e ninguém nos dá». E o pior de tudo? O que é que a crise faz às pessoas? «O pior é a tristeza. Depois da indignação e da raiva desce a tristeza. Em Atenas a tristeza é uma coisa espessa, uma escuridão que não levanta. As famílias zangam-se, os casais separam-se, os amigos desconversam, a existência torna-se impossível quando nada funciona, quando não há dinheiro. Atenas vive em estado de terror e protesto. Era uma cidade alegre, é uma cidade desavinda. É como se a vida tivesse sido sugada das ruas e as ruas servem para a batalha campal. Pessoas que viviam bem agora contam os tostões para comer amanhã. As pessoas estão a perder as casas, a comida, as escolas dos filhos. Nem a emigração nos ajuda, porque ser-se grego nos tempos que correm é uma maldição. O grego tornou-se a escória da humanidade, o símbolo de tudo o que está errado como mundo financeiro e a Europa. Ninguém nos quer, só querem as nossas ilhas e a posição no Mediterrâneo. E cresce o sentimento antialemão. Coisas do tempo da guerra vêm ao de cima, rancores, ódios, vinganças. Nunca mais vamos recuperar dos danos morais desta crise. Nunca. Uma parte de nós já morreu. Estamos num comboio descontrolado. A Grécia era a última estação. Já passámos».

    Apontamentos, Democracia, Olhares

    Tabaco da ilha

    Charutos Churchill

    Já aqui deixei há dias algumas notas sobre as razões que levarão Alberto João Jardim a ganhar de novo, eventualmente com maioria absoluta, as eleições para a Assembleia Regional que estão a decorrer. Nada tenho a acrescentar ao triste rol. Existe, todavia, um comentário adicional que importa fazer, tendo em consideração as sondagens que confirmam a tendência e a reação de muitos populares madeirenses a inquéritos de rua nos quais lhes perguntam o que acham das contas da região: os dados esmagadores que têm sido divulgados por entidades insuspeitas sobre a ocultação da dívida (não o excesso, pois esse não é exclusivo local, mas a ocultação) e o desvio sistemático de verbas das rubricas para as quais estavam previstas, aplicado ao longo de vários anos, muitas das vezes com a complacência medrosa do governo da República, não perturbam a esmagadora maioria dos eleitores de Jardim.

    Lá como cá, a ausência em muitas cabeças de um sentido claro e solidário de cidadania, o desinteresse pelos conceitos de honradez e credibilidade na coisa pública, impõem que a malfeitoria, desde que usada em proveito próprio, seja transformada em gesto admirável, em prova de esperteza, e o malfeitor seja convertido em paladino dos beneficiados. De onde vem o dinheiro e por que processos foi obtido, ou de que forma e por quem vai ele ser devolvido com os respetivos juros, tal não importa desde que nos alarguem a estrada, nos componham o coreto, nos dêem um autocarro novo para levar os miúdos, nos arranjem uma ocupação remunerada para a prima ou para o cunhado. Quem sofre com isto é obviamente a democracia representativa tal como a concebemos. Sim, esse péssimo sistema do qual dizia o outro senhor, que também fumava charuto e governava uma ilha, ser ainda assim o menos mau dos sistemas. O mais negativo da ideia está porém em pensar que não pode haver melhor. E se calhar pode.

      Apontamentos, Atualidade, Olhares

      O rapaz da maçã

      Steve Jobs

      Steve Paul Jobs (1955-2011). Para o bem (e para o mal, como sempre), deixou uma marca profunda, com toda a certeza duradoura, nas nossas vidas partilhadas. «Ser o homem mais rico do cemitério não me interessa», disse certa vez, «ir para a cama à noite a pensar ‘hoje fizemos algo de maravilhoso’ é que é importante para mim.» Foram poucos aqueles que puderam gabar-se de o terem feito tantas vezes antes de gastarem o seu crédito de vida.

        Apontamentos, Etc.

        Na ponta da língua

        língua

        Quase a consumarem-se cinco semanas (e meia) passadas sobre a adoção por este blogue do último Acordo Ortográfico da portuguesa língua. Agora por mim usado também na escrita praticada lá fora. Hesitei um pedaço antes de me decidir, condicionado por algumas dúvidas e atavismos. Forcei-me de certo modo a fazê-lo, empurrado em parte por determinados deveres. A verdade é essa e na altura tudo ficou explicado. O que posso dizer agora, após este tempo de ginástica e aprendizagem, é que me custou muito menos dar o salto do que inicialmente supunha. De facto (sim, com c), até me tem dado algum prazer renovar a escrita e perceber, e sentir, e fruir, o modo como a distância entre ela e a fala se encurtou e tornou até mais natural. Só me custa ainda, e provavelmente continuará a custar um tanto, escrever com minúscula o nome dos meses e das estações do ano. Coisa pouca, afinal. Menos que apanhar uma vacina.

          Apontamentos, Etc., Oficina

          Snobismo (ou Aimez-vous a Nona Sinfonia?)

          Slavoj Žižek

          Se não fosse o facto de ser uma citação de outrem, o parágrafo que vou transcrever poderia deixar no ar uma falsa (mas justificada) sensação de lamentável arrogância. Não que, contrariando a proclamação de Boris Vian, tenha alguma coisa contra a nobre arte do snobismo, mas nem sempre é prático dizermos de forma clara e um tanto ostensiva aquilo que realmente pensamos. Copio então um passo de Viver no Fim dos Tempos, de Slavoj Žižek (ed. Relógio d’Água).

          A única prova do gosto está no facto de uma pessoa saber como apreciar ocasionalmente coisas que não correspondem aos critérios do bom gosto – em contrapartida, quem segue demasiado estritamente os critérios de bom gosto, limita-se a exibir a sua completa falta de gosto. (Analogamente, alguém que exprime a sua admiração pela Nona Sinfonia de Beethoven ou outra obra-prima da civilização ocidental denuncia no mesmo momento a sua ausência de gosto – o verdadeiro gosto exibe-se elogiando uma peça menor de Beethoven como superior aos seus «maiores êxitos».)

          A aceitação universal deste princípio impõe todavia algumas ressalvas. Assim, o estilhaçamento do cânone ocidental em plena modernidade líquida, levando a uma reavaliação do que em tempos foi entendido como secundário, menor, descartável, permite reconsiderar a noção de bom gosto, ou de gosto original, aplicada a uma obra ou a um objeto. Retomando o exemplo do músico alemão nascido em Bona: num grupo de cem pessoas incapazes de reconhecerem os cinco primeiros compassos da sua Quinta Sinfonia – e, acreditem, atualmente não é difícil encontrá-las – a simples enunciação da peça perde o efeito kitsch que lhe é associado em alguns meios, podendo a sua reprodução tornar-se até um momento de deleite e de treino… do gosto. Aliás, a requalificação do próprio kitsch permite tomá-lo com um prazer legítimo e, em algumas circunstâncias, «bom» até. Provavelmente, o melhor será então não sermos preconceituosos e aceitarmos a relatividade das noções e das formas de gostar de alguma coisa. Provavelmente. Mas por vezes é um tanto difícil consegui-lo. Maldito snobismo.

            Apontamentos

            Syd (e os outros Floyd)

            Syd Barrett

            Tentando contrariar um injusto apagamento. A propósito da recente edição remasterizada da discografia dos Pink Floyd, revistas e suplementos alinham sínteses do trajeto de uma das bandas da música popular anglo-saxónica que mais venderam (e vendem), e que maior capacidade tiveram de conservar uma admiração que atravessa gerações. É fácil hoje encontrar homens de sessenta anos, trintões desgastados ou putos de doze que gostam dos Floyd, conhecem de memória uns quantos temas, e um dia tiveram, contra a vontade das mães, um poster deles numa parede do quarto. Em particular entre os que recordam a fase inaugurada com Dark Side of The Moon (1973), mais melódica e com maior impacto comercial, que é também a menos interessante. Os artigos da imprensa têm pois alinhado fotografias de Waters, Gilmour, Mason e Wright, não se esquecendo de evocar a dimensão dos megaconcertos e de contabilizar a magnitude das vendas. Só que tem sido praticamente ignorado o rico período criativo de 1964 a 1968, claramente menos previsível e dominado pela presença inovadora do guitarrista, vocalista e compositor Syd Barrett.

            Foram dele, de facto, os dois primeiros álbuns dos Floyd (The Piper At The Gates of Dawn e A Saucerful of Secrets), e foi ainda debaixo da influência psicadélica e ácida da sua música que foram compostos, já em 1969, os seguintes More e Ummagumma. Todavia, no ano anterior, enquanto a banda se tornava cada vez mais popular, a vida de estrada, o consumo de LSD e a propensão para a depressão tinham transtornado rapidamente o comportamento de Barrett, cada vez mais estranho e incapaz de comunicar com os companheiros e com o público que se juntava para os ouvir. Os restantes membros da banda decidiram então não levar mais Syd consigo para os concertos, substituindo-o por David Gilmour, principal responsável pela sonoridade açucarada de lead guitar que os Pink Floyd adotaram a partir dessa altura e que para as multidões se tornou aquela que reconhecem. Quanto a Syd, ainda editará em 1970 dois interessantes álbuns a solo (The Madcap Laughs e Barrett), afundando-se depois, apesar de pontualmente recordado por alguns dos sobreviventes da época, numa vida de apagamento, reclusão e doença. Morreu em Julho de 2006. Poucas semanas antes fora visto a deambular sozinho pelas ruas próximas da sua casa em Cambridge.

            [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=LNbcbh2JH_I[/youtube]
              Apontamentos, Biografias, Memória, Música

              Lembrando Kurt

              Kurt Sanderling

              Sei que não saiu nas primeiras páginas nem se falou nos telejornais da morte a 18 de setembro, um dia antes de completar os 99, do maestro Kurt Sanderling (1912-2011). Alemão, nascido em Arys, hoje uma cidade polaca, judeu filho de judeus, fugiu dos nazis em 1936 e viveu cerca de trinta anos na União Soviética, onde após um estágio profissional em Novosibirsk, na Sibéria, veio a dirigir a Orquestra Sinfónica da Rádio Moscovo e a Filarmónica de Leninegrado. De regresso à Alemanha no início dos anos sessenta, foi maestro principal na Sinfónica de Berlim (a arquirrival da ocidental Filarmónica, de Karajan) e na Dresden Staatskapelle, mudando-se depois para Londres onde durante muitos anos dirigiu a Orchestra Philarmonia. Trabalhou também, mais episodicamente, nos Estados Unidos, no Japão, em Espanha e noutros países europeus, abandonando a profissão apenas aos 90 anos. Do património sonoro que nos deixou, um destaque para grandes interpretações de Beethoven, Brahms, Schumann, Mahler, Bruckner, Sibelius e Chostakovitch, tendo aliás sido amigo e confidente deste. Foi justamente graças a Sanderling que aprendi a gostar dos dois últimos, os grandes compositores do século XX que me ajudaram a olhar o Grande Norte e a Rússia soviética de uma maneira talvez menos incompleta. Terá sem dúvida sido por isso – e porque guardo ainda algumas gravações históricas – que a curta notícia do seu passamento não me passou despercebida. Nem me foi indiferente.

              Vídeo: 3º Andamento da Sinfonia No. 5 de Jean Sibelius. Com a Orquestra Sinfónica de Berlim em 1976.

              [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=fmEc8KL59FI[/youtube]
                Apontamentos, Artes, Biografias, Música

                Viagens perfeitas

                No comboio

                Ainda sobre a beleza dos comboios e da corrente de vida, de ar e de calor que a partir deles é possível desfrutar, recorto um fragmento da crónica de Antonio Muñoz Molina («Apunte de Alemania») publicada no suplemento Babelia deste sábado. Traduzido livremente.

                Há lugares perfeitos. Há via­gens perfeitas. A viagem de comboio numa manhã de domingo entre Hanôver e Munique, por exemplo. Es­tá nublado e ténues grinaldas de nevoeiro flutuam sobre os prados ou sobre as encostas com grandes bosques de coníferas. O único defeito que encontro na maior parte das viagens de comboio nestes tempos é que duram muito pouco. O comboio de Hanôver para Munique é bastante bom, é ótimo, confortável e rápi­do, silencioso também, e mais ainda nesta manhã na qual por ser dia de festa há menos viajantes. Não é um comboio de alta velocidade, sem dúvida, nem faz falta alguma que o seja. É um comboio perfeito. A luz do dia nublado torna ainda mais acolhedor o interior das carruagens. Quase todos os passageiros vão a ler os seus pesados jornais de domingo. Um dos muitos inconvenientes de não saber alemão é não poder desfrutar gulosamente dessas páginas tão amplas mas para as quais, ao mesmo tempo, tanto parece importar a palavra escrita. O rumor das páginas dos jornais vai dando ao silêncio do interior do comboio uma qualidade de atmosfera de biblioteca. O movimento é tão regular que me permite tirar tranquilamente apontamentos num caderno. Demasiadas tentações que é preciso desfrutar de maneira simultânea, para não prescindir de nenhuma: observar os prados e os bosques, os rios de curso opulento e tão calmo que refletem nitidamente na sua superfície as árvores das margens e as nuvens passageiras, as aldeias de telhados angulosos muitas vezes cobertos de painéis solares, as agulhas de ardósia das igrejas, as fábricas que imagino de produtos supertecnologicos mas que não ofendem a paisagem. E ainda a leitura, sem tirar os olhos do livro que me tem acompanhado nestas idas e vindas desde que saí de Madrid.

                  Apontamentos, Olhares, Recortes

                  Marcas geracionais

                  Essa do «disco que marca uma geração» tem que se lhe diga. Como o próprio conceito de geração, que pode ser útil quando se olha o tempo de uma certa distância mas tem o inconveniente de fabricar generalizações, diluindo experiências singulares, caminhos que foram ínvios, vozes que fizeram o seu percurso em ziguezague. As referências que identificam a geração são, pois, flutuantes e de significado muito relativo, tendo só valor de referência. E muitas vezes a referência de uma geração representa algo de muito diferente para a seguinte. Um bom exemplo disto foi dado agora pela  evocação planetária, de forte teor nostálgico, do concerto ao vivo que resultou do reencontro de Paul Simon e Art Garfunkel no Central Park de Nova Iorque, ocorrido em 19 setembro de 1981. Lembro-me bem, muito bem mesmo, desse concerto, que vi pela televisão como tantos milhões de pessoas, para além das 500.000 que o viveram no local, e do enorme enfado que na altura me provocou. Nessa tarde a anoitecer, ouvindo versões um tanto espaventosas e já com um brilho algo artificial das canções sentimentais ou rebeldes que amara quinze anos antes – como «Mrs. Robinson», «America», «The Sounds of Silence» ou «50 Ways To Leave Your Lover» – percebi que a página de Simon and Garfunkel tinha sido voltada e que estava agora perante dois simpáticos vestígios dos bons velhos sixties. Que era melhor continuar a olhar à volta em vez de ficar paralisado a imaginar-me «Still Crazy After All These Years».

                  S & G quinze anos antes, em 1966, quando interpretavam «I am a Rock» com outra energia:

                  [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=ealhxti03pk[/youtube]
                    Apontamentos, Memória, Música, Olhares

                    Memórias de um leitor #2

                    A Ilha do Tesouro

                    Em tradução de Alsácia Fontes Machado para a «Biblioteca dos Rapazes» da Portugália, foi este A Ilha do Tesouro o primeiro livro apenas com letras miúdas que me recordo de ter lido. Um Robert Louis Stevenson de capa mole desenhando o estereótipo do pirata e revelando – «só para mim», como eu imaginava, como esperava cada pequeno leitor – o mapa marcado com um X que todos insistimos em procurar.

                      Apontamentos, Memória, Séries

                      Repórteres de guerra

                      Como a própria guerra, o jornalismo que faz dela objeto não se limita aos episódios mais sangrentos da frente, à observação dos destroços ou aos meios da ação política que, invertendo o conhecido aforismo de Clausewitz, fazem a guerra por outros meios. Em regra, as reportagens mais interessantes produzidas em teatro de conflito não são as que descrevem os combates, os avanços e os recuos dos exércitos ou das milícias, mas antes as que retratam em primeiro plano os seus atores e figurantes, soldados e civis, perpetradores e agentes, vítimas e espetadores. No atual conflito líbio, são por isso exemplares e particularmente impressivas as reportagens que Paulo Moura tem escrito para o Público e Juan Miguel Muñoz para o El País. Sendo diferentes os cenários que cada um deles escolhe – Moura, mais na retaguarda, insiste na dimensão humana de quem viu as rotinas voltadas do avesso, Muñoz, perto da frente, sublinha a ansiedade, o medo e a esperança dos que se preparam para combater – ambos oferecem testemunhos de uma verdade antiga, relatada já por William Russell, que nas campanhas da Crimeia estabeleceu o género trabalhando para o Times. Revelam como é em situação de conflito armado que a solidariedade entre os que partilham um destino é levada ao extremo e que a perceção da transitoriedade dos hábitos e das convicções, da sua importância relativa, se revela mais perfeita, mais percetível, passando tudo o resto para um distante segundo plano.

                        Apontamentos, Atualidade, Etc., Olhares

                        Cérebros e corações

                        Em When Harry Met Sally, por cá Um Amor Inevitável, a comédia romântica de Rob Reiner filmada no final dos eighties com Billy Crystal e Meg Ryan, uma linha de diálogo faz soar uma verdade numa tonalidade lamechas que por sê-lo não lhe faz perder a exatidão. «Os nossos cérebros são bons a registar datas e factos que podem ser esquecidos quando já não são necessários. Mas nada do que é bem guardado nos nossos corações alguma vez se perderá.» Provavelmente uma das deixas mais despretensiosas e certeiras da história do cinema.

                          Apontamentos, Cinema, Olhares

                          Memórias de um leitor #1

                          Contraste

                          A capa do número de Agosto-Setembro de 1986 da interessante, (“pós-“)moderna e humorosa Contraste, dirigida por Miguel Portas, era assim. Na revista colaboravam também Guiomar Belo Marques, Joaquim Margarido, Luís Calhau, Rui Zink (criador desta capa), Paulo Varela Gomes, Henrique Cayatte e muitos outros. Custava 75 escudos.

                            Apontamentos, Memória, Séries

                            Thomas Mann e o FBI

                            Thomas Mann

                            O escritor Thomas Mann, humanista après la lettre e homem estruturalmente conservador, cujas convicções mais estáveis mergulhavam na cultura alemã de Oitocentos, teve durante o exílio americano, em conjunto com os filhos Klaus e Erika, um processo de mais de mil páginas aberto pelo prestimoso Federal Bureau of Investigation. Segundo Rob Riemen, a acusação mais notável que ali pode ser encontrada é a de «antifascismo prematuro», isto é, resistência ao fascismo antes dos Estados Unidos da América declararem guerra à Alemanha no final do ano de 1941. Corriam os tempos turvos do McCarthismo e a sua atitude, de acordo com os aplicados investigadores do FBI, só poderia dever-se a uma simpatia não declarada pelo comunismo.

                              Apontamentos, História, Olhares

                              Os arrependidos

                              fuck off

                              Releio dois parágrafos de Claudio Magris, em Danúbio, nos quais o escritor recorda certos frequentadores do clube Strohkoffer, na Viena dos anos 50 e 60, e revejo aquelas pessoas pelas quais todos passamos – ou que pelo nosso bairro físico e imaterial continuam a mostrar-se – cuja radicalidade alardeada, mas invariavelmente falha de inteligência e humanidade, se transvestiu rapidamente no seu reverso. E naquelas outras que em sentido contrário são capazes de escalar as suas circunstâncias e ir alimentando, devagar mas com segurança, sem mais ruído que o necessário, a heróica capacidade de infringir.

                              Nos seus «actos poéticos» de exibição, que pretendiam transformar a vida, havia a ingenuidade persistente de quem julga transgredir a lei do Pai despindo as calças, a presunção patética de programar a espontaneidade por encomenda e a arrogância dos que se crêem anunciadores de um novo evangelho clownesco-orgástico-cibernético, com muito pouca novidade.

                              Hoje seriíssimos volumes académicos celebram esse «ativismo» poético e ostentam com gravidade ideológica as fotografias de autores que se apresentavam ao público nus, a fazer chichi, mergulhando a pila em jarros espumantes de cerveja e amontoando-se em atitudes que gostariam de ser obscenas, quer dizer, originais e inocentes. A tudo isto falta cruelmente a invenção, o autêntico nonsense, a fantasia imprevisível, a ironia: a nudez e os gestos provocantemente ostentados são previsíveis como as fardas dos cadetes numa academia militar. Hoje, os ex-iconoclastas ganharam juízo, como os goliardos que se transformaram em notários, proferem conferências na universidade e criticam 1968.

                                Apontamentos, Olhares, Recortes

                                Outras musas

                                Vespa

                                Falava sobre a presença das musas. Pensava levianamente que para aquele público de estudantes seria como falar da morte, do riso ou do gin tónico, realidades sensíveis que qualquer um reconhece culturalmente pelo reflexo, sem a necessidade de grandes explicações. Referia-me pois às nove hiperativas e instáveis filhas de Zeus e de Mnemósina, capazes, por mais de dois mil anos a trabalhar em full-time, de soprarem ao ouvido do comum dos mortais o génio necessário ao ato de criar. Mas falava também daquelas outras, figurações imaginadas do homem querido ou da mulher amada, capazes de inquietarem todo aquele – mesmo o descrente ou o lobo solitário – que espera alguém capaz de sussurrar-lhe ao ouvido, no momento certo, a fórmula para suplantar a mediocridade. A surpresa ficou a dever-se a naquele instante nem uma só de entre as cinquenta boas almas presentes ter sido capaz de esboçar a fisionomia ou de descrever uma só das habilidades de Euterpe, Clio ou Terpsícore. Ou sequer de as inventar, como lhes sugeri.

                                Não concluí no entanto que as esguias figuras que cruzam o mito e a vida pudessem ter abandonado os bosques, as fontes e as bordas dos riachos onde costumam ocultar-se, retornando, fartas das nossas hesitações, ao velho Olimpo ou à pacatez dos textos clássicos, deixando-nos desolados nas mãos da apatia e da ignorância. O que tem acontecido é apenas uma metamorfose, capaz de libertá-las do fortuito das suas circunstâncias, do aspeto demasiado helénico ou próximo dos frescos arrebatados de Veronese, de uma sexualidade pouco equívoca. Tornadas outras, como mutantes, circulam agora táteis no meio de nós, servindo-se de smartphones ou ipads, vestindo roupa colorida, usando lentes de contacto, atravessando as ruas de capacete em vespas prateadas, trabalhando em edifícios climatizados. Tão próximas da imaginação quanto da vida de todos os dias. Reformulando as fábulas, trocando as máscaras, confundindo os papéis, oferecendo os corpos, partilhando vontades. Fartaram-se dos enredos desgastados e procuram outros mais convincentes. Para as vermos basta acreditarmos nelas.

                                  Apontamentos, Devaneios, Etc., Olhares

                                  A guerra às avessas

                                  As imagens até há poucos dias chegadas do conflito na Líbia, mostrando o seu lado desregrado imposto pelo voluntarismo dos insurgentes, foram ampliadas agora que desceram à grande cidade. Em Tripoli, observamos no terreno uma espécie de manual ilustrado da forma de não fazer a guerra. A cadeia de comando é impercetível ou pelo menos irreconhecível, ultrapassada por uma horda que combina deserdados do sistema com uma massa de jovens que, afora o pormenor das armas, se apresentam ao combate como se estivessem a caminho do Festival do Sudoeste. Avançam desafiadores, arrogantes, mas mal armados, pior equipados e em completa desordem. Movimentam-se em campo aberto, usando bonés de basebol brancos ou coloridos detetáveis a olho nu pelos atiradores inimigos, t-shirts do Inter de Milão ou com a efígie do Che, keffyehs iguais aos da Fatah, corsários de marca e sandálias havaianas. Disparam em todas as direções, a qualquer momento, gastando munições sem um sentido claro ou objetivo percetível, sem precisar um alvo do qual não possuem quaisquer coordenadas, por vezes com companheiros na provável linha de tiro.

                                  Nestas condições, é inevitável que uma grande parte das mortes e ferimentos seja autoinfligida. A ocupação do complexo de Bab Al-Aziziyah foi particularmente notável sob este aspeto, assistindo meio-mundo, em direto pela televisão, ao que parecia ser uma réplica de um imenso e ruidoso mercado árabe, com pessoas circulando aos magotes em todas as direções, conduzindo pickups em derrapagem como se fossem burros de carga em versão turbo, transportando objetos roubados, aqui e ali tentando mesmo vender algumas coisas aos jornalistas ocidentais. Mas se gente nestas condições pôde avançar desta maneira e conquistar terreno tão depressa, isso só pode querer dizer que, para além da importante ajuda militar da NATO, o regime de Khadaffi se encontrava ainda mais dividido e isolado das pessoas comuns do que poderíamos ingenuamente imaginar. Só neste cenário podemos entender que tenha sido possível chegar-se a um tal ponto de não-retorno, fazendo tábua rasa dos manuais mais elementares da arte da guerra clássica ou dos princípios consagrados da guerrilha urbana. Ainda assim é extraordinário não se ouvirem apelos ao bom-senso táctico e a uma atitude cívica que pouparia muitas vidas.

                                  A partir de hoje os posts publicados seguirão as regras do último Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

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                                    Não há revoluções perfeitas

                                    Não há revoluções perfeitas e ainda bem que assim é. As revoluções imperfeitas que procuraram fazer-se passar por perfeitas transformaram-se rapidamente em instrumentos de uma ordem social imposta, tendencialmente despótica, crescentemente violenta e opressiva, que de revolucionário manteve apenas o rótulo e a retórica. Aconteceu com todas aquelas que irromperam depois de deixarem amadurecer os «grandes princípios» e os programas que deveriam ser aplicados com mão de ferro após a vitória da nova ordem. Aconteceu como a francesa, a russa, a chinesa ou a iraniana. Por isso são sempre mais admiráveis as revoluções inacabadas, como a portuguesa, a checa ou a egípcia, que nasceram de princípios vagos e sem um programa claro, que apenas prepararam o terreno para uma mudança de longo curso, inevitavelmente complexa e contraditória, a percorrer em ziguezague, que só a realidade vivida poderia ou poderá ditar.

                                    O que importa nas revoluções imperfeitas é pois o instante, o ponto de viragem, o momento de fuga em relação ao passado, a possibilidade de transformar, a consciência de se viver um tempo rigorosamente único de libertação colectiva de uma ordem injusta e indesejada. O que nelas conta é acima de tudo, e talvez exclusivamente, o voltar anárquico da página. Por isso, antes a projecção da esperança e a consciência da possibilidade da mudança – ainda que esta vá alterando os sentidos, e possa trazer consigo muita desilusão – do que o conformismo e a inacção perante as tiranias bloqueadas. Ou a expectativa de um sinal que mostre o momento ajustado para a tal revolução exemplar, feita com os aliados absolutamente certos e em nome da inquestionável «linha justa». É nisto que deveriam pensar um pouco os cépticos crónicos das revoluções desprogramadas, para quem, como na popular chula do Minho, «p’ra pior já basta assim». Estou a falar da Líbia, obviamente.

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