Arquivo de Categorias: Apontamentos

Não se faz, Blondie!

Deixei há semanas aqui um texto dececionado – embora não surpreendido, dada a sua antiga e pública parcialidade pelos republicanos – motivado pelo apoio de Clint Eastwood, nas presidenciais americanas em curso, ao tosco, belicista e perigoso Mitt Romney. Entretanto o patético «discurso da cadeira», apresentado como peça central da encenação do Partido Republicano que confirmou a candidatura de Romney, transformou a mera deceção no reconhecimento de uma afronta. A apropriação de imagens de Clint que fazem parte do património de todos os amantes do cinema, de pessoas de convicções muito diferentes, de gentes de origem, língua e sensibilidade que não jogam necessariamente umas com as outras, para servirem como cenário da intervenção do ator-realizador, eram completamente evitáveis. É desde logo de um primarismo cenográfico pavoroso, mas representa também um roubo à mão armada de uma parte do imaginário partilhado que não é (e nunca foi) propriedade de Mr. Eastwood. Sergio Leone, que no ano de 1966 o transformou no Blondie de The Good, the Bad and the Ugly e era um homem da esquerda, infelizmente, já por cá não anda para poder protestar.

    Apontamentos, Cinema, Olhares, Opinião

    Angola 2012

    Por um conjunto de razões que não tenho agora tempo para esclarecer, as eleições parlamentares de hoje em Angola fazem-me rememorar uma frase de Paul Theroux deixada no seu Viagem por África: «Em países onde os políticos corruptos se vestem todos de fatinho às riscas, as melhores pessoas andam esfarrapadas.»

      Apontamentos, Atualidade, Olhares

      Há espelhos

      HÁ ESPELHOS

      – em que de uma forma confiada
      nos vamos olhando
      todos e cada um dos nossos dias –

      que de repente
                     se partem
      e deixam ver
                 nos seus pedaços gelados
      essas facas de que eram feitos.

      Lorenzo Oliván – de Visiones y revisiones
      (Trad. de Joaquim Manuel Magalhães)

       

        Apontamentos, Poesia

        Nelson por ele mesmo

        No dia exato em que Nelson Rodrigues, do Recife e do Rio, deveria fazer 100 anos.

        «Hoje é muito difícil não ser canalha. Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo.»

        «O homem não nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já o desumaniza. Por exemplo: um ministro. Não é nada, dirão. Mas o facto de ser ministro já o empalha. É como se ele tivesse algodão por dentro, e não entranhas vivas.»

        «Acho a velocidade um prazer de cretinos. Ainda conservo o deleite dos bondes que não chegam nunca.»

        «Toda a unanimidade é burra.» (mais…)

          Apontamentos, Biografias, Olhares, Recortes

          O BE, a dúvida e a incerteza

          Não parece que a proposta de dois rostos para coordenar o Bloco de Esquerda possa ser uma boa ideia. Para além da sua justificação mais simples surgir associada por Francisco Louçã a um certa dose de novidade e de imaculada correção política – de fundamentação e de eficácia, aliás, bastante duvidosas –, evidencia a intenção óbvia de esbater, através dessa forma de representação «bicéfala», alguns dos problemas mais óbvios desse equilíbrio político interno que se encontra na matriz do Bloco e com o qual, desde a fundação, este tem convivido sem dramáticas ruturas. Trata-se de uma sugestão bastante discutível, que, a concretizar-se, pode ter custos políticos muitíssimo elevados. Desde logo por ser um óbvio caso de «meter a carroça à frente dos bois», indicando um novo modelo de direção sem que este venha associado a um programa político claro, realmente renovado e com capacidade de mobilização. Mas também porque, se for consumada, terá consequências difíceis de prever e certamente nada positivas para o partido.

          Num mundo como o atual, submetido à omnipresença dos média e à força imensa da imagem, numa sociedade em crise aguda como esta em que estamos, no sistema político representativo como aquele em que vivemos, o papel da liderança é, para os partidos, ainda crucial na agregação de apoios, na mobilização do universo eleitoral e na negociação de soluções. Por isso, ela deve ter um rosto único, expressivo, com autoridade política determinada pela biografia de quem a personifica, com capacidade para fazer convergir diferenças, com estofo político e humano para saber propor metas, para moderar os inevitáveis problemas pessoais e conflitos internos, para ser a voz do coletivo na primeira linha dos combates mais necessários. Ora uma solução como esta, frágil e de confeção burocrática, de facto de continuidade e de «consenso possível», sabe a remédio amargo e não parece responder a estas necessidades. A ocorrer, só pode trazer maus resultados para o Bloco e más notícias para quem nele deseje encontrar uma parte forte da solução para o futuro próximo deste país em tormenta.

          [O segundo parágrafo foi ligeiramente retocado cerca de uma hora depois de publicado.]

            Apontamentos, Atualidade, Opinião

            Monstruosidades

            Na mitologia grega, Ortro, o cão bicéfalo, filho da mulher-serpente Equidna e de Tifão, que tinha cabeça de cavalo e comandava os ventos fortes, era irmão do tricéfalo Cérbero, o terrível guardador do Hades, lugar de destino dos mortos. O dono de Ortro era o pastor Gerião, disforme gigante de três cabeças, três corpos, seis asas e seis braços que se apoderou dos bois vermelhos destinados a Hércules. Motivo pelo qual este o matou.

              Apontamentos, Etc.

              Indignação seletiva

              O mesmo jornal Avante! que se aplica, sem um momento de quebra ou desânimo, a vituperar como «terroristas» todos aqueles que na Síria se opõem ao regime de Al-Assad, não tem uma palavra na sua edição online sobre o massacre, ou sequer a dura luta por melhores condições salariais, dos mineiros sul-africanos. Nem sobre a atuação reivindicativa e iconoclasta que culminou com o castigo brutal imposto agora às três Pussy Riot. Nem sobre a campanha de intimidação com a qual o governo angolano está a tentar impedir qualquer surpresa eleitoral.  Para o PCP, um ANC cada vez mais autoritário, a Mãe Rússia, bastião do anti-imperialismo, e o MPLA, «partido do trabalho», ainda não tombaram do altar. Convém tomar nota.

                Apontamentos, Atualidade

                A camisola amarela

                Quando era criança costumava passar o Agosto inteiro na praia da Figueira da Foz. Umas semanas bastante aborrecidas, ocupadas com infinitas horas de vagas e areal, intervaladas de sestas, merendas e sonos noturnos para descansar do excesso de mar, sol e areia. Num certo ano, porém, os meus pais resolveram aproveitar a altura, sem pedirem opinião, para tentarem fazer de mim um desportista, inscrevendo-me por atacado em três cursos de formação. Um ensinava a andar de patins e o objetivo era, naturalmente, prepararem o futuro jogador de hóquei: fui a uma única lição, estatelei-me duas vezes e desisti logo ali. Outro curso ensinava natação mas percebeu-se imediatamente que aquele não era o meu ambiente natural: enquanto as outras crianças começaram a nadar à quarta ou quinta aula, e eu só o consegui, e mal, à décima segunda. (mais…)

                  Apontamentos, Atualidade, Memória

                  Berlim 61 e a morte de Günter Litfin

                  Na noite de 12 para 13 de Agosto de 1961, precisamente às duas da manhã, começou em Berlim, sob a direção de Erich Honecker, secretário do Comité Central do Partido Socialista Unificado da Alemanha para os assuntos oficiais, a construção do muro destinado a separar as zonas de ocupação francesa, britânica e americana da área então controlada pelos russos. Para a União Soviética e as autoridades da República Democrática Alemã, responsáveis pela decisão, esta destinava-se a «defender» a sua forma peculiar de socialismo da «agressão capitalista». Na verdade, o primeiro objectivo foi pôr termo ao êxodo massivo da população da Alemanha Oriental, que representava uma enorme hemorragia demográfica e económica para o bloco de Leste e abalava a sua imagem internacional. (mais…)

                    Apontamentos, História, Memória

                    A espionagem que veio do frio

                    Berlim
                    Berlim. Fotografia de brain d. bug

                    Uma das formas de desrespeito pelos direitos dos outros – e também de aviltamento da condição humana – passa pelo uso seletivo, contra alguém ou contra grupos, de insinuações, meias-verdades ou completas mentiras. Pode ser que quem o faça consiga os seus intentos imediatos, mas não ganha com isso, com toda a certeza, a consideração de quem se apercebe de tais estratagemas. Eis uma «lei universal» que a todos se aplica: não é possível respeitar quem, para obter vitórias fáceis e rápidas, ou para depreciar publicamente alguém, recorra à mentira ou à manipulação das palavras. Fazê-lo é, entre outras coisas, sinónimo de falta de transparência e de caráter. As duas ou três pessoas com quem nesta vida me incompatibilizei, justificaram a minha atitude justamente pelo uso reprovável da manipulação, da mentira, da depreciação de outros. Distorcendo as suas palavras ou fazendo eco, sabendo o que faziam, de calúnias produzidas por terceiros. Produzindo pravda, «verdade revolucionária», em vez de verdade. (mais…)

                      Apontamentos, Atualidade, Olhares, Opinião

                      História pouco edificante

                      Em Dezembro de 1949, no mesmo ano em que foi proclamada a República Popular da China, Mao Tsé-Tung fez uma visita de Estado a Moscovo e a Estaline. Levou consigo uma autêntica arca do tesouro de ofertas chinesas e vários vagões carregados de arroz. Muitos dos ornamentos de laca ainda hoje decoram as paredes do apartamento, situado na Rua Granovski, onde Molotov viveu. Já o arroz, então um bem raro na capital soviética, foi distribuído pelos altos dignitários do Partido. Em troca, segundo conta Simon Sebag Montefiore, Estaline ofereceu os nomes dos agentes soviéticos infiltrados no Politburo dos comunistas chineses. De regresso a Pequim, como seria de prever, Mao liquidou-os imediatamente.

                        Apontamentos, Etc., História

                        Mestre de culinária

                        Avô paterno do atual senhor do Kremlin, Spiridon Ivanovich Putin (1879–1965), foi um caso único da arte culinária ao serviço do poder instalado em Moscovo. No tempo do czar chegou a cozinhar para o monge Rasputine, mas fez carreira principalmente como chef privado de Lenine e de Nadia Krupskaia, bem como de José Estaline. Depois da morte deste trabalhou ainda numa dacha do Comité de Moscovo do PCUS. Pelo que dele conta o neto, parece que era pouco falador e particularmente reservado a respeito dos episódios aos quais pôde assistir a partir do excelente posto de observação que é sempre a cozinha dos poderosos. Não deixa de ser curiosa a ligação deste homem silencioso e esquecido com os três grandes regimes da Rússia contemporânea.

                          Apontamentos, Etc.

                          Os artistas, nós todos

                          Talking. Fotografia de Sébastien Tabuteaud

                          O cerco imposto pela «política do real», aquela que apenas atende aos dados objetivos, ao deve e ao haver, às necessidades materiais mais elementares, a metas quantitativas, é, entre os partidos da democracia, protagonizado agora pela quase totalidade do espetro político. À direita porque essa é a atitude natural, esquecidos que foram, levados pelo tempo, os impulsos do velho personalismo a propósito da «comunidade de pessoas», depois adotados pela defunta democracia cristã. À esquerda porque se desistiu de pensar uma política do impossível – indispensável para projetar a mudança – em favor do pragmatismo que apenas olha para o ritmo das refeições. Passo pelas palavras do Padre Manuel Antunes, publicadas em 1979 no seu notável Repensar Portugal, e revejo a premente necessidade de voltarmos a procurar naqueles que pensam de forma imprevisível – em confronto com as necessidades humanas, mesmo as mais íntimas e imateriais – o caminho da esperança e do futuro.

                          Que espécie de sociedade desejamos? Que espécie de sociedade deseja o povo português? Ouso interpretar. De resto é essa uma das funções, se não a principal função do intelectual na cidade. Para além, claro, da missão de defender o seu próprio ideal e as suas pró­prias opiniões, mesmo quando esse ideal e essas opi­niões não vão ao sabor dos senhores da hora. O intelectual não deve ter medo de ser ou parecer diferente dos outros, de querer escapar ao nivelamento univer­sal em que, por via de regra, esses mesmos senhores pretendem rasoirar os que, de uma certa forma, lhes estão sujeitos. Por isso, como avança Oskar Morgenstern, os governos fazem mal em só prestarem atenção aos dados sociais, económicos e técnicos dos mundos que administram. Deviam também consultar os artistas pela sua «extraordinária presciência» do que se passa ou vai passar na profundidade desses mesmos mundos.

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                            Bibliocrime

                            Existe quem defenda que roubar livros não é crime, uma vez que os bens culturais devem dispor de trânsito livre, universal e gratuito. Ressalvando os casos em que o ladrão tem em vista a raridade bibliográfica que pode seguramente valer uma boa maquia, trata-se de um produto do qual realmente só se apropria sem passar pela caixa registadora quem é um real connaisseur ou dele precisa mesmo. Rouba-se então pelo gosto, para alguns pela necessidade, de ler. Ou então pela compulsão bibliófaga. Rimbaud roubava livros, e Genet, como não podia deixar de ser, também o fazia. Sei de cidadãos, alguns de perfil público, que em dado momento das suas vidas, por aperto financeiro ou gosto do risco, se dedicaram com tenacidade e bom proveito a essa pequena mas nobre arte. Que fiquem descansados em relação aos efeitos casualmente perniciosos da minha memória, pois não sou delator. Além disso, e para ser sincero, não estou em condições de poder garantir não ter eu próprio sucumbido no passado à cobiça, deixando-me envolver – devido provavelmente às más companhias – no emocionante submundo da transgressão associada ao consumo de produtos brochados ou encadernados. (mais…)

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                              Futebol e desencontros

                              Como no amor, aconteceram, na história da literatura, das artes ou da filosofia, desencontros que poderiam ter sido belos encontros. Possíveis que se revelaram impossíveis. Karl Marx e Charles Darwin tiveram uma reunião prevista, marcada por um amigo comum, mas esta acabaria por não acontecer. Soljenitsine e Nabokov falharam por muito pouco uma prometida conversa. E nos anos quarenta Orwell marcou um encontro com Camus em Saint-Germain-des-Prés, mas como este se atrasou um pouco, aborreceu-se e foi-se embora. Conhecendo o percurso de ambos, as causas que partilharam, as marcas que deixaram, aquele poderia ter sido o princípio de um belo entendimento. (mais…)

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