Author Archives: Rui Bebiano

Inimigos da rede

Por causa das medidas tomadas pelo governo ditatorial da Birmânia no sentido de cortar as comunicações com o exterior, o suplemento Digital (do Público) desta semana incluiu um artigo sobre «Quando os governos preferem que o seu país fique offline». Particularmente elucidativa é uma caixa na qual se inventariam os processos utilizados em dez dos Estados cujos governos são colocados entre os piores inimigos do uso livre da Internet.

Na base desta lista negra, encontram-se o Panamá (as centrais telefónicas conseguiram ali que o governo impedisse o acesso à tecnologia VoiP utilizada pelo Skype) e os Estados Unidos (onde o Ministério da Defesa bloqueou o acesso, nos cinco milhões de computadores dos seus serviços, a sites como o YouTube, o Hi5, o Myspace, a MTV ou o Pandora, entre outros). Subindo na escala da actividade censória, surgem países islâmicos como a Arábia Saudita, o Irão, a Síria e o Egipto. Nos dois primeiros, são invocados principalmente os conteúdos «imorais» ou «inaceitáveis», ao passo que nos outros dois são as posições políticas dissidentes as principais atingidas.

Por último, entramos no universo do «socialismo real» supervivente, onde, para além dos conteúdos, é o próprio acesso que é severamente limitado ou totalmente impedido. A Coreia do Norte é o caso mais conhecido, pois ali só alguns altos dignitários do regime possuem acesso à rede mundial. Vem depois a China e a Bielorrússia, onde são banidos os conteúdos contendo quaisquer comentários, mesmo os estritamente privados, que possam ser desfavoráveis aos regimes vigentes. Na China, quando os acessos são estabelecidos a partir de empresas, o bloqueio pode surgir disfarçado aparecendo no ecrã uma mensagem a avisar da existência de «problemas técnicos». Para o final fica o caso de Cuba, o 2º país do mundo no qual maior número de restrições são colocadas ao uso livre da Internet e que é por vezes apontado como «modelar» no que respeita ao exercício das «verdadeiras liberdades»:

«Apenas dois por cento da população tem acesso à Internet. E os que têm são cuidadosamente vigiados para perceber se se embrenham em actividades «contra-revolucionárias». Não há ligações privadas à Net. Os cubanos têm de se deslocar a pontos de acesso públicos, como cibercafés, universidades ou «clubes de computadores» para poderem ver o seu e-mail. Estes locais têm software instalado que faz disparar o alarme na polícia de cada vez que palavras-chave «subversivas» são escritas. De igual modo, todos os cubanos classificados pelo Estado como dissidentes ou jornalistas independentes têm imensas dificuldades em aceder à rede.»

A propósito, leia-se isto.

    Atualidade, Cibercultura, Recortes

    A manhã estava bonita

    «Estamos em Junho de 1961. No Cais da Rocha do Conde de Óbidos, em Lisboa, a multidão reuniu-se para ver partir um dos primeiros contingentes de soldados a partir para a Guerra Colonial. Há fanfarra, hino e ambiente de festa. O repórter lança-se no seu discurso, previamente revisto, onde fala da grandiosidade do império e do céu azul na partida, despedindo-se com um ‘boa viagem rapazes e até breve’. Mas o microfone da rádio, que não obedece a ordens, não conseguiu fazer calar os gritos de dor de mulheres e mães que se ouvem de fundo, ao longo de toda a reportagem.» [do Público online]

    [audio:http://static.publico.clix.pt/docs/media/tropas.mp3]
      História, Memória, Recortes

      A solidão

      É muitas coisas a solidão. É o estado de quem se encontra ou sente desacompanhado. É o próprio isolamento. É também, anuncia secamente o Houaiss, essa «sensação ou situação de quem vive afastado do mundo ou isolado no meio de um grupo social». A solidão é tudo isto é, e é muito mais. Mas sempre uma condição que se define por um estatuto complexo e contraditório. É boa e é má, é inevitável ou impossível, é admirável ou indigna, mas raramente somos capazes de a situar no meio-termo ou de lhe sermos indiferentes. O mundo contemporâneo teme-a quando a associa ao isolamento imposto pela vida nas cidades, pelo exílio, pelo cativeiro. Mas nega-a quando considera que «todo o homem é uma ilha» e, ao mesmo tempo, o integra num imenso arquipélago. Na era da comunicação de massas e do triunfo da sociedade em rede, a solidão radical tende até a ser considerada doentia, subversiva, quase incompreensível, devendo por isso ser proscrita. Ao ponto de, nas escolas básicas, as equipagens de psicólogos perseguirem as crianças «diferentes» que, não sendo autistas, se isolam apenas porque gostam de construir o seu próprio mundo, ou, mais simplesmente, porque lhes desagrada aquele universo hipersociável e ruidoso que lhes pretendem impor.

      O último número especial do Magazine Littéraire inclui um extenso dossier sobre A Solidão (La Solitude), tomada ali, de forma dúplice, como «mal de vivre ou quête de soi». Nele se abordam, em quase três dezenas de artigos desiguais mas sempre propedêuticos, instantes ou experiências dessa condição que oscila entre «a punição divina ou a fatalidade sociológica» sempre que é imposta, e «a estranha doçura», elemento da busca da felicidade e da plenitude, que pode adquirir quando é procurada. A filosofia, a religião, a arte e a literatura são os inevitáveis territórios de aproximação propostos neste conjunto de textos, através dos quais se fala da solidão do trabalho do filósofo e do escritor, da pintura de Goya, Van Gogh ou Magritte, da decisão pessoal de Aquiles, do exílio de Ovídio, da vida e das buscas dos ermitas, das reflexões de Montaigne, Pascal e Rousseau, do individualismo romântico que enaltece o solitário, de Emerson e Flaubert, de Nietzsche e Rilke, de Kierkegaard, Heidegger e Blanchot, de Peter Handke e de Paul Auster. No final, dois artigos expõem perspectivas alternativas: um aborda o «complexo de Robinson», mostrando a obra de Daniel Defoe como tentativa para enunciar definitivamente a condição social, não-solitária, do humano; o outro trata as «novas solidões» impostas agora ao ser humano comum e determinadas pela precariedade e pela mobilidade do emprego, pela brutal expansão da vida urbana, pela dissolução das solidariedades familiares, pela crescente insularização das gerações. Recomenda-se, naturalmente, que a leitura deste número do ML se faça em modo solitário.

        Apontamentos, História, Olhares

        Da pág. 161

        De cada vez que me chega um repto para participar numa sequência de respostas em cadeia – e, se não me engano, n’A Terceira Noite este é já o quarto –, declaro sempre para mim mesmo que aquele será o último ao qual darei sequência. Não, não é por snobismo ou mania da diferença. Acontece apenas que a estratégia se tornou um tanto repetitiva, que são muitos os desafios do estilo, que todos eles exigem uma disponibilidade (e uma dose de vontade) por vezes ausente. Mas acabo por me contradizer sempre que chegam desafios singulares e estimulantes, vindos, além disso, de pessoas que prezo. É o caso deste, que chegou através do João Ventura e sugere o seguinte: que escolha o livro mais próximo, literalmente; que o abra na página 161; que procure e transcreva a 5ª frase completa; que tenha o cuidado de não escolher a melhor frase nem o melhor livro; e que o passe a outros cinco bloggers. Vamos então a ele. Ao repto.

        Tentei seguir exactamente o prescrito, mas não o consegui à primeira. O livro mais próximo dos meus dedos, com o curioso título Como falar dos livros que não lemos?, de Pierre Bayard (ed. Verso da Kapa), e que ando a sublinhar com extremo proveito, tem apenas 158 páginas. E no seguinte, a edição do Pantagruel. Rei dos Dípsodos, da Frenesi, que me preparo para reler (garanto que não fiz batota e fui à procura dele), a referida página é toda ela ocupada por uma gravura na qual se representa «a derrota dos trezentos gigantes armados com pedras de cantaria». À terceira tentativa, porém, fui melhor sucedido. D’O Deserto dos Tártaros, do Dino Buzzati, saiu-me então qualquer coisa como: «O general era velhote e olhou o tenente Drogo com ar bondoso através do monóculo». O que me obrigou a um complexo exercício de abstracção, uma vez que sempre associei o uso do referido acessório a atitudes de autoridade ou de afectação, presumivelmente incompatíveis com a ostentação de um rosto capaz de exprimir aquela dose de brandura que habitualmente aliamos à bondade.

        Segundos depois, porém, apercebi-me de que tinha acabado de receber de Buzzati uma lição sobre os atalhos da complexidade humana e a falibilidade de todas, de rigorosamente todas, as aparências. Simples e eficaz como o são sempre as melhores lições. Procurarei pois não esquecer as duas linhas desta pág. 161. E, se ainda for possível encontrar algum por aí, sorrirei para o próximo general de monóculo com o qual me venha a cruzar. Ou mesmo para a minha mal-encarada vizinha do andar de cima.

        A sugestão segue para o Lutz Brückelmann (que não respondeu à última chamada pois estava noutro lugar), para as-duas-elas-que-se-entendam, para o António Godinho Gil, para o Eduardo e para o GAF.

        [31-10-2007] Três dias depois chegou-me uma proposta idêntica vinda da Carla Quevedo. E entretanto outra da Lídia Aparício. Agradeço o interesse, mas a verdade é que a única circunstância em que alguma coisa me saiu melhor à segunda vez foi no exame para tirar a carta de condução de veículos motorizados ligeiros de passageiros e turismo.

          Etc., Olhares

          Sinal dos tempos (pergunta 2)

          O Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas tem toda a razão. A possibilidade de fusão do BCP e do BPI é um assunto privado que interessa a quem o promove apenas como negócio, mas que omite, pelo menos em termos públicos, os aspectos menos bonitos e mais complexos da possível operação. Não deixa de ser um sinal dos tempos que nem uma palavra tenha sido dita – e os repórteres também nada perguntaram – a propósito da sorte de boa parte das dezenas de milhar de trabalhadores que servem as duas instituições bancárias e que, a confirmar-se a operação, irão inevitavelmente para o desemprego. O governo não terá nada a ver com isto?

            Apontamentos, Atualidade

            Sinal dos tempos (pergunta 1)

            Habitualmente distribuídos entre tias e avozinhas – com o devido respeito, como dizia a outra, por aquelas que efectivamente o são –, cargos públicos como a presidência da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa ou a provedoria da Casa Pia de Lisboa excluem geralmente os homens. Marca, ou nódoa, de um atavismo cultural que continua a considerar as mulheres como particularmente sensíveis para determinados cargos ligados ao exercício da prodigalidade cristã, e os homens (se ressalvarmos o Padre Melícias) como uns brutos «muito homens» que não têm vocação para tais mariquices. Ou tratar-se-á da política de quotas sob a forma de farsa?

              Apontamentos, Atualidade

              Recordando Rosalind

              As declarações de James Watson sobre os testes que «provam» a menor inteligência dos pretos em relação à inteligência média dos caucasianos fizeram recordar uma história de há muitos anos. A história de Rosalind Franklin, que desenvolvia em King’s College, desde 1950, um trabalho crucial para a descoberta da estrutura molecular do ADN que daria a Francis Crick, a Maurice Wilkins e ao mesmo Watson, em 1962, o Nobel da Fisiologia e da Medicina. A «descoberta» foi divulgada na Nature durante a primavera de 53, quando Crick e Watson trabalhavam no Laboratório Cavendish, da Universidade de Cambridge, mas ambos omitiram no artigo o contributo, entretanto publicado, da sua colega de King’s. Há décadas que se comenta que o fizeram pela pouca importância que atribuíam ao facto desta ser mulher. Rosalind morreu em 1959, devido a uma doença contraída no laboratório, enquanto Crick e Wilkins desapareceram deste mundo em 2004. Quanto a Watson, parece que continua por aí a fazer estragos.

              Um comentário a este post coloca este episódio em termos diferentes. Vale a pena conhecer esta outra leitura, a qual contraria aquela que aqui transparece.

                Apontamentos, Memória

                Educação sexual

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                Disse-me que eu tivera muita sorte, pois tinha podido ler o Fritz Kahn enquanto ele só conseguira folhear, às escondidas dos pais, aquele livro do Professor Egas Moniz que se vendia nas farmácias. Mas ainda tinha em casa alguns exemplares avulsos da Bomba H que comprara na tabacaria do bairro por vinte e cinco tostões. Eu contei-lhe que conseguira um dia num alfarrabista uma colecção completa da Gaiola Aberta, mas que a perdera da última vez que mudei de casa. Não lhe falei do papel de Wilhelm Reich e da ex-mulher de Roger Vadim na minha vida porque a conversa ficou por ali.

                  Devaneios, Etc.

                  Fealdade que se dissipa

                  Storia della Bruttezza, o último livro de Umberto Eco, deveria chamar-se em português História da Fealdade, e não História do Feio, como aconteceu na novíssima edição da Difel. Pois aquilo que se expõe neste esplêndido livro-álbum (precedido de uma História da Beleza publicada em 2004) não é o relato da sucessão de debates em redor do conceito, mas antes uma avaliação, formal e situada no tempo, «do feio em si mesmo (um excremento, um cadáver em decomposição, um ser coberto de chagas que emana um cheiro nauseabundo)» e também «do feio formal, como desequilíbrio na reacção orgânica entre as partes e o todo». A ambos associa ainda Eco um terceiro tipo, resultante da representação artística dos dois primeiros.

                  É então em redor das figurações da fealdade que concretizam o conceito flutuante de feio, que este livro é construído. Que ele nos vai mostrando um cortejo de diabos, monstros e portentos, de figuras grotescas e carnavalescas, mulheres pavorosas, bruxas e seres sádicos. E também de românticos que se comprazem da sua fealdade (infelizes, doentes, perseguidos, solitários), de decadentes, freaks, fantasmas e mortos-vivos, de produtos resultantes da recusa vanguardista do consenso, das expressões desequilibradas do kitsch e da estética camp. Integrando reproduções de imagens e de textos que, longe de qualquer paradoxo, produzem no leitor uma sensação ambígua, amálgama de repulsa e de atracção, de horror e de beleza. Recorrendo a uma estratégia de compulsão que o triunfo da imagem e as estratégias contemporâneas da comunicação conduziram hoje a um ponto de neutralidade. A este lugar onde os conceitos de belo e de feio perderam o seu lado aparentemente absoluto e deixaram de funcionar como opostos. Podemos, a partir das páginas deste livro, perceber melhor o modo como aqui chegámos.

                    Apontamentos, História

                    Desculpem (pelo Adriano)

                    Custa-me ouvir o Adriano Correia de Oliveira. E explico porquê. Não é pela simplicidade e pelo carácter datado dos arranjos musicais das suas canções: a sua voz, poderosa e afectiva, magoada às vezes, algumas das palavras que foi cantando enquanto por cá andou, quase os fazem esquecer. A verdade é que, ao escutá-las agora, viajo no tempo, recuando ao país-Portugal, sequestrado e em luto, no qual ele viveu quase toda a sua vida. Por isso, para mim que conheci esse país, ouvir hoje Adriano é como revisitar uma prisão, como ler as memórias de um torturado, como ver um documentário sobre a pátria que foi, como olhar a fotografia de um emigrante sozinho na Gare de Austerlitz. Dói-me e evito fazê-lo.

                      História, Memória, Música

                      «Gabinete especial»

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                      Em 1921, Lenine, ordenou a criação de um laboratório de venenos secreto, um «gabinete especial» que tinha por missão «combater os inimigos do poder soviético». Mas este rapidamente foi transformado num instrumento de ataque aos dirigentes comunistas que podiam fazer sombra à tomada do poder por José Estaline. Foi o caso do general Mikhail Frunze, envenenado logo em 1925 no decorrer de uma intervenção cirúrgica à qual foi submetido contra a sua vontade. Após longa investigação, o escritor e jornalista russo Arkadi Vaksberg traçou, em Laboratório de Venenos (da Alêtheia), a história minuciosa de uma interminável série de assassinatos políticos, que começaram nos tempos de Lenine e de Estaline e continuaram, já após o fim da União Soviética, com a eliminação de Anatoli Sobtchak, o antigo presidente da câmara de São Petersburgo, do deputado e jornalista Iuri Chtchekotchikhine e do espião Alexander Litvinenko. Victor Yushchenko, o presidente ucraniano, terá escapado por pouco.

                      O livro apresenta uma massa documental impressionante, com o senão de, referindo muitos dos fundos de arquivo consultados, não identificar outros e remeter para o seu espólio pessoal a origem exacta de informações cruciais. O que reduz a possibilidade deste livro se transformar num libelo acusador de efeitos devastadores para a imagem pública da acção política da maioria dos principais dirigentes soviéticos e russos. De Lenine a Putin. Ainda assim, a sua leitura, que deve ser feita de uma forma crítica, não deixa de impressionar pelo modo como mostra o grau de refinamento que essa antiquíssima forma de eliminação violenta dos adversários políticos foi adquirindo por aquelas paragens. E por preparar-nos para as cenas dos próximos capítulos.

                        Apontamentos, História

                        Les amis du peuple

                        Acabava de rever em DVD, muitos anos depois da primeira vez, La Chinoise, de Jean-Luc Godard. E, de repente, na pacatez da minha noite suburbana e burguesa, um monólogo que chega do passado:

                        «Sabemos que a revolução social não está ao virar da esquina e que as lutas a travar em cada momento são aquelas que o estado de consciência das massas permite. É através da luta pelos seus interesses imediatos e objectivos parciais que os explorados se unirão e organizarão para lutas superiores. Exige-se-nos um trabalho paciente, que não se compadece com radicalismos verbais. Porém, ao empenharmo-nos nessas lutas diárias, por reivindicações muitas vezes modestas, não perdemos de vista que a sua utilidade é incutir gradualmente nos trabalhadores a confiança nas próprias forças, o repúdio pela ordem capitalista, a consciência e determinação revolucionárias. São positivas as lutas que contribuem para pôr explorados e exploradores em confronto, não as que semeiam ilusões na colaboração de classes. Alertamos os trabalhadores contra a miragem de que uma espiral infinita de reformas transformaria gradualmente o inferno capitalista num paraíso socialista. Dizemos que conquistas verdadeiras só com lutas superiores podem ser alcançadas e que tudo depende de se criar um campo resolutamente anticapitalista.»

                          Cinema, História, Olhares, Recortes

                          Fátima, os fariseus e o kitsch

                          1. Fátima ressurge. Mas o que me preocupa no seu ressurgimento não é a intrusão, na paisagem caótica daquela incaracterística cidade de oito mil habitantes e de não sei quantos milhares de forasteiros, de mais uns quantos edifícios e de uma igreja gigantesca. É a forma acrítica como a comunicação social se extasia – tal como aconteceu com os estádios do Euro – com o seu luxo e dimensão. É a forma passiva como faz reverberar o significado dos acontecimentos de 1917 e da sua leitura pelos poderes instalados após o 28 de Maio. É o modo como a transmissão da «mensagem divina» nos é mostrada como acontecimento e não enquanto construção. A maneira como a ignorância, a superstição e o desespero surgem nas reportagens e nos ecrãs envolvidos numa atitude farisaica de benévola aceitação, de quase cumplicidade. A meu ver, também de crueldade.

                          2. Os templos católicos são hoje, quase sempre, museus do kitsch. Juntam à sua arquitectura original, imagens toscas, peças avulsas, decorativas, onde predominam rendas e brocados, sedas e tafetás, acessórios electrónicos obsoletos, lâmpadas fluorescentes, alcatifas carmesim, anexos atípicos mandados erguer por um qualquer pároco ou benemérito. Num certo sentido, essa deprimente profusão de objectos sem norte cumpre a sua função sacralizadora, dado o padrão de gosto e a capacidade de elaboração simbólica da maioria esmagadora dos crentes. Por isso, a nova Cruz Alta de Fátima, concebida pelo alemão Robert Shad – e que, sempre optimista, Frei Bento Domingues tanto elogia numa crónica hoje publicada – é de facto, na sua concepção ousada, moderna, um objecto espúrio. Enquanto deambulam pelo terreiro grande da Cova da Iria, dele dizem quase todos os entrevistados que «é uma decepção», «não me diz nada», «não percebo». Poderia ser de outra forma?

                            Apontamentos, Olhares

                            Problema de sintaxe

                            Ando há semanas a tentar ler Descascando a Cebola, o livro autobiográfico de Günter Grass sobre o período que vai de 1939 a 1959. Não é autor que me encha as medidas, já aqui o disse. E, como também já escrevi, não me agrada que ele, a «consciência do povo alemão», tenha demorado tanto tempo a reconhecer em público que pertenceu a um destacamento das SS. Mas a dificuldade da minha leitura – que antevia como a de um testemunho – deve-se sobretudo à óbvia ausência de empatia com a tradução da obra. António Guerreiro já tinha chamado, no Expresso, a atenção para, entre outras falhas, «frases sintacticamente incorrectas ou demasiado próximas da sintaxe alemã», o que a tradutora e a editora procuraram refutar dois números do mesmo semanário depois. Não sou capaz de julgar com rigor de que lado está a razão, ou se todos a têm. Estudei alemão durante dois anos mas já quase esqueci o pouco que aprendi. Avalio a tradução, por isso, apenas através do gosto e da sensibilidade. Do ouvido também. E estes não me deixam um impressão positiva, tendendo a simpatizar com a opinião do crítico do Expresso. Assim, soam-me mal, muito mal, frases como «demo-nos com vontade à boa disposição», «abasteciam-nos com o jargão tradicional, excedendo-se a eles próprios na descoberta de chicanas subtis», «não seria mais premente falar actualmente» ou «repetidamente se atiçavam fogos de esperança que convidavam a aquecer na sua proximidade o ânimo enregelado», entre muitas outras, largas centenas delas, de idêntico recorte. Será por isto que continuo a andar para a frente e para trás com o livro. Sem avançar grande coisa, fazendo ainda o possível por não desistir.

                              Opinião

                              Não sei quantos, não-sei-quê

                              Ao meu lado, duas estudantes, universitárias pelo negro trajar, procuram um livro. «Ele deve gostar deste, não achas?», pergunta uma delas, segurando um título que fala de um amor que não sei quantos. Abre o volume e fecha-o de novo sem ler uma linha: «pensando melhor, talvez ele não goste disto». E atira-o para cima da mesa. «Olha, Sónia, talvez, este», diz a outra. «Qual deles, Martinha?» «Este da Margarida não-sei-quê não-sei-quê».

                                Apontamentos

                                Um caso à beira-serra

                                Ao falar do comportamento dos dois senhores agentes da PSP que entraram armados em bufos dentro da sede sindical na Covilhã, Ângelo Correia, na televisão, colocou, em forma de boutade, o dedo na ferida: «No tempo do Dr. Mário Soares como primeiro-ministro isto nunca aconteceria.» Quando a cultura da liberdade passa a ser apenas uma florzinha rubra na lapela no dia vinte e cinco do quatro, e todos os atropelos se desculpam em nome da eficácia ou da autoridade do Estado, coisas destas acontecem. E eu até nem sou soarista. Nem ele, o Dr. Ângelo.

                                Adenda: «O ministro da Administração Interna considera que, com base no relatório preliminar divulgado hoje pelo inspector-geral da Administração Interna sobre a visita da PSP às instalações do Sindicato dos Professores da Região Centro (SPRC) na Covilhã, segundo o qual a polícia não cometeu qualquer infracção, que ‘não há lugar à instrução de processo de inquérito ou processo disciplinar’.» [Público online]
                                Tudo bem, portanto. E assim fica aquela gente a saber que pode agir impunemente. Que o poder político a protege e compreende. Afinal, atemorizar cidadãos não é, só por isso, crime previsto no código penal. Como o bicho-papão, o polícia mau faz parte do nosso imaginário colectivo e é conveniente que nele permaneça.

                                  Atualidade, Olhares, Opinião