O prazer dos arquivos

Tendo muitas vezes a lembrar as centenas, provavelmente os milhares, de tardes de verão que passei dentro de arquivos históricos. É um prazer antigo, que me acompanhou desde cedo, muito antes ainda de ser parte ativa de um deles. Lidar horas ou dias a fio com «papéis velhos», vindos de outras vidas, de diferentes esperanças, de modos singulares e muito desiguais de estar no mundo e de o representar. Neles, jamais me senti sozinho, ou parte de uma exposição de velharias, mas como um explorador inquieto em viagem pelo tempo. Por estes dias de muito calor, e neste tempo de constante e crescente ruído, recordo mais ainda a sua temperatura amena e o seu silêncio reconfortante. Como os de um caravançarai ou de um oásis para quem atravessa o deserto. 

    Apontamentos, Devaneios, Olhares

    Atacar o SNS é estupidez, ignorância e ingratidão

    À exceção dos que tenho no meu mural do Facebook – e mesmo a estes só consigo seguir em parte – desde há muito que quase deixei de ler comentários em redes sociais e blogues. Tendo sido praticamente pioneiro da Internet em Portugal, mantive páginas que os permitiam entre 1995 e 2003, acabando com eles precisamente porque eram, em boa medida, cada vez mais tóxicos e ofensivos, para nada servindo. Nos jornais online faço a mesma coisa, até porque essa toxidade, como se sabe, tem vindo nos anos mais recentes a piorar exponencialmente.

    ler mais deste artigo
      Apontamentos, Democracia, Olhares, Opinião

      Psicopatas há muitos

      Ignorante de tanta coisa que sou, tinha até há pouco uma perceção muitíssimo parcial da psicopatia e do psicopata. Julgava este, como creio que ocorre com a maioria das pessoas, apenas aquela figura antissocial, com formas muito graves de transtorno de personalidade, habitualmente associada à prática compulsiva e prolongada de crimes de sangue, em regra praticados de uma forma sistemática e tantas vezes particularmente horrível. Como o fizeram o londrino Jack, o Estripador, Harold Shipman, o «Dr. Morte», médico britânico que matava os pacientes, ou John Wayne Gacy, que se vestia de palhaço para assassinar ritualmente crianças e jovens.

      ler mais deste artigo
        Apontamentos, Atualidade, Democracia, Olhares

        Verão Quente: não foi isto que vivemos

        O Público começa um artigo sobre o Verão Quente de 1975 da seguinte forma: «Foram meses de instabilidade política, de anúncios de golpes e contragolpes de Estado, e também marcados por uma onda de violência ímpar. A História descreve uma realidade de trincheiras e os protagonistas reconhecem que Portugal esteve à beira de uma guerra civil. O país vivia, literalmente, a ferro e fogo. Foi o Verão quente.» Na verdade, a História (com o H maiúsculo que os autores do texto preferem usar) não descreve nada disto, ou apenas isto. O chamado Verão Quente foi um tempo de grande instabilidade política e social, sem dúvida alguma – aliás, revoluções tranquilas, sem instabilidade e hesitações, não existem -, mas também um período de conquistas, de experiências e de construção de utopias que durante décadas pautaram a vida dos portugueses e da democracia. Reduzir o Portugal da época a «um país a ferro e fogo» é um logro análogo àquele imposto pelo Estado Novo, ao longo da sua existência e a sucessivas gerações, para caraterizar a nossa Primeira República.

          Apontamentos, Democracia, História, Olhares

          Ruído na praia

          Gosto de mar e da proximidade do mar, mas não de passar horas na praia, entre grãos de areia, golpes de sol e banhistas ruidosos. Da infância até aos quinze era forçado a viver cada agosto do ano na Figueira (da Foz), suportado por não ter direito de escolha. Salvaram-me os filmes bíblicos e os western spaghetti, os carrinhos de choques e os gelados de cone, as músicas da jukebox e a primeira namorada, mas a praia, a praia em si, esse era um lugar de tédio. Continuei depois a frequentá-la periodicamente, uma vez que o sol me ajuda a diluir alguns problemas de pele, mas o enfado permanece.

          ler mais deste artigo
            Apontamentos, Cidades, Olhares

            Entender Putin e a Rússia com um livro perturbante

            A invasão da Ucrânia, iniciando em fevereiro de 2022 uma guerra que analistas militares garantiam não demorar «mais que uma semana», vai já em três anos e meio. A situação continua gravíssima, num cenário diário de morte, sofrimento e destruição, mas a presença do conflito nas notícias tem diminuído. Outros fatores de preocupação têm emergido – em especial os relacionados com o terremoto Trump e com a situação em Gaza – e a Ucrânia passou para segundo plano, enquanto a iniciativa autocrática, belicista e imperial de Putin começa a ser descurada. Vale a pena, por isso, regressar a ela.

            ler mais deste artigo
              Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

              Um país seguro, tenham paciência

              Em 2025 Portugal subiu uma posição (7º lugar global, 5º da Europa, em 163) e ultrapassou a Dinamarca na lista dos países mais seguros. Esta é a verdade, reconhecida pelo Institute for Economics and Peace, que contraria a mentira generalizada, construída sobre pequenos episódios, propagada pela extrema-direita e que agora o nosso centro-direita também adotou. Documento completo: https://www.visionofhumanity.org/wp-content/uploads/2025/06/Global-Peace-Index-2025-web.pdf

                Apontamentos, Atualidade, Democracia, Etc., Olhares

                O governo e o regresso de Fritz Kahn

                Parte de uma notícia do Público a propósito de uma medida a ser preparada pelo nosso pudico governo. Seguida de comentário.

                «A sexualidade poderá começar a escapar dos debates entre professores e alunos já no próximo ano lectivo, pelo menos na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, tal como indiciam os documentos orientadores da disciplina, que estão em consulta pública até ao dia 1 de Agosto. Mas, abandonando esta disciplina, onde é que a sexualidade pode ser ensinada? Deixará a educação sexual de ter um espaço no percurso escolar dos diferentes alunos? A resposta imediata é não, mas assumindo, como lembra (…) o presidente da Direcção Associação Nacional de Dirigentes Escolares, que, “em termos curriculares, a sexualidade é trabalhada de forma meramente científica, na perspectiva dos órgãos e do funcionamento dos órgãos”, muitas dimensões fundamentais na educação dos jovens para a sexualidade caem por terra. “A sexualidade extravasa em muito a biologia”, lembra o representante dos directores. Sem ela, “os miúdos usam muito menos preservativos e ficam mais desprotegidos”, critica Margarida Gaspar de Matos.»

                ler mais deste artigo
                  Democracia, Direitos Humanos, Olhares, Opinião

                  Algumas linhas sobre o ativismo

                  Um útil apontamento publicado no Facebook por António Pais remete para uma declaração de Manuela Carmena, deixada em entrevista ao El País, que me levou até um padrão de leitura do papel do ativismo e dos ativistas na qual tenho pensado bastante e que me parece valer a pena debater. Carmena, nascida em 1944, é uma jurista e juíza espanhola, que foi militante dom PCE entre 1965 e 1981, vindo mais tarde, entre 2015 e 2019, a tornar-se alcaide de Madrid por uma coligação de esquerda. Este ano lançou Imaginar la vida: Cuatro décadas transformando lo público, que é um livro de memórias. 

                  ler mais deste artigo
                    Apontamentos, Atualidade, Democracia, Olhares

                    O recuo das humanidades como problema coletivo 

                    A partir dos anos noventa passou a falar-se bastante, sobretudo entre quem as tenha no eixo das suas vidas, do recuo, ou da crise, das humanidades. Isto é, de uma rápida e acentuada desconsideração pública dos saberes e das práticas que estudam e transmitem a experiência humana, incluindo-se neles a literatura, as ciências da linguagem, a história, a filosofia, os estudos culturais e as artes. Todos procuram compreender e partilhar as formas usadas pelos seres humanos para se expressarem, interagirem e criarem significados nos planos pessoal e coletivo, combinando diferentes modos de estar no mundo, de o entender, de o representar e de o transformar. 

                    ler mais deste artigo
                      Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

                      Cuidado com o Academia.edu

                      Comecei em janeiro de 2021 a usar a versão Premium do Academia.edu. Tem inúmeras vantagens, desde servir de repositório público para as nossas publicações, até oferecer as de muitas outras pessoas, pesquisando por temas e mesmo por conteúdo dentro das dezenas de milhões de textos que armazena. E avisando também sobre a entrada de novos artigos que nos possam interessar. Só vantagens, parece. Ao ponto de se ter transformado num lugar fulcral para a divulgação do meu trabalho, para a investigação e para contactos.

                      ler mais deste artigo
                        Apontamentos, Etc., Oficina

                        Uma direita «democrática» sem máscara

                        A direita portuguesa do pós-25 de Abril teve, na sua matriz, algo que faz com que a sua atual aproximação em relação às propostas e ao discurso da extrema-direita não sejam de todo inesperadas. Na verdade, com exceção de escassas e isoladas escolhas pessoais, jamais tivemos uma direita organizada e politicamente fundamentada como aquela que existiu, e ainda existe, na França, na Grã-Bretanha, na Itália, na Alemanha ou nos países escandinavos. Uma direita neoliberal, mas vinculada aos princípios essenciais da democracia cristã, do personalismo, ou mesmo do liberalismo humanista, que foi sempre, sobretudo a partir do pós-Segunda Guerra Mundial, democrática e multilateralista, mesmo quando contestou o estado social e defendeu políticas que puseram em causa direitos adquiridos e formas de igualdade e de solidariedade. 

                        ler mais deste artigo
                          Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

                          Os partidos políticos não são…

                          Os partidos políticos não são afáveis e alegres grupos de amigos que, com algumas reuniões de permeio, convivem entre si e fazem excursões. São compostos por pessoas muito diferentes, unidas por convicções comuns, que transportam para dentro do todo formas de ser e de estar também muito diversas. Isto ainda se nota mais nos partidos de massas e de poder, sempre maiores, e que integram, mais que os outros, pessoas que em certas alturas deles se aproximam por um impulso ou por oportunismo.

                          ler mais deste artigo
                            Atualidade, Democracia, Opinião

                            O candidato e o canto da velha sereia

                            Como vivemos em democracia, pela qual o PCP tanto e tão custosamente se bateu, obviamente este tem todo o direito a escolher o seu próprio candidato presidencial. Como o fez, aliás, em outras eleições análogas. O que me parece inaceitável é apresentá-lo como.«o único candidato progressista», ou «agregador de todos os que defendem a Constituição», proclamando ao mesmo tempo que o partido jamais desistirá da candidatura de António Filipe em favor de outra que interesse mais, no cenário presente de avanço da direita, ao conjunto da esquerda.

                            ler mais deste artigo
                              Apontamentos, Atualidade, Democracia

                              «No prelo»

                              Ao passar por um dos meus artigos académicos iniciais, publicado em 1982, deparei com a referência a um segundo volume de um título cujo primeiro tomo citei, indicando-o como estando «no prelo». Isto é, em fase de impressão tipográfica. Era ainda uma prática muito usual, a de fazer sair obras em dois volumes indicando que o segundo se encontrava nessas condições. Num grande número de vezes, porém, nem isso era verdadeiro: tratava-se apenas de uma intenção jamais cumprida. Costume também era alguém indicar um título seu, fosse de livro ou de artigo, que considerara a hipótese de publicar, como estando no tal inexistente «prelo». Tratava-se de uma forma artificial – talvez melhor: fraudulenta – de ampliar currículos pequenos ou inexistentes.

                              ler mais deste artigo
                                Apontamentos, Etc., Memória, Olhares

                                Um estado de confusão generalizada e de incerteza

                                Aprendi a ler cedo, antes ainda da primária, pela mão de um avô que gostava que lesse sem soletrar, aos amigos dos seus encontros matinais de maledicência, artigos inteiros do jornal diário. Talvez por isso, tornei-me viciado em notícias, usando-as, sem falhar um dia, para conhecer e entender os caminhos do mundo. Numa rápida retrospetiva de tanto tempo a absorver informação – juntando-lhe sempre o insubstituível conhecimento histórico –, posso dizer que não me recordo de viver uma época pautada por uma situação política global tão caótica e de difícil decifração quanto a que agora nos cabe. Prova disto é a visível incapacidade dos analistas políticos, mesmo dos mais bem preparados, para interpretar os acontecimentos em curso e lhes antecipar consequências. 

                                ler mais deste artigo
                                  Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Opinião

                                  Memória, ignorância e inocência do mal

                                  Deparei no Facebook, num grupo sobre o passado da cidade de Coimbra, com esta fotografia, tirada em 25 de junho de 1939 no Campo das Salésias, quando ali a Académica venceu o Benfica por 3-1, conquistando pela primeira vez a Taça de Portugal. Todavia, o texto, razoavelmente longo, que acompanhava a imagem, conseguia a proeza de evocar o momento sem referir a bem visível saudação fascista que, no início do jogo, ambas as equipas fizeram de um modo unânime. Pior: quando uma pessoa atenta deixou nos comentários uma referência ao facto, foi sucedida por uma série de contra-comentários agressivos e ignaros, às dezenas, onde se diziam coisas como «era apenas uma saudação habitual na época» ou «naquele tempo as pessoas não se metiam em políticas» (sic).

                                  ler mais deste artigo
                                    Apontamentos, Democracia, História, Memória, Olhares

                                    Trump e as dificuldades dos analistas

                                    Não recordo outro momento da história recente no qual os analistas políticos se mostrem tão claramente incapazes de interpretar os acontecimentos e, sobretudo isso, de lhes antecipar as consequências. Pior ainda que a primeira, a segunda versão da presidência Trump confronta-se com escolhas erráticas, medidas tomadas por impulso, sobreposição afirmativa do ego ao interesse coletivo, incapacidade para promover uma ideia clara e lhe dar sequência, narcisismo doentio, perversão de regras básicas da sociabilidade e da diplomacia por troca com comportamentos sempre inesperados e agressivos, muitos deles a raiar a arruaça. Isto é, atitudes doentias, de um foro cada vez mais claramente patológico, assumidas por quem governa a nação militar e economicamente mais poderosa do planeta. Nesta condições, todo o juízo crítico do analista, que não é um adivinho, é sempre arriscado, com tendência para se concentrar nas meras hipóteses e para se tornar falível cinco minutos depois. Algo novo, particularmente perigoso, dado abordar o rumo de quem tem nas mãos o poder imperial supremo da paz e da guerra.

                                      Apontamentos, Atualidade, Etc., Olhares