Arquivo de Categorias: Etc.

Triste cliché

O uso do cliché, também conhecido como chavão, lugar-comum ou estereótipo, corresponde ao uso de fórmulas constantemente repetidas, normalmente retiradas de modelos popularizados pelo que foi um modismo, agora constantemente retomado. Traduz geralmente falta de imaginação ou de capacidade para produzir um discurso próprio e com capacidade de sedução do interlocutor mais exigente. Na criação literária, é um dos piores defeitos, inimigo da originalidade e da atração pelo ritmo e pela dimensão ágil do discurso. Usa-se muito, sob a forma de jargão, no discurso académico mais conservador, levando à produção de textos que podem deter valor como resultado de investigação, mas que como narrativa estão mortos à nascença, assumindo uma forma expectável, quando não litúrgica. São feios e aborrecidos. Já na linguagem política, sob a forma de opinião ou de frase programática, são um sinal de efetivo conservadorismo formal, de ausência de horizontes fora do dogma e de enfraquecimento do «nervo» dinâmico, ainda que envolvam ideias formalmente progressistas. São de uma insipidez imensa, e por isso se tornam irrelevantes à nascença.

    Apontamentos, Etc., Leituras, Olhares

    A Fronda dos adeptos

    Quem não dá a menor importância ao futebol provavelmente não terá percebido o que aconteceu nos últimos dias no mundo peculiar que ele agrega. Goste-se ou não deste desporto – sou dos que gostam, e muito, apesar de lhe reconhecer bastantes aspetos condenáveis e de detestar a «clubite» – ele moveu e move largas centenas de milhões de pessoas, homens e mulheres de todo o mundo, de todas as crenças, de diferentes convicções, em grande parte motivadas por uma componente de prazer e de paixão que sempre o associa ao que de melhor essas pessoas vivenciam e esperam. Já uma vez dei este exemplo, para mim inesquecível: alguém que acompanhei até ao fim da vida e que, no último dia, me pediu um cigarro e que lhe dissesse qual o resultado do jogo de domingo do seu clube do coração.

    (mais…)
      Apontamentos, Atualidade, Etc., Olhares

      Palavras da indiferença

      Um certa frase anda a ouvir-se muito por aí, em regra para marcar um fim de conversa. É uma daquelas que não passa de modismo, mas que quando emerge, como acontece com todos os modismos, ecoa uma tensão existente. «É o que é!» constitui a expressão acabada do conformismo, da predisposição, hoje dominante, para considerar, ou aceitar, que existem – na vida pessoal, como em todas as sociedades – forças às quais não é possível resistir, não valendo a pena sequer tentá-lo. Como o «there is no alternative», o conhecido TINA, divulgado nos idos de 80 por Margaret Thatcher, que dessa forma conclamava os cidadãos a conformar-se, aceitando como inevitáveis e impossíveis de alterar as dinâmicas de servidão impostas pelo neoliberalismo. «É o que é!», ainda que pronunciada sem pensar, é, de facto, uma aberração, que pretende banalizar a mansidão e a indiferença. Porque, eis outra frase de sentido análogo, «o que tem de ser, tem muita força».

        Apontamentos, Etc., Olhares

        Bella Ciao, Marco Paulo e a memória

        Pensei que se tratasse de brincadeira quando alguém me disse que Marco Paulo tinha gravado uma versão do ‘Bella Ciao’. Temi, naturalmente, o pior. Não por ter sido o cantor a fazê-lo – dentro do género, até será dos mais profissionais dos «artistas» -, mas porque, com forte grau de probabilidade, dado o estilo totalmente despolitizado dos temas que canta, este iria desvirtuar o sentido de uma canção de profundo significado na história e na memória cultural do antimilitarismo e do antifascismo. Na minha própria memória pessoal, como na de várias gerações de outros homens e mulheres que participaram na resistência à ditadura, ela é recordada em associação com momentos nos quais funcionou como instrumento de incentivo ou de encorajamento.

        (mais…)
          Apontamentos, Devaneios, Etc., Memória, Olhares

          Alusão e cultura geral

          Como sabe quem escreve com regularidade textos que contêm uma dimensão literária – sobretudo se estes forem de opinião ou de ficção, seja no romance ou na poesia –, uma das técnicas a que recorre muitas vezes é a alusão. Falo do recurso estilístico pelo qual se faz referência direta ou indireta a uma pessoa, a uma situação, a um livro, uma peça musical ou um filme, contendo uma carga simbólica ou representativa que se pressupõe seja do conhecimento do leitor e por este percebida. Faço isto muitas vezes e posso dar como exemplo uma linha de comentário publicado há pouco a acompanhar uma fotografia de ocasião. Quando nela escrevi «finalmente sábado» estava, como muitos e muitas notaram, a aludir a Finalmente Domingo (Vivement dimanche), o título do último filme de François Truffaut, estreado em 1983. E também ao próprio filme.

          (mais…)
            Apontamentos, Etc., Olhares

            Banalidades necessárias

            Mais uns quantas banalidades. Banalidades necessárias, porém, dado corresponderem a evidências que, justamente por o serem, com frequência acabam esquecidas. O uso da expressão «isso já se sabe», tantas vezes escutada sempre que alguém procura lembrar ao cidadão comum alguns princípios, verdades e lógicas que convirá não esquecer, corresponde sempre a uma combinação de arrogância e de descaso. De arrogância quando exprime uma rejeição do senso comum, sempre indispensável à vida coletiva, embora tantas vezes esquecido. E de descaso quando traduz o encerramento de quem a expressa na sua pequena bolha. A dos que «já sabem» e preferem não tocar no assunto porque isso os aproxima de uma vulgaridade que abominam.

            Isto vem a propósito de uma experiência constantemente partilhada no contacto com os outros, em particular com quem assume posições públicas, seja a que escala for. A experiência de quem prega a justiça, a ética e a coerência, mas apenas em abstrato, jamais as aplicando à sua própria vida, à relação empática com os outros, ou à apreciação do comportamento objetivo do seu grupo ou da sua família política. Encontra-se por todo o lado, bem sei, mas na direita, estruturalmente assente na defesa do individualismo, da ordem e da desigualdade, acaba por ser uma contradição «natural». Nela bem menos chocante, afinal, do que quando ocorre entre pessoas situadas no espectro da esquerda, que é, ou deverá ser, tendencialmente solidária, igualitária e justa.

              Apontamentos, Democracia, Etc., Olhares

              Dois postais de bom ano | 1º Postal

              No último dia de 2013 publicava aqui um postal, a acompanhar os habituais votos de bom-ano, onde se misturavam em dose desequilibrada a esperança e o desânimo. Nessa altura, estávamos no pico da atuação do governo PSD/CDS. Aquele, convém não esquecer, que então respondeu à crise global do capitalismo e dos mercados reduzindo dramaticamente as condições de vida dos trabalhadores – em particular os da função pública e os aposentados -, diminuindo-lhes ou retirando-lhe direitos com décadas de conquista, cortando feriados, forçando muitos milhares de jovens com formação elevada a sair de Portugal, submetendo-se a todos os ditames dos agentes do neoliberalismo que regiam os destinos da União Europeia, colocando o país de mão-estendida perante os outros. Ao mesmo tempo que prometia um crescimento económico assente principalmente na redução do consumo e na exploração do trabalho.

              (mais…)
                Apontamentos, Devaneios, Etc., Olhares

                Nem sacerdote, nem anjo

                Como historiador profissional que ao mesmo tempo tem uma intervenção pública regular enquanto cidadão e não separa com um cordão electrificado as duas qualidades, de tempos a tempos encontro sempre alguém que, ao discordar de uma opinião que possa ter expresso, justifica essa discordância associando, a razões ou desacordos inteiramente legítimos, uma frase que integra um juízo de valor inaceitável: «parece impossível um historiador escrever isto». Não porque eventualmente tenha expresso algo de errado ou de impreciso do ponto de vista do conhecimento do passado, mas porque a pessoa que emite esse juízo chama à colação uma certa ideia de historiador que o desqualifica se ousar sujar as mãos na realidade do mundo em que vive. Como se fosse um sacerdote, um etéreo oficiante do passado, que teria o dever de se desvincular inteiramente do presente, ainda que muitas das opiniões que neste campo emita o possam ser na sua qualidade de cidadão, não de profissional do «métier».

                (mais…)
                  Apontamentos, Etc., História, Olhares

                  A ignorância é atrevida e perigosa

                  Tem corrido nos jornais e nas redes sociais uma controvérsia, mais uma, que envolve declarações do conhecido jornalista e responsável por romances de sucesso popular José Rodrigues dos Santos (JRS). Não irei repetir factos e argumentos que a integram e que podem ser facilmente encontrados por quem os desejar conhecer. Direi apenas que ela começou com o que JRS disse durante uma entrevista de promoção do seu último livro na RTP1, e depois repetiu num «esclarecimento», a propósito do caráter supostamente humanitário do gaseamento dos judeus nos campos de concentração e de extermínio nazis. Também não irei preocupar-me com o préstimo literário do autor – questionado por tantos, entre os quais me conto, mas também apreciado por muitos outros –, o que me levaria a um argumento bem diverso daquele que escolhi para esta crónica. Aquilo em que vou insistir, a partir deste exemplo, é no perigo que representa a manifestação da ignorância, em regra acompanhada pela manipulação da ignorância dos outros, por parte de pessoas que detêm um lugar de reconhecimento público. 

                  (mais…)
                    Etc., Ficção, História, Memória

                    Pio IX e a Imaculada Conceição

                    Foi em 8 de dezembro de 1854 – há 166 anos, e não «há sete séculos», como hoje pude ler, embora na altura tenham sido invocadas referências bíblicas e dos primeiros textos da Patrística como justificativas para a decisão – que na bula Ineffabilis Deus o papa Pio IX proclamou o dogma da Imaculada Conceição. Basicamente, este dogma considera a concepção da Virgem Maria, «cheia de Graça», como ocorrida sem a mácula do pecado original, na qualidade de um sinal da intervenção da providência divina e de precaução para preparar, através de uma linhagem que fosse pura, a vinda de Cristo.

                    (mais…)
                      Apontamentos, Etc., História, Olhares

                      Avatares da bibliometria

                      Como muito bem sabe quem circula pelo mundo académico, a bibliometria, tendo surgido por algumas boas razões – nomeadamente para tentar impedir que certas pessoas progredissem na profissão sem provas dadas, apenas por antiguidade ou por esquemas corporativos de proteção – transformou-se numa doença. Acabou por fazer inverter, no prestígio e valorização da produção científica, a relação entre a qualidade e a originalidade, de um lado, e a quantidade e a mimetização, do outro. Hoje em dia, e por este motivo, a maioria dos investigadores preocupa-se mais em acumular referências no currículo, e assim ir somando pontos e subindo nos concursos, do que em «deixar marca» com um trabalho original, necessariamente moroso e que é escassamente classificado.

                      (mais…)
                        Apontamentos, Etc., Olhares, Opinião

                        Uma aventura no passado (1996-2002)

                        Entre Março de 1996 e Outubro de 2002 criei e mantive no ar, com o apoio de alguns amigos, mas a maior parte do tempo inteiramente a solo – daí, aliás, a inevitabilidade do seu fim – a primeira publicação portuguesa inteiramente online. Nenhum jornal o fazia nessa altura, lembro-me bem, e ainda não havia blogues. Chamava-se NON!, e tinha por subtítulo «revista crítica de opinião, ideias e artes». Era totalmente artesanal, montada «à unha» em linguagem HTML. Durante esses anos quase não tive fins de semana, pois passava-os a reunir colaborações, a editar e a melhorar a publicação. Muitos/as dos/as que por aqui me seguem talvez recordem ainda esta aventura – a revista chegou a ter vários milhares de acessos diários – e continuam por aqui. Outros desapareceram já do mundo dos vivos. Outros permanecem amigos para a vida. De um ou outro, meia dúzia, acabei por me distanciar. Não sei o que me levou a pensar hoje neste bocado de passado, mas aqui fica o registo da recordação. Deixo a lista completa dos colaboradores: quem não sabe do que falo aferirá por ela a qualidade da «coisa».

                        (mais…)
                          Apontamentos, Cibercultura, Etc., Leituras, Memória

                          Males que vêm por bem

                          É bem conhecida a forma como a atividade nas redes sociais tem tanto de positivo e de construtivo quanto de incómodo ou de prejudicial. Tende a reproduzir em meio virtual as relações sociais tradicionais, desenvolvidas em meio físico, adicionando-lhes uma forte capacidade para dar voz a quem habitualmente a não tem, permitindo que todos possam transmitir rapidamente o que pensam. Isto conduz a frequentes imprudências, dizendo-se o que talvez não devesse ser dito ou que poderia ter sido melhor ponderado. Este apontamento não toma esse sentido negativo, mas poderá tornar-se pouco simpático.

                          (mais…)
                            Apontamentos, Democracia, Etc., Memória, Olhares

                            Não, não será a mesma coisa

                            Quando no dia 6 coloquei a cruz no boletim, votei no partido político do qual me vejo mais próximo, mas, tal como muitos milhares de eleitores, subscrevi também a «Geringonça», no que isto significa de adesão a uma solução razoável capaz de construir consensos à esquerda, de assegurar alguma estabilidade política e de manter a direita acantonada. Se tomei o gesto como a assinatura de um contrato, deverão, no entanto, ter-me escapado as letras miúdas, pois nada parecia levar a que o resultado final do processo fosse aquele agora anunciado.

                            (mais…)
                              Apontamentos, Atualidade, Etc., Opinião

                              Uma declaração de voto

                              Nestas eleições irei votar no Bloco de Esquerda. Entre 1999, ano da fundação, e 2011, colaborei muitas vezes com o Bloco e fui seu eleitor. Nesse ano afastei-me um tanto. Por dois motivos centrais: devido ao voto de desconfiança partilhado com o PCP e a direita que ingloriamente acabou por levar aos quatro anos do governo PSD-CDS; e porque me parecia possível e necessária uma aproximação a setores do PS já então disponíveis para a acolher. Devido a estas escolhas, nas eleições de 2015 participei na experiência de uma «candidatura cidadã» que visava estimular essa aproximação para derrotar a direita. O resultado dessa experiência foi inglório, mas o esforço de convergência viria depois a ocorrer sob a forma da Geringonça, com as conquistas, dificuldades e contradições que se conhecem.

                              (mais…)
                                Atualidade, Democracia, Etc., Opinião

                                Um revolucionário e a sua consciência

                                «Sinto muita vezes que sufoco no interior de um magnífico deserto», escreveu Victor Serge (1890-1947) a partir do exílio no México. Serge, bolchevique internacionalista desde a primeira hora, vivia essa impressão na dupla condição de opositor a Estaline e também ao comodismo dominante na comunidade de exilados que se lhe opunham. Num apontamento de 1943 falava da «cobardia dos intelectuais» – ele, toda a vida um intelectual – e do maior interesse de muitos destes pelas questões teóricas, pelo puro diletantismo, em detrimento do combate diário. Considerava a política como «feita essencialmente de pessoas, não de análises», propondo até ao fim uma atitude de compromisso e iniciativa radicada na melhor tradição bolchevique. Aquela que Estaline destruiu três vezes: primeiro pelo golpismo interno, depois pela violência e pelo medo, por fim pela desmobilização de boa parte dos que se lhe haviam oposto e Serge considerava «desertores». Para ele, todavia, a desistência era impensável, ainda que a sua vida de revolucionário passasse agora pelo «deserto» que referiu, «magnífico» porque feito, contra todas as adversidades e fugas, de convicção e empenho.

                                Na fotografia: Victor Serge, o poeta dadaísta Benjamin Péret, a pintora surrealista Remedios Varo e André Breton, que Serge considerava o típico diletante (França, 1941)
                                A partir da recente edição crítica de «Notebooks: 1936-1947», de Victor Serge, e de uma nota de leitura de Alex Press
                                  Apontamentos, Democracia, Etc., História

                                  O medo como técnica

                                  «Escrito em 1946, este pedaço de um artigo de Albert Camus saído no jornal Combat tem, naturalmente, a marca do seu tempo.» Escrevi isto há sete anos, a anteceder a publicação do texto que abaixo se transcreve. Neste momento já não sei se assim é. Ressalvando a mistura verbal do «homem» e do humano – que hoje fere um tanto os nossos ouvidos – todo ele parece ter também, e muito, a marca destes dias.

                                  «O século XVII foi o século das matemáticas, o XVIII o das ciências físicas e o XIX o da biologia. O nosso século XX é o século do medo. Dir-me-ão que o medo não é uma ciência. Mas, em primeiro lugar, a ciência é de certo modo responsável por esse medo, uma vez que os seus últimos avanços teóricos a levaram a negar-se a si mesma e porque os seus aperfeiçoamentos práticos ameaçam destruir a terra inteira. Além disso, se bem que o medo em si mesmo não possa ser considerado uma ciência, não há dúvida que é uma técnica.

                                  (mais…)
                                    Democracia, Direitos Humanos, Etc., Olhares