A indiferença pelo sofrimento dos outros

Este setor do espetro político transporta consigo um lastro histórico e uma longa experiência de manipulação da realidade e de difusão da mentira. Refiro-me ao grupo minoritário de pessoas seguro das suas escolhas e convencido de que um dia viverá na sociedade distópica que idealiza, que entre nós defende, como justificável e até necessária a impiedosa política de assassinato coletivo e de devastação que as tropas de Putin estão a levar a cabo na Ucrânia. Por este motivo negam a sua verdadeira dimensão e sem qualquer pudor transformam o agressor em protetor e o agredido em criminoso. Deste modo construindo, junto de quem lhe dá ouvidos, uma narrativa que converte um Estado independente e formalmente democrático – onde, como em toda a parte, incluindo na Rússia, existe gente que pensa de forma diversa e setores minoritários de extrema-direita – no que proclamam ser «um antro de nazis» a demolir.

Essa narrativa filia-se em convicções políticas, por vezes forjadas em textos simplistas escritos em língua de pau e retirados de uma cápsula do tempo, ou então, mais comummente, adquirida num processo de manipulação das consciências edificado e transmitido ao longo de décadas. Trata-se de um longo treino de «rejeição industrial» da realidade e da complexidade dos factos, bem como de mascaramento da realidade histórica. Este treino é constantemente associado a uma persistente justificação do insustentável, assente no desrespeito pelo pensamento divergente, pela alteridade cultural e étnica, pelas liberdades mais essenciais e até pela mudança global. Em consonância com essa atitude, a qualificação como «criminosos» de quem quer que se oponha aos regimes políticos que, ontem como hoje, esse setor cegamente defende e justifica.

Trata-se da mesma gente que apoia ou justifica, hoje como o fez no passado, governos formalmente «progressistas», mas de partido único ou «iliberais» – isto é, antidemocráticos –, que administram Estados onde não existe liberdade de imprensa, onde se prende, persegue, silencia ou assassina por delito de opinião, onde se molda à força, desde a infância e ao longo da vida, a consciência e a visão do mundo de gerações inteiras. É também gente que revê ou nega a história vivida, mesmo aquela muito bem documentada e academicamente investigada e reconhecida, negando ou justificando as práticas de natureza tirânica levadas a cabo, de forma sistemática, sobretudo durante as experiências históricas da União Soviética do tempo de Estaline e da China da era de Mao, que envolveram, sabe-se hoje que de modo algum isto é «propaganda», o sofrimento sistemático de dezenas de milhões de seres humanos considerados descartáveis por serem olhados como obstáculos à afirmação da sua visão do mundo e da história.

Homens e mulheres considerados «inimigos do povo» e por este motivo presos e despachados, por anos ou mesmo décadas, para campos de trabalho em áreas inóspitas, onde tantos perderam a vida ou foram destruídos como pessoas, ou que foram deslocados dos territórios onde os seus antepassados haviam nascido por políticas de engenharia social, ou ainda aos quais, devido às convicções ou à origem, foi retirado o direito à palavra. Aos quais se procurou também impor uma perspetiva do mundo fundada numa forma de pensamento, único e excludente, projetado do topo para a base. Homens e mulheres tratados como desclassificados, como não-gente, a quem tantas vezes, e sem apelo, foi retirado o direto à simples existência ou pelo menos a uma vida digna. Mesmo tendo parte importante dessas pessoas participado entusiasticamente nas revoluções justas que os seus países viveram, entretanto pervertidas por quem delas se apoderou. 

Para esta minoria segura das suas razões – que recusa toda a dúvida, em nome de uma realidade imaginada na qual se formou ou vive, ou da doutrina na qual acredita – existe, pois, uma experiência acumulada e herdada, um lastro de recorrente descaso perante a vida humana e de aceitação da destruição de territórios e de sociabilidades, sempre justificadas quando forem impostas pelos intérpretes ou pelos regimes que de momento defendem ou legitimam. Não hesitando, para comprovar a justeza das suas escolhas, em servir-se de teorias da conspiração ou em sobrepor as suas interpretações do mundo à defesa de uma paz assente, não na força imposta pelas armas, mas na justiça, na equidade e na democracia. Para quem desta forma pensa e age, conceitos que dispõem de um valor meramente instrumental. Daí à indiferença pelo sofrimento dos outros vai um pequeníssimo passo.

Rui Bebiano

Fotografia de Anna Ivanina
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