Arquivo de Categorias: Acontecimentos

A mentira colossal (e perigosa) de Passos

Por momentos, vou relevar aqui tudo aquilo que Passos Coelho simboliza para quem, de uma forma justa e informada, observou e se recorda do que foi viver em Portugal entre 2011 e 2015, após ter falhado praticamente todas as promessas que tinham feito dele primeiro-ministro. Concentro-me, apoiado nos números avançados hoje no Público pela jornalista Bárbara Reis, na colossal mentira, apresentada embora como «sensação» – um fator que, como sabemos, pode significar tudo, nada ou algo mais ou menos parecido – avançada por Passos no comício do PSD no Algarve: «Precisamos de ter um país aberto à imigração, mas cuidado, precisamos também de ter um país seguro. O Governo fez ouvidos moucos e hoje as pessoas sentem uma insegurança que é resultado da falta de investimento que se deu a essas matérias.» Isto é, procurou usar uma das ideias-chave da direita populista para mobilizar eleitores contra a esquerda, acabando, algo absolutamente indigno de um ex-governante, por ajudar a espalhar um medo não-fundamentado, assim enganando quem o ouve e (em alguns casos) ainda respeita.

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    Cerco às sedes e lições da história

    Em 1975, após a viragem de 11 de março, começaram a ocorrer em Portugal, organizados por movimentos terroristas de extrema-direita – os partidos da direita democrática, incluindo o CDS, não participaram como tal nessas ações – cercos e ataques às sedes do Partido Comunista e de algumas organizações da esquerda revolucionária, sendo várias delas destruídas e chegando a haver pessoas agredidas. A violência começou no norte do país, incitada também por setores mais conservadores da Igreja católica, com influência sobre muitas pessoas despolitizadas, mas logo foi descendo no mapa. Parte do que se chamou «verão quente» passou por estes incidentes.

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      Putin e o regresso ao passado

      O principal responsável pela política ditatorial e agressiva da Rússia, a par da China um imperialismo em franca e rápida ascensão – contra o norte-americano, que obviamente não se evaporou -, acaba de justificar, neste 30 de setembro, a anexação de parte de um país soberano que agrediu e procurou destruir com base num «referendo» completamente ilegítimo e manipulado e em nome de um suposto «anticolonialismo». Que é de facto, e acima de tudo, um combate contra as sociedades democráticas e os direitos dos povos, incluindo nestes o russo, à autodeterminação, à paz e à liberdade. Sei de muita gente que estará a delirar com as suas palavras, antevendo já o regresso a um passado pelo qual sentem uma nostalgia sem limites e a que pensam poder um dia poder regressar. Por certo já hoje assobiaram, pelo menos mentalmente, a Kalinka e os Barqueiros do Volga.

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        Temos um grande problema

        A generalidade dos comentadores de política internacional concorda em que o último discurso de Putin representa um evidente sinal do desespero de quem se viu com todas as suas previsões belicistas trocadas e se confronta agora com o espectro de uma derrota militar na Ucrânia. Depois da sua intervenção, a situação piorou ainda, com alguns sinais bem visíveis, como a fuga de pessoas da Rússia perante a ameaça de uma mobilização forçada para a guerra, o regresso das manifestações de rua, logo reprimidas pela polícia, o imediato reforço da ajuda militar ocidental a Kiev e as posições da China e da Índia, agora nitidamente desconfortáveis com o belicismo desvairado, na forma de fuga para a frente, do seu aliado e, mais recentemente, untuoso cortejador. 

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          Isabel e o fim de uma era

          Nasci menos de um ano após Isabel II ter subido ao trono do Reino Unido. Por isso, para mim, como para uma grande parte dos humanos vivos, a «Rainha de Inglaterra», agora desaparecida, faz parte da mobília cultural do mundo em que vivemos. Mesmo sendo republicano desde que recordo – nas lições da história jamais foram reis, príncipes e duques a entusiasmar-me, preferindo sempre quem se batia pela justiça, pela igualdade, pela beleza ou pelo conhecimento –, e tendo construído ao longo dos anos uma perceção clara do caráter caduco e inútil da realeza britânica, não pude, todavia, ficar imune à figura omnipresente nos jornais e revistas, nos documentários e nos livros de história, até no cinema e na ficção, de Elizabeth Alexandra Mary. Para mais uma mulher bonita e de semblante tranquilo, quase sempre sorridente, que alimentava o imaginário mágico de tanta gente. No meu caso, em particular, o de algumas tias e primas, e do respetivo grupo de amigas, que talvez acompanhassem melhor o que se passava nos salões de Buckingham ou de Balmoral que na casa da vizinha ou mesmo na sua.

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            Crimes de guerra na primeira pessoa

            Sabemos como numa guerra não existem lados limpos da mentira e da crueldade. Se isso acontecesse, não se trataria de uma verdadeira guerra. É, desde logo, necessário contar com a propaganda e a contrapropaganda, que tendem a beneficiar ou a defender um dos lados em detrimento do outro. Quem delas não se servir, perde a guerra. Mas deve também contar-se com as dinâmicas inerentes ao combate e a quase impossibilidade de evitar situações de crueldade. Diz-vos isto alguém que já foi militar e esteve dentro de uma guerra civil, onde, como se sabe, tudo é sempre ainda pior que numa guerra com claras linhas de fronteira. Estive em áreas de combate e vi matar pessoas, civis entre elas, em alguns momentos através de gestos de descontrolo que advinham da tensão ou da incompreensão de quem pensava que a melhor forma de não morrer era «simplesmente» matar, ou só sentia vontade punir alguém que, na sua desrazão, considerava responsável pela morte de camaradas ou apenas por estar ali.

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              A banalização da «opinião» e os incidentes no Capitólio

              Fora dos Estados que vivem sob regimes tirânicos, onde pensar e falar de forma livre é considerado crime, nas últimas décadas a valorização da opinião tem sido constante. Porém, tem ocorrido também uma perigosa degradação do conceito. O que tem ampliado o seu impacto é sobretudo a expansão da educação dos cidadãos, que sempre permite uma maior agilidade do pensamento e da expressão individual, bem como o alargamento dos direitos, entre estes o direito à palavra. Em sentido contrário, o efeito provocado pela ilimitada explosão da comunicação interpessoal, em particular aquela que passa pelo uso da Internet e das redes sociais, tem estimulado a sua desvalorização.

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                O rosto do populismo

                Temos um panorama razoavelmente claro da base social do populismo quando observamos as imagens que mostram a espécie de pessoas que se apresentou ontem no Capitólio para boicotar a certificação da eleição presidencial de Joe Biden. E que, por certo, se lhes tivesse sido permitido – a notória e escandalosa moderação da polícia não foi tão longe -, não teria problemas em linchar membros do Congresso e jornalistas. Olhamos aqueles rostos, a forma de vestir, de gesticular e até de caminhar daqueles indivíduos, maioritariamente homens, alguns com roupas ou acessórios militares, vemos o sentimento de impunidade e a satisfação triunfante que visivelmente exibiam, e damos de caras com o rosto da ignorância e da frustração social transportados na América por uma importante fração de deserdados «brancos».

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                  EUA: revolta e violência

                  Quem conhece a longa história das rebeliões populares, pelo menos daquelas que se conhecem desde os movimentos milenaristas do período medieval europeu, sabe que sempre nelas confluíram fatores contraditórios. De um lado o protesto puro, ou a resistência imperativa, postos em prática de uma forma em regra espontânea e quase invariavelmente assertiva e crua. É, aliás, nessa crueza – em regra coincidente com um baixo grau de politização – que se se situa o essencial desses levantamentos coletivos, sendo ela também aquilo que lhes pode conferir alguma capacidade para perturbar o sistema dominante e para alterar situações estabelecidas. As revoltas medievais não pretendiam instaurar regimes justos, mas antes punir reis iníquos e senhores abusivos. Do outro lado, a formulação violenta de estados de descontentamento, de situações de opressão, ou mesmo de desenraizamentos, que podem transformar esses momentos em situações algo caóticas, nas quais, da parte de alguns dos que nelas participam, a sua iniciativa poder ser desviada para atitudes desorganizadas e voltadas contra alvos que não são os principais. O puro banditismo entra, por vezes, na equação.

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                    Quatro meses do meu ano de 68

                    Em 1968 o mundo inteiro aparentava mover-se mais depressa, ainda mais depressa. Tudo parecia estar a acontecer em Paris, em Praga, em Berlim, nos Estados Unidos, Brasil e México, envolvendo a União Soviética, Cuba, a China, o Vietname, na verdade o mundo inteiro. Combates de rua com a polícia antimotim, guerrilhas urbanas e rurais, surgimento e auge da contracultura, revoluções sucessivas nas artes, no romance, na filosofia, no cinema, na música, acompanhando a rápida expansão da indústria cultural. (mais…)

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                      O incêndio e a calamidade como arma

                      Hesitei um pouco ao escolher o tema desta crónica. Não porque não valha a pena falar ainda do grande e terrível incêndio que há cerca de uma semana devastou parte significativa dos concelhos de Pedrógão Grande, Castanheira de Pêra e Figueiró dos Vinhos, e tanta destruição e morte trouxe àquela região. Mas porque a forma como este tem sido tratado leva a considerações sobre escolhas e comportamentos dos quais me agrada pouco falar. Porém, como é hábito dizer-se, o que tem de ser tem muita força. (mais…)

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                        Quanto vale o localismo

                        Ao contrário do que declara o ditado, não existem males que vêm por bem. Uma coisa má não pode ser trocada por outra boa, pois são experiências diferentes que cada um guarda consigo em lugares também diversos da memória e da experiência. Mas, sim, é banal mas verdadeiro: é muitas vezes no meio do pior que emerge o que conseguimos mostrar de melhor, de mais generoso e de mais intensamente humano. (mais…)

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                          LIBERDADE (a sério)

                          Só pode dizer que não sente a liberdade quem jamais viveu sem ela. Ou quem não sabe dos lugares do mundo e dos tempos sombrios em que ela foi – em alguns deles continua sendo, convém lembrar – calcada como um bem supérfluo, do qual se pode prescindir em nome de valores supostamente maiores: uma ideologia ou uma religião, uma pátria, o desenvolvimento material, a igualdade formal, o bem-estar pessoal ou coletivo. «A paz, o pão, habitação, saúde, educação», cantados no refrão do Sérgio Godinho, não bastam. De nada servem sem liberdade para os viver e, se necessário, para contestar também o modo como são geridos. Ou para pensar e fazer, até ao limite do possível, o que se escolher pensar e fazer.

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                            Os dois monstros e a culpa

                            Paolo Pellegrin / Magnum Photos
                            Paolo Pellegrin / Magnum Photos

                            Perante a dimensão da catástrofe, não venham com os argumentos do costume. Argumentos que fazem bastantes vezes algum sentido mas deslocam a responsabilidade do horror para alvos que, neste momento, são laterais, e que desviam a atenção daquele que é, já não existe outra forma de o identificar, o inimigo principal. Refiro-me ao ataque do islão mais irredutível e radical – pelo que se sabe, e pelas características dos atentados em Paris, falamos do autoproclamado Estado Islâmico – a pessoas comuns, de todos os credos, falas e raças, apenas culpadas por viverem na Europa e se divertirem. E a uma declaração de guerra aos fundamentos históricos da democracia, da laicidade e do simples direito à fruição da vida – recordemos que as vítimas foram essencialmente pessoas que gostavam de futebol, ou de música, ou de jantar fora numa noite de sexta-feira –, que para os fanáticos assassinos são demoníacos e não possuem qualquer valor. (mais…)

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                              Esperar desesperando

                              Fot. Paulo Pimenta / Público
                              Fot. Paulo Pimenta / Público

                              Encontrei na semana passada uma amiga brasileira que não via há algum tempo. M. vivera uma época em Portugal, que então percorrera de uma ponta à outra e conhecera bastante bem, até que há cerca de dois anos regressara por motivos familiares à sua cidade de origem. Agora de volta, depois de todo este tempo, para nós aparentemente sem fim, durante o qual o país sofreu o choque imenso que conhecemos, ocorreu-me perguntar-lhe se sentia alguma diferença visível entre o Portugal que deixara e aquele ao qual agora retornava. Aquilo que me respondeu não me deixou surpreendido: «Com certeza que sim, de imediato. E o que mais me impressionou foram as mudanças na cara das pessoas. Um ar de contrariedade, de desgosto, um semblante de tristeza e de falta de confiança, um rosto rígido que eu não conhecera antes, um olhar diferente e talvez um pouco perdido.» A nossa memória diz-nos a mesma coisa, mas pronunciada desta forma, a partir do ângulo de observação de quem não viveu o dia-a-dia da nossa dramática mudança, a descrição de M. funciona como um abalo. (mais…)

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