Arquivos Mensais: Novembro 2010

Aconteceu em Novembro

Natal/2010

Eu sei que hoje são 16 de Novembro, que estamos ainda a seis semanas do Natal e que isto não podia acontecer. Mas aconteceu mesmo. Lia o jornal pela manhã, comme d’habitude com a cabeça submersa entre as páginas. Alheio ao ruído de fundo e ao tráfego dos passantes. De repente, mesmo à frente dos meus olhos, uma mão grossa, seguida de um punho de falso arminho e depois de uma manga larga em tecido vermelho-vivo, que procurava cumprimentar-me. «Estás bom, pá? Então que é feito de ti?» Assustei-me um bocado com aquele Pai Natal inoportuno. Depois pensei que poderia ser Ele mesmo, o verdadeiro, vindo do Norte mais a Norte para anunciar que me tinham enganado quando me contaram que não existia. Tinha de ser o meu Pai Natal, pois além de parecer conhecer-me até me tratava por tu. Só depois de me recompor comecei a perceber que aquilo não fazia muito sentido, que eu, um materialista agnóstico, não podia ter andado tanto tempo enganado. O próprio se encarregou então de esclarecer o enigma: por cinco segundos desviou a falsa barba o suficiente para eu poder reconhecer um antigo camarada dos tempos em que andei a brincar às guerras. Não fui capaz de lhe perguntar se participava em alguma campanha de solidariedade, ou, mais prosaicamente, se carecia de uns euros para aguentar a crise. Só me ocorreu dizer: «Porreiro, pá. E tu? Estás na mesma.» A conversa acabou ali porque uma criança escoltada pela mãe mostrou vontade de interagir com o simpático velhinho. Fiquei sem saber se me queria dar uma prenda, se pretendia que eu lhe emprestasse uma nota, ou se tinha só gostado de me rever. Esta mania de anteciparem o Natal dá cabo de mim.

    Apontamentos, Devaneios

    Livros que não li (1)

    Ryszard Kapuscinski

    Kapuściński Non-Fiction, de Artur Domoslawski

    Uma vez, no século passado, antes ainda de Abril de 1974, tentava eu sair do Porto com destino ao sul – tinha ido a uma manifestação-relâmpago no 1º de Maio e ainda vinha com os valores da adrenalina em alta – quando apanhei boleia de um sujeito que conduzia um carro topo de gama e tinha todo o aspecto de um daqueles contra os quais os meus camaradas me tinham prevenido. Éramos dois rapazes e eu, o mais tímido dos dois, preferi o banco de trás, no qual sentiria menos o dever de fazer conversa com «o burguês». Foi nessa altura que vi, sobre o banco traseiro, um exemplar de um livro de Lenine, Como Iludir o Povo, julgo que ainda na velha edição da Centelha. Puro engano do homem, naturalmente, pois se é verdade que Lenine sabia enganar o povo, não era bem no sentido que aquele sujeito com ele provavelmente esperava treinar. Com a devida distância, talvez tenha sido por uma confusão análoga que Como falar dos livros que não lemos?, do psicanalista e professor de literatura Pierre Bayard, chegou em 2007 a ser o no. 1 do top de vendas em França.

    Mas claro que este título é uma piada e apenas enganará os tolos. Só mesmo um viciado na leitura pode escrever um livro como aquele, que trata sobretudo do drama do grande leitor, ou do crítico que o é também forçosamente, quando colocado perante a paisagem vasta até à desmesura, e que não pára de crescer, dos livros que jamais poderá ler pois não tem tempo de vida suficiente para o fazer: «a leitura é primeiro que tudo a não-leitura e mesmo para os grandes leitores que lhe consagram toda a sua existência, o simples gesto de pegar e de abrir um livro encobre sempre o gesto inverso.» Por isso são tão importantes os livros que lemos quanto os livros que não lemos, ou que ainda não lemos. Se não formos distraídos, uns levam-nos a outros e por uns poderemos entrever aquilo que os outros poderão conter, levando-nos a procurá-los, a oferecê-los ou mesmo a falar deles a quem nos queira ouvir Quem nunca recomendou um livro que jamais leu – seja ele a Bíblia Sagrada, um romance de Salman Rushdie ou a biografia de José Mourinho – que atire a primeira pedra.

    k_nonfictionÉ a partir desta ideia que passarei a falar aqui, de vez em quando, dos livros que ainda não li ou que jamais lerei. Dos quais sempre adiei a leitura, como os sete tomos de A la recherche du temps perdu, de Marcel Proust, que cheguei a ter alinhadinhos na estante. De quem não tenho vontade alguma de ler o quer que seja (admito que por ignorância e mau feito), como qualquer romance, apostilha ou conta da mercearia de José Rodrigues dos Santos. De quem nada posso ler uma vez que se trata de um autor que não existe e acabo de inventar, como o austríaco Paul Wassenberger. Ou de autores que conheço mas de quem não li «aquele» apenas porque ainda o não apanhei a jeito, como Non-Fiction, a biografia de Ryszard Kapuściński (1932-2007) escrita pelo jornalista Artur Domoslawski e que é já um best-seller na Polónia. Ela promete dar a conhecer melhor o passado de espião ao serviço do regime comunista polaco e de grande cultor de um certo «jornalismo ficcionado» que, post-mortem, fez e faz dele uma figura simultaneamente duvidosa e fascinante. Este está na calha, podem crer.

      Devaneios, Olhares

      Kindlemania (3)

      Ainda o Kindle

      Mais cedo do que contava, mas em parte porque me têm chegado algumas perguntas de pessoas que estão a ponderar comprar também o Kindle 3, aqui ficam algumas notas práticas sobre o funcionamento do aparelho e a experiência que nestes curtos quatro dias fui acumulando. Relembro que se encontram outras informações no primeiro e no segundo dos posts que já escrevi sobre o assunto.

      # Insisto num aspecto no qual a Amazon também insiste. Na mensagem que acompanha a própria máquina, lembra Jeff Bezos, o CEO da empresa, que o objectivo é fazer com que o Kindle «desapareça nas nossas mãos», melhorando a velocidade de acesso, a facilidade de aquisição e a capacidade de armazenamento fruídas pelo leitor, mas sem quebrar a «capacidade de dissolver a relação ruidosa com o mundo exterior» que é própria da concepção de leitura que a empresa privilegia. Logo, não se trata de um computador com «bells and whistles», mas sim de uma espécie de gabinete de leitura. A ausência de cor leva também, falo por mim, a um aumento da capacidade de concentração.

      # É verdade que senti rapidamente a falta da possibilidade de copiar texto e de o enviar por mail para alguém (ou para mim próprio), mas a ideia é mesmo essa. Estão a ver: ninguém manda mails através de um livro em papel ou de um jornal. Uns amarão, outros odiarão. Estou tentado a inclinar-me mais para o campo dos primeiros.

      # Sim, podemos ler textos em formato PDF, DOC, HTML e outros. No entanto resulta melhor se usarmos um programa de conversão para o formato Kindle, como o Calibre ou mais uns quantos. Este é gratuito e funciona de forma eficaz e transparente. Mas alguns repositórios de textos, como o do Projecto Gutenberg, têm já versões formatadas directamente para serem lidas nesta máquina.

      # Estou a gostar imenso de ter todas as manhãs no Kindle, por volta das 7 horas e sem mexer uma palha, a edição do El País (sem a maior parte das imagens e sem os suplementos semanais). Fica em cerca de 11 Euros mensais, o que não é nada caro. A New York Review of Books custa 4. Mas podemos sempre testar 14 dias antes de fechar o contrato. E anulá-lo a qualquer momento.

      # A duração da bateria depende do uso, naturalmente. Estou a usá-la de maneira intensa desde há perto de 80 horas, sempre com o Wi-Fi ligado, e tenho ainda uns 60 por cento da energia disponível. Se se mantiver o ritmo, uma utilização intensa e constante dará para trabalhar uns 10 dias sucessivos sem carga. De acordo com as notícias que chegam, se desligarmos o mesmo Wi-Fi e usarmos tudo de forma moderada este prazo dilatará até às três semanas ou mesmo a um mês. Além disso, a bateria não reproduz o conhecido efeito de «viciamento», tão comum nos computadores portáteis e nos telemóveis.

      # Se comprarem, não esqueçam a capa. A da própria Amazon, em pele, é perfeita pois protege, quase não aumenta o volume (é como ter um caderno Moleskine clássico na mão) e amplia a sensação de «leitura física».

      Espero poder fazer um último post sobre o assunto quando tiver um grau de utilização já razoavelmente consolidado. Para já, e sem favor, 4 estrelas em 5.

      [continua]

        Atualidade, Cibercultura

        O Avante!, a China e outras coisas

        As botas de Estaline

        Não sou leitor habitual do Avante! Salvo quando o meu trabalho o requer, leio apenas artigos do jornal para os quais me chamam a atenção. Isto nada tem a ver com a concordância ou a discordância em relação à linha política partidária que veiculam. Todos os dias oiço ou leio posições políticas muito diferentes, das quais me aproximo ou discordo, por vezes radicalmente, e não é por isso que me recuso a lê-las ou a dar-lhes a atenção crítica que merecem. Quanto muito, se não me interessam desligo e passo ao lado. Democracia é acima de tudo combate e diálogo, falar e saber ouvir, argumentar e respeitar, ser arrojado mas procurar consensos. É escolha. Mas é também expor razões sem debitar juízos de valor de natureza casuística sobre as pessoas das quais discordamos, é não insinuar frases retiradas do contexto mas procurar compreendê-las de forma integrada, é mostrar paixão sem destilar constantemente o ódio. A negação de tudo isto, está nos livros, é própria do pensamento único, que aduba o terreno para a vertigem totalitária, começando por desqualificar toda a diferença que a sua lógica cheia de certezas seja incapaz de integrar. E é esta a atitude que o Avante! constantemente propaga.

        Mas não é apenas por isso que não leio o jornal. Nem é sequer porque não tenho tempo para tudo ler, o que, infelizmente, até é verdade. É também porque gosto de textos arrebatadores que ali é impossível encontrar, é porque me aborrece mortalmente a linguagem previsível e repetitiva que o percorre de uma ponta à outra, é porque rejeito a inaptidão que demonstra para debater com a verdadeira diferença, é porque não gosto de omissões escolhidas a dedo, é porque me incomoda o tom agressivo, crispado e repetidamente insultuoso de quase todos os articulistas. Um tique leninista que tem o seu livro sagrado no opúsculo miserável sobre A Revolução Proletária e o Renegado Kaustky, uma autêntica cartilha sobre a arte de bem caluniar.

        Um bom exemplo no qual todas estas características se encontram juntas pode ser dado pelo artigo «Duas sílabas apenas», de Jorge Cordeiro, no qual se retoma a tendência relativamente nova do PCP para elogiar a China contra aqueles que criticam a forma como ali o direito à expressão do pensamento livre e ao pluralismo político é brutalmente espezinhado. Para além da lengalenga sobre o «preconceito anticomunista» – equiparado na verborreia a qualquer forma de combate pelos direitos humanos, o que é logo bastante significativo –, veja-se a forma ali tomada pelo ataque pessoal (pessoal, sublinho, pois nada tem de crítica de ideias) a Ana Gomes e a Francisco Louçã. A defesa abstracta da política nacionalista – que a par do obreirismo é um dos actuais esteios ideológicos e orgânicos do partido –, conduz à afirmação do mais completo desdém pelo «federalismo» de Ana Gomes, «para quem o valor da soberania nacional é como água em deserto». Uma vende-pátrias, pois. Ao mesmo tempo, remói-se o suposto passado de Francisco Louçã, «para quem só o soletrar do par de sílabas daquele país lhe aviva irresolúveis problemas de consciência que acompanham o seu percurso político», seguindo-se uma tentativa de desqualificação pessoal. Isto tão-só e apenas a propósito da crítica que a eurodeputada socialista e o dirigente bloquista fizeram às escolhas políticas da China e à intervenção das suas opções económicas no contexto da actual crise mundial. Repare-se bem que o articulista, um importante membro de penúltima geração da Comissão Política do Comité Central, se refere precisamente a dois responsáveis dos únicos sectores (a mítica «Esquerda do PS» e o famigerado Bloco de Esquerda) com os quais o PCP poderia, por um passe que desta forma só poderá mesmo ser de mágica, ensaiar a construção de uma alternativa política para o país. A não ser que conte fazê-lo com os «amigos» do Partido Ecologista Os Verdes, os veneráveis e semiclandestinos senhores da «Intervenção Democrática» e uns quanto distraídos que aparecem sempre no horário de expediente.

        Claro que o facto de eu não gostar de ler o Avante!, e de não recomendar a outros que o leiam, não significa que aquilo que escrevo neste blogue e que refira de algum modo o PCP não seja imediatamente objecto de escrutínio e, como não poderia deixar de ser pois essa é «a escola», de pequenas campanhas difamatórias por parte de alguns dos seus leitores mais fiéis e mais nervosos. O mesmo acontecerá eventualmente com este post. A verdade é que até posso escrever 324 que falem do tempo que tem feito na ilha de Páscoa, do campeonato de críquete no Paquistão, da descoberta de um filme inédito com o Buster Keaton e dos chilreios dos passarinhos, mas se ao tricentésimo vigésimo quinto escrever a palavra PCP toca algures uma sirene de aviso e os bombeiros-incendiários de serviço descem pelo varão para se meterem no carro e saírem a alta velocidade pelas ruas mal iluminadas da blogosfera. Vida difícil a deles. Mas foram eles quem a escolheu.

          Atualidade, Olhares, Opinião

          Papéis Roubados #6

          Manuel Rivas

          O escritor, poeta, ensaísta e jornalista galego Manuel Rivas, que costumo ler com a atenção que merecem sempre todos os alertas, deixou no caderno principal do El País de sábado uma crónica rápida mas penetrante sobre aquilo que chamou de «melancolia democrática». Uma sensação generalizada de desprendimento diante do compromisso que nos está a empurrar a todos sabe-se lá para onde. Podemos ter a absoluta certeza de que não será para o Paraíso.

          Los Ex
          Manuel Rivas

          El País -13/11/2010

          En el mundo vivimos una situación extraordinaria. En unas partes más extraordinaria que en otras, es verdad, pero todos compartimos un extraordinario desasosiego. La sensación de lo ex. La melancolía democrática. Sabemos quien gobierna, pero no quien manda. No es el fin de la historia, pero vivimos en una atmósfera de ex historia. Unos cuantos ejemplos frescos. En Europa, para salvar la caja de Pandora de los especuladores del capitalismo mágico, se saquean las conquistas sociales. Es el ex Estado de bienestar. Los universitarios británicos esperaban la gratuidad de matrículas y les han devuelto dos tazas de tasas. Era una promesa en firme de los ex liberaldemócratas, caídos en la red de los ex conservadores, a su vez atrapados en la telaraña de los conservaduros. En el Sáhara Occidental, nuestros conciudadanos ex españoles sufren la expulsión exterior y el expolio interior. En vez de autodeterminación, una lenta exterminación. En México se habla de la desaparición de un Estado desorganizado ante el poder del crimen organizado. Mientras, el gran supermercado gringo abastece la libre balacera. En este contexto, las voces que más se escuchan son las de los ex. Los ex discursos. En España, el ex González con un ex dilema que confunde el estadista con un Zeus que podría decidir sobre la vida y la muerte, al margen de un Estado de derecho que él ayudó a crear. El ex Bush exculpándose de una cruzada bélica que él encabezó, al tiempo que justifica la tortura con una literatura del género horroroso. Una posición que recuerda aquel eufemismo del ex policía de la dictadura portuguesa que definió el tormento como “ausencia de confort”. Lo que también provoca una ausencia de confort mental es descubrir por Bush que el espiritista de las Azores fue nuestro ex Aznar, a quien llama El Visionario. Otra profecía de José María Nostradamus y acabamos todos cazando leones en Escocia. Menos mal que nos queda la experanza.

            Atualidade, Opinião, Recortes

            A sorte de Boris

            Boris Pasternak

            Apesar de tudo, Boris Pasternak foi um homem com sorte. Muito poucos intelectuais soviéticos terão sido amigos de tantos autores perseguidos por não aderirem aos cânones do realismo socialista ou por atacarem abertamente José Estaline – como, no seu círculo, aconteceu com Osip Mandelshtam, Marina Tsvetayeva, Anna Akhmatova ou Mikhail Bulgakov – e viveram tempo suficiente para se gabarem disso. É verdade que ainda hoje é mais conhecido na Rússia como poeta do que como romancista, em virtude de O Doutor Jivago ter sido silenciado por motivos políticos e de em 1958 ter sido impedido de aceitar o Prémio Nobel da Literatura, mas pôde manter o privilégio de fazer aquilo que fazia, se bem que de forma condicionada. O jornalista e também escritor Ilya Ehrenburg conta nas suas memórias um episódio que ilustra o clima no qual se vivia em plena época do Grande Terror (1936-1938). Ilya regressava a Moscovo depois de uma temporada em Espanha, onde cobrira como correspondente a Guerra Civil, quando deparou com um aviso na porta do elevador do prédio onde vivia: «Proibido deitar livros na retrete. Os infractores serão descobertos e castigados». Os moradores procuravam desfazer-se dos livros de autores que tinham sido liminarmente proibidos. De que forma Boris Pasternak sobreviveu a este ambiente de medo e coacção é algo que está por esclarecer. Provavelmente nunca teremos uma resposta. Mas por distracção do regime e do NKVD não terá sido com toda a certeza. Um tema desenvolvido no El País de hoje.

              História, Poesia

              Górecki

              Acaba de morrer na sua cidade natal de Katowice o polaco Henryk Górecki (1933-2010). Um dos compositores contemporâneos – navegando ao longo da vida entre o minimalismo e um certo neo-romantismo – que me são claramente mais queridos. Relembro-o aqui no quase popular andamento «Lento e Largo Tranquillisimo» da Sinfonia No. 3. A «Sinfonia das Canções Tristes» concebida como uma homenagem sentida às vítimas do Holocausto.

              [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=chwDoQuD77g[/youtube]
                Memória, Música

                Imaginar não custa

                Greve Geral

                Aproxima-se o dia 24 de Novembro e com ele virá a Greve Geral destinada a protestar, em primeiro lugar nos locais de trabalho mas também nas ruas, contra as pesadas medidas de austeridade que para centenas de milhares de pessoas serão também de penúria. É impossível deixar de acompanhar a CGTP e a UGT nesta jornada de combate para retirar do silêncio o protesto daqueles que de uma forma ou de outra irão certamente sofrer. E não se pense que estes serão apenas os sectores sociais que já vivem na pobreza ou para ela caminham. Muitas pessoas que até agora mantinham uma vida digna, que não precisavam de cortar a direito na alimentação, na saúde, na educação, no vestuário, na habitação, vão ter de o fazer. Pior: vão ter de o fazer na perspectiva deste não ser ainda o fim da linha e sem uma previsão de melhoria para a próxima década. Protestar é por isso importante. Não porque o protesto ou «a luta» – esse conceito abstracto que algum tentam manter invocando a utopia do governo perfeito «dos trabalhadores» que sucederá à «queda do capitalismo» – leve os actuais governantes a mudarem de posição, mas para que, quem decide colocando os outros apenas como figurantes e não como protagonistas, entenda que é preciso pensar, procurar e promover uma alternativa.

                Só que existe um problema que limita sempre o alcance deste combate. É verdade que as dificuldades são reais e não melhoram, antes pelo contrário, fazendo um apelo a que se conservem sem reequilíbrios, dentro do actual sistema, todos os direitos e regalias dos trabalhadores. Não se pode voltar ao velho slogan do final da década de 1970 bradando apenas «os ricos que paguem a crise». O Estado social não vive do ar e as coisas chegaram a um ponto tal que nem todo o dinheiro dos nossos ricos dará para fazer com que a economia passe a rolar de maneira equilibrada e sem problemas. Não se pode viver do dinheiro que não há e os sacrifícios serão, sem dúvida, inevitáveis. Mas é preciso evitar que eles penalizem sobretudo o elo mais fraco. A alternativa passaria necessariamente por uma política económica e social radicalmente diferente, capaz de alterar as suas prioridades em função de um conceito não meramente gestionário do serviço público. Capaz de combinar a dinâmica internacional do mercado com uma gestão segura mas corajosa e imaginativa dos recursos. Que não se aplique a nivelar por baixo mas aproveite as capacidades humanas e materiais do país para o tornar mais competitivo e próspero. Não sendo economista ou político profissional, não posso passar, como o cidadão, desta declaração de princípios utópicos que apontam para a compatibilização do desenvolvimento com uma política social justa.

                Só que nada disto se pode fazer sem vontade política e o drama, o nosso drama, consiste em ser necessária uma política alternativa, solidária, democrática e de esquerda que não tem quem a prepare, debata, demonstre e aplique. Há cerca de duas semanas, num curto texto de opinião saído no Público, o politólogo André Freire queixava-se de que, em Portugal «a direita (PSD vs CDS) é capaz de cooperar; a esquerda (PS vs BE e PCP) não, nunca o foi, excepto em questões marginais de luta política», deixando implícita a necessidade desta cooperação «à esquerda». A verdade, porém, é que ela não é possível, uma vez que a linha dominante do PS apoia uma versão light das políticas neoliberais que subjugam o país e o mundo desde os anos oitenta, o PCP não sai da sua posição obreirista, mostrando-se incapaz de se comprometer com soluções democráticas de governo e limitando-se a uma posição de natureza protestativa, e o BE não tem ainda dimensão, maturidade política e apoio público para se apresentar como alternativa de poder. Diante desta situação, só resta a quem trabalha uma posição de protesto e defensiva. Preparando a resistência aos golpes ainda mais brutais que esse governo de direita que se anuncia inevitavelmente trará. A Greve Geral do dia 24 será um passo nesta direcção. Quem sabe se ela servirá para abalar consciências e lançar os fundamentos «subjectivos e objectivos» que permitam avançar gradualmente, com metas, numa outra direcção. Imaginar não custa dinheiro. Por enquanto.

                  Atualidade, Democracia, Opinião

                  Back in 1969

                  Jim

                  O governador da Florida, Charlie Crist, sugeriu que Jim Morrison possa vir a receber um perdão póstumo da condenação por ter mostrado tudo, e simulado mais umas quantas coisas na linha do supostamente indecoroso, durante um concerto público que teve lugar em Miami há cerca de 41 anos. Acho mal, pois vão prejudicar o bom nome do ex-vocalista dos Doors. O próximo passo deverá ser a divulgação maciça deste vídeo iconoclasta. Mas não a deste.

                    Apontamentos, Devaneios

                    Kindlemania (2)

                    O Kindle e o amigo

                    Cumprindo o prometido, passo a relatar as primeiras impressões do meu contacto com a máquina-Kindle e com aquilo que com ela é possível maquinar.

                    Começo pela maneira como tudo aconteceu. Fiz a encomenda à Amazon americana por volta das três da manhã desta Segunda-Feira e às nove e meia de Quarta já a campainha tocava para o estafeta da DHL fazer a entrega. Tudo rápido e transparente – pude seguir o trajecto do volume a partir de Cincinnati, Ohio, através do Atlântico e meia Europa fora – superando em eficiência o melhor que poderia esperar. A abertura da caixa fez crescer a boa impressão: o aparelho é ainda mais bonito e leve do que a propaganda anunciava, e a capa em pele, vendida pela própria Amazon, adapta-se perfeitamente, quase sem aumentar o volume do aparelho. Ajuda aliás a criar a sensação de se ter nas mãos uma coisa viva, que se nos cola à pele como o velho livro em papel, e que não é bem aquele tipo de objecto cheio de tecnologia capaz de se descontrolar. Os comandos são simples, intuitivos, fáceis de utilizar e fui capaz de automatizar a maioria dos passos fundamentais em pouco mais de 24 horas de utilização.

                    É preciso entretanto notar duas coisas importantes. Em primeiro lugar, que o Kindle não é um computador. Serve apenas para ler, encomendar livros electrónicos e tomar notas sobre os mesmos. Não é retro-iluminado e não tem reflexo (quanto mais luz sobre o ecrã incidir melhor se lê), não faz qualquer ruído em stand by ou a trabalhar, salvo um pequeníssimo clique que assinala o virar de página, quase não precisa de energia (parece que um utilizador intensivo pode passar três semanas sem ter de o ligar à corrente). Em segundo lugar, que o Kindle não é uma imitação do livro em papel. A relação física é bastante diferente, o processo de habituação demorará inevitavelmente algumas semanas, e, evidentemente, existem coisas que fazemos com os livros em papel desde os meados do século XV e que aqui não são nem serão possíveis. Ou pelo menos não podem fazer-se da mesma maneira. Nomeadamente os processos de anotação e consulta – mais até do que de leitura – que precisam ser reaprendidos ou reinventados em termos de técnica e de rotinas.

                    Para já, o mais complicado é mesmo resistir à possibilidade de, com um só clique, comprar livros, jornais e revistas atrás de livros, jornais e revistas. Sob este aspecto, e para além do domínio do inglês – é provável que a explosão da oferta de conteúdos nas outras línguas mais faladas ainda demore dois ou três anos a acontecer –, o limite é a conta bancária. Por isso há que ter juizinho e ver bem onde é que metemos os dedos para não nos entalarmos. Daqui por umas semanas ainda voltarei ao tema, nessa altura com mais alguma experiência acumulada.

                    [continua]

                      Cibercultura, Etc.

                      O medo (Hobbes vs. Rousseau)

                      Medo

                      Uma nota no Facebook chamou-me a atenção para um artigo de Viriato Soromenho Marques publicado no Diário de Notícias da última Terça-Feira. Este retomou ali a conhecida opinião de Thomas Hobbes acerca do papel do medo como factor capital para a instauração da ordem pública e do bom governo. De caminho, distanciou-se de uma opinião do filósofo José Gil a propósito do lugar do mesmo medo no actual alastramento, pelas ruas, moradias e locais de trabalho, de um clima de intimidação imposto pela fragmentação do social. No essencial, Soromenho Marques pretende dizer que esta situação não é um mal em si, podendo até, muito pelo contrário, funcionar como instrumento para a construção de um bem maior. Usando as suas próprias palavras: «O medo combate a desmesura, estimula a inteligência, promove o raciocínio estratégico, incentiva a disciplina, ajuda-nos a conhecer os nossos limites, e a respeitar os limites dos outros.» Sob diferentes rostos, esta posição tem fundamentado todas as formas de exercício discricionário da autoridade, justificando-as em nome de um arbítrio imposto por «o homem ser o lobo do homem» e necessitar de trela para não despedaçar o seu semelhante.

                      Este género de opinião deriva de uma filosofia social, de uma consideração do humano e até de uma uma concepção de vida na cidade que contém uma dimensão particularmente deprimente e perigosa. Ela implica a aceitação absoluta da desigualdade, já que o medo se apoia sempre numa relação de poder que subordina, sem remissão, o amedrontado a quem o amedronta. Supõe uma maldade intrínseca à essência do humano que bloqueia a construção de uma ideia de justiça que não seja a justiça do carcereiro. E ataca uma das bases fundamentais da democracia que é a expressão de uma opinião informada, fundamentalmente livre e não sujeita a coacções de toda a ordem. Regresso, para usar idênticas armas, às palavras de Jean-Jacques Rousseau, a velha bête noire de Hobbes no campo da filosofia política, retiradas do seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, escrito em 1754 para a Academia de Dijon:

                      «Eu teria escolhido aquela [República] na qual os particulares, contentando-se em dar sanção às leis e em decidir pessoalmente, com o testemunho dos chefes, os mais importantes negócios públicos, estabelecessem tribunais respeitados, distinguissem cuidadosamente os seus diversos departamentos, elegessem todos os anos os mais capazes e os mais íntegros dentre os seus concidadãos para administrar a justiça e governar o Estado, e na qual, sendo a virtude dos magistrados testemunho da sabedoria do povo, uns e outros se honrassem mutuamente. De sorte que, se jamais funestos mal entendidos viessem perturbar a concórdia pública, até tempos de cegueira e de erros fossem marcados por testemunhos de moderação, de estima recíproca e de comum respeito às leis, presságios e garantias de reconciliação sincera e perpétua.»

                      Eis a essência desejável da democracia, seja ela representativa ou participativa, que o artigo sinistro de Soromenho Marques revela desprezar em absoluto, ao propor uma harmonia assente não no justo consenso e na dádiva mas sim na pura coerção. Talvez este exprima uma tendência que emerge do lado mais sombrio da História e que de vez em quando sai do caixão e regressa para nos atormentar, criando a ficção de que a paz dos escravos alicerça o melhor dos mundos, uma vez que nos afasta do território tumultuoso, «decaído», onde se constrói com dor a emancipação, a liberdade e o bem-estar. Talvez este seja um sinal de perigo ao qual devamos prestar atenção.

                        Atualidade, Olhares, Opinião

                        Kindlemania (1)

                        Foi você que pediu um Kindle?

                        Depois de algumas incertezas, de sondar dezenas de sites e de pedir a opinião de uns quantos utilizadores com quem espero não ter de me incompatibilizar, deixei domingo passado na Amazon a nota de encomenda da última versão do Kindle, o leitor de e-books. Sou e manter-me-ei um amante crónico e um tanto depravado dos livros em papel. Tenho bem para cima de seis milhares e não há semana em que não me entrem em casa uns quantos mais. Mais até do que aqueles que consigo ler. Mas a falta de espaço, a obrigatoriedade da redução de custos, a necessidade de aceder «na hora» a determinadas obras, a hipótese de poder meter 3.500 volumes num prato da balança e 247 gramas de contrapeso no outro, fez com que me decidisse. Ao mesmo tempo, se é verdade que gosto muito de livros, é verdade também que gosto acima de tudo da leitura, e esta é uma experiência, este é um campo, que vive um tempo de rápida mutação de processos e de paradigma. Não sinto que tenha a obrigação de participar dela, mas apetece-me acompanhar o que acontece. Mantendo uma vida dupla, evidentemente.

                        Como sei que algumas das pessoas que se dão ao trabalho de passarem habitualmente por este blogue partilham ou podem vir a partilhar da mesma dúvida que antecedeu a minha decisão, resolvi deixar aqui algumas notas sobre as primeiras experiências que for tendo com o novo brinquedo que – recebi agora mesmo um mail de confirmação do envio – vem já a caminho. Prometo, com a mão que quiserem sobre o livro sagrado que escolherem – formatado em papiro, pergaminho, papel, bits ou e-ink – que a respeito do tema apenas direi a verdade e nada mais do que a verdade. Entretanto, enquanto vou esperando que me bata à porta o estafeta da DHL que trará a encomenda, adianto as razões que fizeram com que eu tenha escolhido esta máquina e não uma outra.

                        Para não me perder por atalhos escusados e em pormenores que apenas interessam a geeks, começo por responder à pergunta inevitável: porquê o Kindle e não o iPad, a máquina da Apple que aparece na capa de todas as revistas e suplementos, concorrendo com Cavaco Silva, Jon Stewart e a Lady Gaga. Directo ao essencial: 1) Um, o Kindle, destina-se apenas à leitura silenciosa, privada, que é aquela que procuro; o outro associa-lhe o e-mail, a música, o browser e milhares de aplicações que a todo o instante desviam a atenção (para isso tenho o iPod, o iPhone, o netbook e o tradicional desktop…); 2) Um tem uma tecnologia de escrita e leitura (a e-ink) que me asseguram cansar menos até do que o papel, o que não se passa com o iPad; 3) Um pode ser lido ao sol (parece que até se lê melhor com mais luz), enquanto o outro reflecte a nossa cara se lhe bate uma luz mais forte; 4) Um quase não consome energia, precisando a bateria de uma única carga mensal, o outro aguenta-se, no máximo, dois dias; 5) Um dispõe de um volume de oferta, em número e qualidade dos títulos disponíveis para compra ou descarga grátis, incomparavelmente superior ao outro; 6) Um, o Kindle topo de gama (3G e Wi-Fi), custou-me cerca de 200 Euros, incluindo os portes a partir dos Estados Unidos, o IVA, a taxa de desalfandegação (tratada pela própria Amazon) e uma capa de protecção em pele, enquanto pelo iPad, também topo de gama, pagaria no mínimo cinco vezes mais. Claro que para outras actividades ambulantes o iPad é superior: tem um ecrã maior e a cores (o do Kindle é em 16 tons de cinzento), em breve será multitarefas e nem sequer lhe falta falar. No entanto, para o que me interessa neste particular, prefiro um e-book solícito, sossegadinho e ultra-portátil.

                        Agora há que esperar para ver se arranjei mais uma maneira de alimentar o vício, ou, pelo contrário, se enfiei um enorme barrete. Mas depois de tanta consulta, de tanta pergunta feita e respondida, de tanta ponderação, muito mau seria para a minha auto-estima e para a minha carteira se tal acontecesse. I cross my fingers.

                        Adenda às 18H45 do dia 9, Terça-Feira – Fiz a encomenda no domingo à noite e a DHL acaba de me telefonar para comunicar que amanhã, durante a manhã, ela me será entregue. Cincinnatti (Ohio) – Louisville (Kentucky) – Colónia – Porto – Coimbra em pouco mais de 48 horas. A Amazon não brinca em serviço. |  Adenda às 09H23 do dia 10, Quarta-Feira – Já chegou.

                        [continua]

                          Cibercultura, Olhares

                          Momento M

                          Aconteceu há 21 anos. Eram 18 horas e 53 minutos de 9 de Novembro de 1989. Enquanto manifestações populares colossais exigiam nas ruas de Berlim-Leste, de Leipzig e de outras cidades o fim dos limites impostos ao trânsito dos cidadãos para fora da antiga República Democrática Alemã, um membro do governo de Egon Krenz, o efémero e medíocre sucessor de Erich Honecker, precipitou-se ao ser pressionado pelos jornalistas e deu como aprovado, «com efeitos imediatos», um documento ainda em preparação que autorizava formalmente a passagem de pessoas comuns entre os dois lados do Muro. O processo que se seguiu foi rápido, imparável e felizmente irreversível. Nessa altura Frau Angela Merkel não passava de uma funcionária semi-obscura que trabalhava como química numa instituição científica leste-alemã.

                          [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=MM2qq5J5A1s[/youtube]
                            História, Memória

                            Um ataque injusto e gratuito

                            O escrevedor

                            O último número, o de Novembro, da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique, globalmente excelente como sempre – destaca-se desta vez um dossiê sobre a recusa da «ordem insustentável» na qual somos forçados a sobreviver –, contém um artigo lamentável assinado por Ignacio Ramonet. Não se trata de uma raridade na intervenção do autor, pois desde há muito que Ramonet vem, repetidamente, mesclando posições justas de crítica e de combate no campo da esquerda com profissões de fé contra ideias e experiências que perturbam o núcleo idiossincrático no qual fixou a sua concepção do que é ou não é esquerda. Ou, mais abrangentemente, do que é ou não é democrático, de acordo com a noção de democracia que o seu conceito de esquerda recolhe. Não esqueço, por exemplo, a série de conferências que proferiu (estive pelo menos em duas), de artigos e livros que escreveu (alguns deles foram editados em Portugal), dedicados, há cerca de uma década atrás, ao combate contra alguns dos inúmeros «malefícios da Internet» que depois foram instrumentais no levantamento de novas formas de sociabilidade e de determinados movimentos sociais.

                            Desta vez Ramonet atira-se, em «Os dois Mario Vargas Llosa», ao mais recente «escrevedor» laureado com o Nobel da Literatura. Começa por confirmar enfaticamente a sua valia como escritor, reconhecendo-o como «extraordinário na capacidade de misturar as técnicas de romance social, histórico e realista, ou mesmo do romance policial», tendo-o, aliás, mostrado «brilhantemente». Mas logo de seguida, e é esse o objectivo central do artigo, volta-se contra o que considera ser a deriva de direita do escritor. Está, naturalmente, no uso do seu mais do que legítimo direito à crítica. Aliás, partilho de algumas das suas perplexidades em relação a determinadas posições tomadas no passado, no plano político, por Vargas Llosa. Mas o jornalista vai muito para além da discordância, insinuando mesmo questões de carácter cuja invocação, para além de incorrecta, é até profundamente injusta. Ouçamo-lo: (mais…)

                              Atualidade, Olhares, Opinião

                              notas & recados

                              Correio

                              #12 – Esta série tem passado um tanto ao largo do alinhamento recente do blogue. Por nenhum motivo especial. Talvez apenas por esquecimento, pois existem sempre notas por escrever e recados para dar. Do que não me esqueço, porém, é de checar quase todos os dias – parece que já posso usar a palavra ‘checar’ com a firme anuência dos bons dicionários – os meus blogues favoritos. Um deles, que nem sempre tenho destacado como merece, é o Tempo Contado, do escritor J. Rentes de Carvalho. Vão lá sff e pode ser que me entendam, apesar daquela fonte liliputiana que turva a visão e obriga a que nos concentremos mesmo no que estamos a fazer.

                                Atualidade, Olhares

                                Mercado chinês

                                Chinese market

                                A visita de Hun Jintao a Portugal é como a visita de Hun Jintao a qualquer lugar do mundo. Segundo os jornais, são mais de trinta as entidades e empresas chinesas que acompanham o Presidente chinês e uma das cartas na manga e na mesa consiste na compra do BCP – não confundir, por favor, com o PCP (camaradas, sim, ma non troppo!) – pelo ICBC, o poderoso Industrial and Commercial Bank of China. Jintao vem pois, basicamente, tratar de negócios. Em algum momento, porém, dirá umas quantas palavras de circunstância sobre uma certa «fraternidade entre os povos», materializável na caritativa generosidade de Pequim para com os países-pobrezinhos da Europa. Esses que bem precisam do investimento chinês para desatascarem a carroça da estrada esburacada para a qual inadvertidamente se deixaram empurrar. E para continuarem a assegurar o seu papel de compradores.

                                Neste contexto, pouco importarão princípios reclamados por uns quantos extravagantes que não sabem permanecer sabiamente calados. Princípios vagos, traduzíveis em palavras como «democracia», «liberdade de expressão», «direitos humanos», «direitos dos trabalhadores» ou «sindicatos livres». Temas incómodos que apenas servem de embaraço à imposição, nos convénios laboriosamente preparados, de umas rápidas rubricas capazes de satisfazer os mercados e «estimular as respectivas economias». Ou, mais propriamente, que enriquecerão uns quantos, concedendo-lhes, ao mesmo tempo, a boa consciência de prestarem um serviço público, uma vez que «riqueza atrai riqueza». Por isso nada há a esperar para além da deferência dos partidos do poder, traduzida num silêncio cobarde perante o imperador chinês e as iniquidades em vigor no Estado «dos dois sistemas». Aquele no qual combinam harmoniosamente o capitalismo mais selvagem e a repressão «socialista» dos direitos e da voz de quem dá o corpo ao manifesto. Tudo se compra, tudo se vende no mercado chinês. Mas quem manda é o mercador, não o cliente.

                                  Atualidade, Democracia, Opinião

                                  Três inspirações

                                  estação de comboios

                                  O serviço público dos correios fez-me chegar esta semana três livros que encaixam, cada um à sua maneira, no grupo das obras que podem interromper o opressivo discurso realista a propósito do que merece verdadeiramente a nossa atenção. Qualquer um deles nos ajuda a identificar no trânsito de outros tempos, recorrendo a vozes e a lugares distantes, formas de mágoa, de desilusão mas também de alguma esperança. Estados de espírito não contabilizáveis em termos de utilidade, que nos aproximam muito mais do humano do que os malabarismos especulativos para justificar a crise do sistema e as incomodativas arengas que asseguram nada podermos fazer para a derrotar, salvo esperar, tal como acontecia com as pragas medievais, que faça as suas vítimas e passe o mais rápido possível. Fecho pois a porta da rua, ligo o candeeiro, acendo um cigarro e mergulho nos papéis.

                                  O primeiro livro é A Tomb for Boris Davidovich, do jugoslavo Danilo Kiš. Sim, jugoslavo, pois morreu em 1989 e, como descendente de sérvios, croatas, montenegrinos, húngaros e judeus, não fora Tito e os seus partizans e teria uma vida muito diferente. Kiš publicou em 1976 este conjunto de sete contos – convocado por Harold Bloom para The Western Canon – que são biografias ficcionadas de pessoas que existiram, confrontadas a dada altura do seu passado com a degenerescência do regime socialista e a impiedade do seu sinistro aparelho repressivo. A particularidade destes contos reside numa característica dos protagonistas: todos eles se distinguiram das pessoas comuns por terem acreditado um dia no ideal comunista e no mundo novo que este parecia poder produzir sob condições «reais». Porém, todos também viveram para testar a brutalidade de um sistema capaz de engolir muitos dos que confiaram nos seus fundamentos, que lhe dedicaram parte das suas vidas e que o ajudaram a erguer. Com todas estas histórias se aprende, no entanto, que a injustiça coabita sempre com a confiança no que trará o dia seguinte.

                                  O segundo é Café Europa. Life after communism, da croata Slavenka Drakulić, lançado em 1996. Ao contrário do que pode ser encontrado no também seu Como Sobrevivemos ao Comunismo Sem Perder o Sentido de Humor (já aqui comentado), neste livro fala-se do universo renovado, cravado de vícios antigos mas também de grandes expectativas e de enormes logros, que resultou das transformações ocorridas no leste europeu nos anos que se seguiram imediatamente à Queda do Muro e ao colapso do comunismo institucional. Fala-se principalmente do vácuo deixado pela derrocada do poder socialista nos sistemas de crenças e nas expectativas da generalidade das pessoas, comuns e incomuns. Forçadas todas elas, de um momento para o outro, a esquecerem a ficcionalização da utopia com a qual tinham convivido ao longo de décadas, e obrigadas a trocá-la pela convivência difícil com o deserto do real. Detecta-se todavia um halo de confiança, traduzido numa certa convicção de que a integração na casa europeia comum abriria um caminho novo para a felicidade possível. Como se sabe, a história parece estar a correr mal, mas os sinais de esperança tendem sempre a persistir.

                                  O terceiro livro, a única novidade, é The Memory Chalet, de Tony Judt, a cuja voz regresso uma outra vez. Este sim, é mesmo o derradeiro livro do historiador, escrito já num estado de enorme debilidade motivada pela doença que o foi diminuindo e acabou por levar. O anterior Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos foi redigido, aliás, já nesta situação. No entanto o processo utilizado foi aqui prodigiosamente único. Noite fora, totalmente imobilizado na cama, Judt passou a empregar o tempo com evocações e devaneios, através dos quais a sua prodigiosa memória foi ocupando, divisão a divisão, o «chalé suíço», como lhe chamou, no qual este livro se foi transformando. De manhã ditava as suas evocações, algumas delas publicadas ainda na New York Review of Books. Trata-se pois de um conjunto de 25 «ensaios ditados», provavelmente um género novo, através dos quais Judt nos foi falando da juventude em Londres, do ano de 1968 e dos grandes projectos da sua geração («uma geração revolucionária que falhou a revolução»), de viagens através da Europa e da América, de cheiros, de sabores, de comboios, chegadas e partidas. E sobretudo de pessoas no tempo, presas sempre, umas às outras, através desse «fio da História» que nunca desistiu de perseguir.

                                    Ficção, História, Memória, Olhares