Uma nota no Facebook chamou-me a atenção para um artigo de Viriato Soromenho Marques publicado no Diário de Notícias da última Terça-Feira. Este retomou ali a conhecida opinião de Thomas Hobbes acerca do papel do medo como factor capital para a instauração da ordem pública e do bom governo. De caminho, distanciou-se de uma opinião do filósofo José Gil a propósito do lugar do mesmo medo no actual alastramento, pelas ruas, moradias e locais de trabalho, de um clima de intimidação imposto pela fragmentação do social. No essencial, Soromenho Marques pretende dizer que esta situação não é um mal em si, podendo até, muito pelo contrário, funcionar como instrumento para a construção de um bem maior. Usando as suas próprias palavras: «O medo combate a desmesura, estimula a inteligência, promove o raciocínio estratégico, incentiva a disciplina, ajuda-nos a conhecer os nossos limites, e a respeitar os limites dos outros.» Sob diferentes rostos, esta posição tem fundamentado todas as formas de exercício discricionário da autoridade, justificando-as em nome de um arbítrio imposto por «o homem ser o lobo do homem» e necessitar de trela para não despedaçar o seu semelhante.
Este género de opinião deriva de uma filosofia social, de uma consideração do humano e até de uma uma concepção de vida na cidade que contém uma dimensão particularmente deprimente e perigosa. Ela implica a aceitação absoluta da desigualdade, já que o medo se apoia sempre numa relação de poder que subordina, sem remissão, o amedrontado a quem o amedronta. Supõe uma maldade intrínseca à essência do humano que bloqueia a construção de uma ideia de justiça que não seja a justiça do carcereiro. E ataca uma das bases fundamentais da democracia que é a expressão de uma opinião informada, fundamentalmente livre e não sujeita a coacções de toda a ordem. Regresso, para usar idênticas armas, às palavras de Jean-Jacques Rousseau, a velha bête noire de Hobbes no campo da filosofia política, retiradas do seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, escrito em 1754 para a Academia de Dijon:
«Eu teria escolhido aquela [República] na qual os particulares, contentando-se em dar sanção às leis e em decidir pessoalmente, com o testemunho dos chefes, os mais importantes negócios públicos, estabelecessem tribunais respeitados, distinguissem cuidadosamente os seus diversos departamentos, elegessem todos os anos os mais capazes e os mais íntegros dentre os seus concidadãos para administrar a justiça e governar o Estado, e na qual, sendo a virtude dos magistrados testemunho da sabedoria do povo, uns e outros se honrassem mutuamente. De sorte que, se jamais funestos mal entendidos viessem perturbar a concórdia pública, até tempos de cegueira e de erros fossem marcados por testemunhos de moderação, de estima recíproca e de comum respeito às leis, presságios e garantias de reconciliação sincera e perpétua.»
Eis a essência desejável da democracia, seja ela representativa ou participativa, que o artigo sinistro de Soromenho Marques revela desprezar em absoluto, ao propor uma harmonia assente não no justo consenso e na dádiva mas sim na pura coerção. Talvez este exprima uma tendência que emerge do lado mais sombrio da História e que de vez em quando sai do caixão e regressa para nos atormentar, criando a ficção de que a paz dos escravos alicerça o melhor dos mundos, uma vez que nos afasta do território tumultuoso, «decaído», onde se constrói com dor a emancipação, a liberdade e o bem-estar. Talvez este seja um sinal de perigo ao qual devamos prestar atenção.