Três inspirações

estação de comboios

O serviço público dos correios fez-me chegar esta semana três livros que encaixam, cada um à sua maneira, no grupo das obras que podem interromper o opressivo discurso realista a propósito do que merece verdadeiramente a nossa atenção. Qualquer um deles nos ajuda a identificar no trânsito de outros tempos, recorrendo a vozes e a lugares distantes, formas de mágoa, de desilusão mas também de alguma esperança. Estados de espírito não contabilizáveis em termos de utilidade, que nos aproximam muito mais do humano do que os malabarismos especulativos para justificar a crise do sistema e as incomodativas arengas que asseguram nada podermos fazer para a derrotar, salvo esperar, tal como acontecia com as pragas medievais, que faça as suas vítimas e passe o mais rápido possível. Fecho pois a porta da rua, ligo o candeeiro, acendo um cigarro e mergulho nos papéis.

O primeiro livro é A Tomb for Boris Davidovich, do jugoslavo Danilo Kiš. Sim, jugoslavo, pois morreu em 1989 e, como descendente de sérvios, croatas, montenegrinos, húngaros e judeus, não fora Tito e os seus partizans e teria uma vida muito diferente. Kiš publicou em 1976 este conjunto de sete contos – convocado por Harold Bloom para The Western Canon – que são biografias ficcionadas de pessoas que existiram, confrontadas a dada altura do seu passado com a degenerescência do regime socialista e a impiedade do seu sinistro aparelho repressivo. A particularidade destes contos reside numa característica dos protagonistas: todos eles se distinguiram das pessoas comuns por terem acreditado um dia no ideal comunista e no mundo novo que este parecia poder produzir sob condições «reais». Porém, todos também viveram para testar a brutalidade de um sistema capaz de engolir muitos dos que confiaram nos seus fundamentos, que lhe dedicaram parte das suas vidas e que o ajudaram a erguer. Com todas estas histórias se aprende, no entanto, que a injustiça coabita sempre com a confiança no que trará o dia seguinte.

O segundo é Café Europa. Life after communism, da croata Slavenka Drakulić, lançado em 1996. Ao contrário do que pode ser encontrado no também seu Como Sobrevivemos ao Comunismo Sem Perder o Sentido de Humor (já aqui comentado), neste livro fala-se do universo renovado, cravado de vícios antigos mas também de grandes expectativas e de enormes logros, que resultou das transformações ocorridas no leste europeu nos anos que se seguiram imediatamente à Queda do Muro e ao colapso do comunismo institucional. Fala-se principalmente do vácuo deixado pela derrocada do poder socialista nos sistemas de crenças e nas expectativas da generalidade das pessoas, comuns e incomuns. Forçadas todas elas, de um momento para o outro, a esquecerem a ficcionalização da utopia com a qual tinham convivido ao longo de décadas, e obrigadas a trocá-la pela convivência difícil com o deserto do real. Detecta-se todavia um halo de confiança, traduzido numa certa convicção de que a integração na casa europeia comum abriria um caminho novo para a felicidade possível. Como se sabe, a história parece estar a correr mal, mas os sinais de esperança tendem sempre a persistir.

O terceiro livro, a única novidade, é The Memory Chalet, de Tony Judt, a cuja voz regresso uma outra vez. Este sim, é mesmo o derradeiro livro do historiador, escrito já num estado de enorme debilidade motivada pela doença que o foi diminuindo e acabou por levar. O anterior Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos foi redigido, aliás, já nesta situação. No entanto o processo utilizado foi aqui prodigiosamente único. Noite fora, totalmente imobilizado na cama, Judt passou a empregar o tempo com evocações e devaneios, através dos quais a sua prodigiosa memória foi ocupando, divisão a divisão, o «chalé suíço», como lhe chamou, no qual este livro se foi transformando. De manhã ditava as suas evocações, algumas delas publicadas ainda na New York Review of Books. Trata-se pois de um conjunto de 25 «ensaios ditados», provavelmente um género novo, através dos quais Judt nos foi falando da juventude em Londres, do ano de 1968 e dos grandes projectos da sua geração («uma geração revolucionária que falhou a revolução»), de viagens através da Europa e da América, de cheiros, de sabores, de comboios, chegadas e partidas. E sobretudo de pessoas no tempo, presas sempre, umas às outras, através desse «fio da História» que nunca desistiu de perseguir.

    Ficção, História, Memória, Olhares.