Brincando com fósforos

O partido do carago

Se acontecesse, digamos, há uma dúzia de anos, não passaria de um episódio curioso, que nos faria encolher os ombros, sorrir um pouco e passar adiante. Mas está a acontecer agora, quando as eleições em Itália ou na Áustria têm mostrado de que forma pode o regionalismo exacerbado servir a fácil promoção de ódios internos e de soluções autoritaristas. Pedro Baptista – um combatente de fôlego das esquerdas por quem tenho uma simpatia antiga, mas que é por vezes pródigo em assomos populistas – fala-nos do Partido do Norte, do qual será um dos fundadores, como «uma força pragmática, sem limitações ideológicas, para a defesa dos interesses da região», capaz por isso de unir numa causa comum pessoas de quadrantes políticos muito diversos. Só que de santo e «inóquo» pragmatismo, de beata descaracterização ideológica, de algum bem-aventurado espírito regionalista, e de uma sagrada união sobre tais fundamentos estabelecida, está cheio o departamento do inferno para onde vai a direita mais primitiva e mais perigosa. Aquela que está sempre a tentar reerguer a cabeça. Eu tomaria todas as precauções para não me aproximar de tais valores e de tal gente.

[ler também aqui e aqui]

    Atualidade, Opinião

    Manuel segundo José

    Manuel e José

    Dizer-se, como acaba de dizer José Sócrates, que se apoia «o Manuel Alegre» – repare-se que aqui não houve «camarada», «companheiro» ou sequer «dr.», como aconteceu noutras ocasiões  – porque com ele se partilha um valor comum, «o do progressismo», é bizarro e é curto. Bizarro pois esse é um conceito varrido desde há muito do vocabulário político contemporâneo. Herdado da velha filosofia das Luzes, que pretendia dotar a História de um trajecto «progressivo», linear e cumulativo em termos de conhecimento e de felicidade terrena, ele foi de tal forma usado e abusado ao longo de mais de dois séculos – particularmente pelos positivistas republicanos de Oitocentos – que se tornou, nos programas políticos de várias esquerdas, ou nas metanarrativas a elas associadas, em claro indício da mais completa vacuidade. Os últimos a utilizá-lo com frequência, os partidos comunistas, têm continuado a servir-se do termo para se referirem àqueles partidos, diferentes movimentos ou proeminentes cidadãos que com eles possam colaborar, como «progressistas» companheiros de jornada, numa dada etapa do combate político que lhes importa. Mas o qualificativo do qual se serviu Sócrates é também curto, pois não servirá para convencer quem quer que seja – a começar pelos militantes socialistas impressionados por longos anos de minimização interna das atitudes cívicas de Alegre – a sair da apatia e a votar neste para presidente da República. É preciso bem mais para convencer e para mobilizar o povo. Se for essa realmente a intenção, evidentemente.

      Apontamentos, Opinião

      Dennis

      Morreu hoje o Dennis Hopper (1936-2010). O Goon de Rebel Without a Cause (meninos jornalistas, em Portugal chamou-se Fúria de Viver, no Brasil Juventude Transviada). O fotojornalista do Apocalypse Now. O pai de Mickey Rourke em Rumble Fish. O Frank Booth de Blue Velvet. Mas para mim, principalmente, o Billy de Easy Rider. Em cima daquela mota, por interposta pessoa, vislumbrei um dia outra vida. Quanto à vida dele parece que Dennis passou por ela muito bem, obrigado. Intensamente, como é preciso.

      [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=mJS8j9YYB9w[/youtube]
        Apontamentos, Cinema, Memória

        Eles vivem

        Estaline vive

        A possibilidade de terem sido os serviços secretos soviéticos a fazer gorar dois atentados contra Adolf Hitler, que deveriam ter ocorrido em 1943 e depois em 1944 e se destinavam a mudar a liderança alemã, criando condições para se pôr termo à Segunda Guerra Mundial – e tendo provavelmente evitado a fase mais letal do Holocausto e da própria guerra – foi colocada há já algum tempo. Desta vez parece que as provas foram mesmo reunidas e serão publicadas em breve na Rússia. O objectivo era relativamente simples e «fez escola»: tornava-se necessário evitar a todo o custo que os eventuais sucessores do ditador nazi pudessem firmar uma paz separada com os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. Como sempre, quanto pior melhor. Distribuídos «do Atlântico aos Urais», não faltarão com toda a certeza contemporâneos nossos capazes de compreender, se não mesmo de aplaudir, a decisão do «heróico» carniceiro georgiano.

          Apontamentos, História

          Pequenos pequenos nadas

          Brel e Gitanes

          Depois do anterior post sobre o desaparecimento dos cigarros Gitanes do mercado, recebi uma dezena de mails sobre o assunto. Chegaram todos de pessoas que não conheço do mundo material, nem elas a mim, com as quais jamais me cruzei, mas que se aproximaram na tristeza solidária e na revolta por verem desaparecer esse momento especial que era ao mesmo tempo um hábito e um ritual. Agora eclipsado por troca com sensaboria normalizada de um tabaco claro e sem alma. Num dos mails recebidos evocava-se um aspecto crucial que me escapara no post: «aquela sensação de ter um Gitanes no meio dos dedos, dada a sua espessura única». É realmente verdade que essa ausência pesa também: aquele milímetro a mais de circunferência, suficiente para conferir ao momento uma robustez que se impunha na experiência do fumador e na forma como este concebia o seu lugar social, vincando a margem de diferença em relação aos vulgares consumidores de tabaco light. E como são importantes para nós, certas vezes, estes pequenos pequenos nadas.

          Jacques Brel, fumeur de Gitanes – J’en appelle
          PLAY

            Apontamentos, Etc., Memória, Música

            À espera das cerejas

            cerejas

            Os invernos poderiam ter sido menos rigorosos, menos tristes as viagens de comboio, menos previsíveis os desfiles do Maio. Teríamos crescido a cruzar pacificamente as cidades dos irmãos Vesnine, a viver com os quadros de Altman, os poemas de Tsvetaeva e de Akhmatova, os compassos menos previsíveis de Chostakovitch. Aragon não teria cantado o cavalo metálico sob as chaminés poluentes de Magnetogorsk. Barbusse teria permanecido um desconhecido para os nossos avós. Eisenstein teria filmado grandes planos de gargalhadas e de mãos a acariciarem-se. Ter-se-ia fundido menos bronze para robustecer as estátuas. Não teriam ressoado gritos nocturnos pelos corredores da Lubianka. Teria corrido menos gelo pelas almas e ter-se-ia notado mais ruído pelas ruas. E provavelmente o socialismo seria hoje uma expressão de humanidade tão calorosa e natural quanto o amor, a felicidade ou a compaixão.

            [escrito em 2003, revisitado hoje]

              Apontamentos, Devaneios, Olhares

              Será pedir demais?

              Café

              Todos sabemos, ou vamos sabendo à medida que o tempo roda, que a possibilidade de nos deixarmos  surpreender vai sempre diminuindo. A acumulação de experiência faz-nos perder alguma capacidade de maravilhamento – eis o lado triste do processo –, mas prepara-nos também para os momentos difíceis que precisaremos enfrentar. Quando tudo decorre de forma natural, o último deles, o da nossa própria morte, é recebido com serenidade, sem grande espanto ou gestos tempestuosos. Dizem-me que é assim e não estou em condições de duvidar de que assim seja.

              Em algumas situações, porém, a nossa crescente capacidade de encaixe pode vacilar. Eu, por exemplo, não consigo compreender o motivo pelo qual, nos jornais e nos blogues, um certo número da intelligentsia que apoia activamente actual governo – pessoas informadas, com comprovada capacidade crítica, sensibilidade manifesta e inteligência acima da média – se concentram diariamente, e apenas, na defesa de qualquer medida gestionária do executivo, de qualquer gemido ou murmúrio de um seu responsável, e na tentativa de destruição sistemática de qualquer argumento que se lhes oponha minimamente, em vez de aplicarem os seus esforços na construção de uma solução para actual crise que não seja simplesmente ao nível do reflexo condicionado. De outra política, ousada, mobilizadora, que se aplique a combater a doença e não apenas a abordar os sintomas com um paliativo.

              Porque não acordam estas pessoas – de quem se espera sempre algo mais – e deixam a defesa cega da quinta para os quadros partidários ou do governo, em ascensão ou instalados, em geral sem capacidade para pensarem melhor ou irem mais longe, que não concebem outro caminho, e não se concentram na busca, necessariamente positiva e dialogante, de alternativas políticas ousadas e construídas em profundidade? Em vez de se limitarem a silêncios comprometidos ou a reacções indignadas e de casta diante do comentário negativo, da contestação legítima, da desconfiança e do desânimo que se propagam, elas deveriam exercer a sua condição de massa crítica do Partido Socialista para requererem soluções que não sejam apenas, uma vez mais, as centradas no balancete enfadonho da mercearia, na pequenez da legislação estritamente casuística, na resposta pavloviana aos ditames de burocracia bruxelense ou no apelo ao apertar do cinto por parte de quem já o mantém estreitado no derradeiro furo. Não será pedir demais.

                Atualidade, Olhares, Opinião

                Voyeurismo

                O voyeur

                Sobre o caso que empurrou Torre de Dona Chama para as bocas do lado mais ocidental da Península nem tudo foi dito. Não se falou, por exemplo, do mau gosto dos blogues, geridos por pessoas jovens, citadinas, modernas, viajadas, de leituras, tolerantes e até «feministas», que recorreram sem pestanejar ao expediente fácil, de um voyeurismo camuflado, confrangedor e um bocado bimbo, traduzido na ilustração galhofeira dos seus posts sobre o tema com fotografias da professora Bruna em pose erótica retro-kitsch à anos 70. Era mesmo preciso?

                  Apontamentos, Atualidade, Fotografia

                  Tiananmen em versão não-oficial

                  Zhao

                  Na China de hoje, Zhao Ziyang é uma pessoa que não existe. Foi primeiro-ministro desde 1980 até 1987, quando o secretário-geral do Partido Comunista era Hu Yaobang, tendo-o substituído no cargo entre 1987 e 1989. Hu e Zhao partilharam, sob a tutela de Deng  Xiaoping, a direcção do processo de liberalização económica, de reforma do Estado e de abertura ao exterior vivida nos anos de transição da era pós-Mao. Mas ambos foram abandonados pelo seu protector quando começaram a considerar a possibilidade de separar o Partido do Estado e de permitir uma maior liberdade de opinião. No caso de Zhao, a queda foi precipitada pela forma como, em Abril e Maio de 1989, lidou com os protestos estudantis da Praça Tiananmen, que a ala mais conservadora, chefiada por Li Peng, entendeu dever ser tratada com punho de ferro. Zhao recusou assumir essa responsabilidade, tendo então sido afastado do poder e colocado sob prisão domiciliária até à morte, ocorrida em 2005. Prisioneiro de Estado apresenta parte substancial de um registo, gravado sob cativeiro em 30 cassetes de baixa qualidade preservadas por terem sido escondidas entre os brinquedos dos netos, no qual aborda a sua versão dos acontecimentos e faz um balanço dos anos na gestão do Estado.

                  A sequência escolhida pelos editores – um deles, Bao Pu, é filho do secretário pessoal de Zhao – não é a das gravações, procurando antes atribuir uma ordem temática a declarações que muitas vezes misturavam assuntos. A parte mais intensa é a primeira, na qual se relatam os acontecimentos de Tiananmen e o combate então travado dentro dos órgãos directivos do Partido. Trata-se de um relato diferente do oficial, que penaliza a intervenção do sector conservador mas nem por isso é completo, uma vez que não considera as reivindicações daqueles que realmente fizeram no movimento de rua. Segue-se uma descrição, detalhada, por vezes um pouco enfadonha mas historicamente interessante por constituir também uma versão alternativa da consagrada oficialmente, da luta de Zhao Ziyang para aplicar as reformas políticas e económicas que propunha. Ao longo de todas estas páginas, porém, surge clara a forma como a sua posição jamais beliscou os fundamentos do regime, apenas tendo sido tornada inconveniente devido à inflexibilidade da ala que se opunha ao enfraquecimento da centralidade do Partido e do controlo estatal do sistema produtivo, apenas deixando uma maior margem de manobra para as modificações do mercado.

                  «Um olhar íntimo sobre um dos regimes mais compactos do mundo», escreve-se na badana. O principal interesse deste livro é realmente permitir-nos observar, a partir de dentro, a permanente luta de facções, de interesses e de vaidades que se esconde por detrás do aparente monolitismo do Partido e do regime. Nele não está, aliás, incluído o desenvolvimento protagonizado por Zhao nos últimos anos de vida, quando chegou à conclusão de que, para progredir, a China viveria melhor sob um sistema parlamentar capaz de impedir a concentração excessiva do poder e o consequente imobilismo. Afinal, quem fala aqui é ainda o comunista tranquilo e sorridente, o «Gorbatchev chinês» que a História derrotou.

                  Publicado na revista LER de Abril

                  Prisioneiro de Estado. O Diário Secreto de Zhao Ziyang. Ed. por Bao Pu, Renee Chiang e Adi Ignatius. Trad. de Ana Glória Lucas. Casa das Letras, 364 págs.

                    Atualidade, História

                    Vermelho Rouge

                    La Chinoise

                    Bem sei que serei um pouco suspeito para falar de O Essencial sobre a Esquerda Radical, de Miguel Cardina, pois sou amigo e companheiro de blogue do autor, orientador da sua tese de doutoramento sobre o maoismo em Portugal e coordenador da colecção na qual o livro foi publicado. Além disso, fiz parte do enredo deste. Mas uma vez confessada a parcialidade fico à vontade para recomendar este pequeno volume como uma eficaz síntese sobre a intervenção cívica, durante os derradeiros anos do Estado Novo, de um sector da oposição que até agora tem sido referido num registo meramente memorialista e autocomplacente, ou ao nível da boutade sobre o «tenebroso» passado político de Fulano, Sicrano ou Beltrano.

                    De forma sumária, pode dizer-se que da sua leitura resulta claro: 1) que nenhum dos numerosos grupos inventariados procurava transformar o regime, melhorá-lo, «democratizá-lo», e todos associavam a sua queda à queda do capitalismo e a uma Revolução redentora cujos contornos eram incapazes de precisar; 2) que todos eles condicionavam a ambicionada política de alianças à «direcção da classe operária» e à intervenção da violência revolucionária como «parteira da História»; 3) que a par da luta contra o regime e contra o sistema capitalista, o combate contra o PCP, acusado de «reformista», «revisionista» ou «burocrático», foi uma constante e um factor de mobilização; 4) que neste ambiente pairava omnipresente a marca de um internacionalismo veemente e de um antinacionalismo visceral, acusando-se também o PCP de transigir nesses domínios; 5) que surgia como indispensável o alargamento do político ao domínio do privado, procurando combater-se a alienação económica, psicológica, sexual, cultural e ideológica «imposta pela burguesia»; 6) que era perceptível neste sector uma sobrevalorização do papel transformador da juventude e do carácter avançado do movimento estudantil, de onde provinha a maior parte dos seus membros; 7) que, apesar do escasso número de militantes, o seu extremo activismo, a importância prioritária que davam à luta anticolonial e a defesa de que só a ruptura era possível, conferiram a estes grupos, no seu todo, um apoio razoável entre a juventude e um papel muito importante, em particular durante o período marcelista, na preparação das condições subjectivas para a queda do regime. Através deste Esquerda Radical fica ainda a perceber-se um pouco melhor o porquê de, com todas as suas forças, fraquezas e numerosas contradições, eles terem desempenhado um papel saliente no combate político e social travado durante o «biénio revolucionário». [Miguel Cardina, O Essencial sobre a Esquerda Radical. Angelus Novus, 120 págs.]

                    Publicado também no Vias de Facto

                      História

                      O PCP e a deserção

                      Guerra Colonial

                      Por causa da escusada tirada de Manuel Alegre sobre a sua honradez militar, voltou a discutir-se o papel da deserção e dos desertores na resistência ao regime salazar-marcelista e à Guerra Colonial. A posição da chamada esquerda radical é conhecida e, com ténues variantes, traduziu-se na recusa completa ao embarque para África. Já a do Partido Comunista Português foi menos linear. Politicamente coerente com a linha unitária do partido, em última instância ela remetia – e há notícias de que tal realmente aconteceu – para situações pessoais muito complexas. Compreender-se-á o que quero dizer pela leitura deste post. Fica aqui um fragmento da minha intervenção sobre o tema («As esquerdas e a oposição à Guerra Colonial») no II Congresso sobre a Guerra Colonial que decorreu em 2001 no Seixal, com organização da Universidade Aberta. Tem pois cerca de dez anos e já foi completado por investigação posterior, mas no essencial mantém-se actual. Retirei as notas e cortei partes que aqui são menos relevantes. O post é longo e num registo algo académico inabitual neste meio, mas vale a pena evocar estes episódios para diluir mal-entendidos.

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                        História, Memória

                        O meu Facebook tem a mania

                        Facebook

                        Admito que a minha vida no Facebook está a ser um pouco difícil de gerir. Primeiro inscrevi-me por motivos profissionais, trocando raras mensagens com três ou quatro pessoas. Depois chegaram os amigos próximos e distantes. E os familiares directos ou afastados. Lá fomos convivendo todos naquele barco azul, num clima simples e descontraído. De seguida as pessoas a quem (presumo) de vez em quando interessa o que eu possa dizer. E aquelas pelas quais eu me interesso. De quem gosto ou de quem penso poder vir a gostar. Até aqui, tudo bem também: fui mandando uns bitaites num ambiente informal, trocando umas ideias, partilhando prazeres moderados e pequenos ódios, vendo e dando a ver. Sem problemas, num registo por vezes intimista, algumas vezes delirante. Mas nas últimas semanas estão a chegar às dezenas pessoas que não conheço, que não são amigas dos amigos, de quem nada parece aproximar-me – certas vezes, olhando o seu perfil, antes pelo contrário – pelo que a algumas destas, lamento, declino o pedido de «amizade». Quero continuar a passar por ali um pedaço giro do dia e da noite. Ou a queixar-me sem pensar se o devo ou não fazer. Não a aborrecer-me ou a ter de fazer de conta. Se fosse político profissional, pop star, vendedor da televisão por cabo ou o arcebispo de Cantuária, lá teria mesmo de falar com toda a gente, beijar criancinhas com xixi, convencer as sombras do meu perfil fidedigno, evitar «expor-me» em demasia, fazer «amigos» e conhecer pessoas aos magotes. Como não sou, em casos pontuais terei de reservar o direito de admissão. Claro que assim jamais chegarei a Presidente da Junta, mas a liberdade paga-se.

                          Cibercultura, Etc., Olhares

                          Meu querido fumo azul

                          Gitanes

                          E pronto, morreu um pouco mais da França que amei. No princípio da semana, repeti o hábito pendular de há uns vinte anos: saí de manhã, bem cedo, e fui à tabacaria comprar o meu pacote de dez maços de Gitanes. Fumo sem vício e pouco, mas por isso mesmo gosto de fumar bem, tabaco que se sente, forte e com personalidade, que arde devagar e se cheira à distância. Abalancei-me por algum tempo ao Celtiques – julgo que por causa de uma canção de Léo Ferré –, mas como amargava e me amarelava os dedos, retornei às caixinhas azuis com a cigana dançarina em silhueta.

                          Na loja, a empregada perturbou-me quando disse que entretanto tinham deixado de receber a marca. Como percebeu logo que eu tinha ficado aflito, sugeriu que passasse a comprar Ducados, ou talvez Gauloises, pois fora isso «que os outros clientes fizeram». Ainda pensei que se tratasse de um equívoco, de incompetência ou de maldade, motivados por razões obscuras que não tentei averiguar. Não era o caso, infelizmente: fui a outra tabacaria, e depois a outra, e a outra ainda, e depois a um armazém de distribuição, mas todos disseram o mesmo: «sabe, lamentamos mas essa marca deixou de ser distribuída», procurando logo esclarecer-me sobre aquilo «que os outros clientes fizeram».

                          A ver a vida a andar para trás, fui a correr ao Google. E sim, lá encontrei a notícia, pelas barbas cheias de nicotina de todos os grandes fumadores:

                          «Production in France recently halted, with one factory remaining operational in the Netherlands. This is mainly due to the rise on tobacco levies imposed by the French government in the wake of health advice, which has forced the price of French cigarettes up to the level of those from the USA, with the more aggressively promoted brands such as Marlboro now taking the majority market share.»

                          Quer isto dizer que não só uma das imagens de marca (literalmente) da França contemporânea vai desaparecer – logo ela, que até serviu de capa ao belo elogio do cigarro como experiência estética que é Cigarettes are Sublime, o livro de Richard Klein onde se explica que o maço de Gitanes funciona com «um emblema de beleza» e de «poderoso charme» –, como tal se deve à irracionalidade do fundamentalismo antitabagista europeu e à ginástica dos bosses da indústria americana do tabaco, que assim vêem chegar uma nova clientela.

                          Morrem assim de novo, agora provavelmente de vez, Serge Gainsbourg e Jacques Brel (cada um consumia sem pestanejar cinco caixinhas azuis de tabaco enrolado por dia), Jacques Prévert, Jean Gabin, Albert Camus, Luis Buñuel, John Lennon e Jim Morrison. E a bem dizer também eu morri um pouco. Pois, como o Gainsbourg, «sans elles [les gitanes] je suis malheureux».

                            Apontamentos, Memória, Olhares

                            Dança das Cadeiras

                            Musical Chairs

                            É bastante expressivo o encolher de ombros da opinião pública – perceptível nos blogues, nos jornais ou nas declarações públicas de alguns políticos, para não falar das conversas de café, mais ocupadas com a visita papal ou as escolhas de Carlos Queirós – a propósito da ocupação do nº 10 de Downing Street pela família de David Cameron e da chegada ao poder da coligação entre tories e liberais. Mesmo entre a esquerda que supostamente lhe estaria próxima, não se vislumbra o mais pequeno esgar de contrariedade pela retirada de cena de Brown e do Labour. Um bom indicador de como, neste momento, poucos acreditam em políticas determinadas por projectos claros e distintos, com carácter, nos quais se vota por convicção e mediante expectativas. Tudo se assemelha, cada vez mais, à estrita gestão dos espaços numa infinita dança das cadeiras. Isto é mau, muito mau.

                              Atualidade, Olhares, Opinião

                              O desertor

                              O desertor

                              A divulgação, por parte do cidadão Manuel Alegre de Melo Duarte, dos dados constantes do seu registo militar, tem contornos deploráveis que não podem ser ocultos do exame público. Essa publicitação, feita no site www.manualalegre.com, destina-se a demonstrar que o candidato presidencial «não tem nada a esconder, ao contrário dos cobardes que espalham calúnias a coberto do anonimato e contra os quais não deixará de agir judicialmente» e a provar que «cumpriu o serviço militar, nomeadamente em África e em situações de combate». Mas contém implícito um julgamento da maior gravidade em termos históricos e democráticos: a «acusação» que corre é a de que Alegre terá sido desertor do exército português, variando os boatos apenas ao colocarem o momento da deserção antes da mobilização para África ou já no teatro de guerra angolano. Trata-se de uma questão tornada agora sensível mas que não deveria sê-lo, e é estranho ser um candidato da esquerda, e um resistente ao regime derrotado no 25 de Abril de 1974, a abordá-la desta forma.

                              O número de desertores e de refractários foi sempre muito grande durante a Guerra Colonial, crescendo de forma constante ao longo dos treze anos do conflito, como o revelam os dados divulgados em 1988 pelo próprio Estado-Maior Exército: em 1961 a percentagem de faltosos foi de 11,6%, em 62 subira já para 12,8%, em 1963 atingia os 15,6%, em 1964 subia para 16,5%, entre 1965 e 1968 rondaria os 19%, e entre 70 e 72 andou sempre muito perto dos 21%. Naturalmente, a motivação para «fugir à guerra» ou para abandoná-la a determinado momento, foi sempre diversa. Mas tenha sido ela concretizada por motivos abertamente políticos, por condicionantes de natureza económica ou por actos do domínio da objecção de consciência, tratou-se sempre de uma escolha determinada por uma guerra injusta, como tal legitimadora das mais diversas formas de resistência. De entre elas, a deserção.

                              Para além disso, a chamada «deserção política», aquela da qual Alegre tem sido acusado e da qual se serve periodicamente a direita para tecer insinuações de «cobardia», representou para muitos milhares de jovens um acto de bravura, uma vez que os condenou ao duro exílio, à prisão, ou, por vezes, à clandestinidade. Em qualquer dos casos a uma existência muito difícil, que sabiam ser inevitável em função do seu gesto arriscado e definitivo. Desertar era resistir, tal como, de forma diferenciada mas constante, defendia publicamente a larga maioria da oposição ao Estado Novo, da qual Alegre fez parte e foi importante símbolo. Declarações desta natureza, no mínimo ambíguas, deixam no ar uma desconsideração da coragem de desertar da Guerra Colonial que pode trazer uns quantos votos do eleitorado «viril» mas é pouco digna de um resistente. São inaceitáveis e ofensivas para muitos portugueses vivos ou mortos. E nada têm a ver com o respeito devido à larga maioria daqueles que fizeram a difícil guerra por escolha ou incapacidade para a recusarem.

                              Uma declaração de interesses necessária: fui desertor do exército colonial por razões políticas – forçado a algum tempo de clandestinidade, mas reintegrado nas fileiras em Dezembro de 1974 – e, se não se multiplicarem circunstâncias que me levem a mudar de azimute, conto votar em Manuel Alegre na próxima eleição presidencial.

                              Adenda: um post lateral

                              Publicado também no Vias de Facto

                                Atualidade, História, Opinião

                                Papa Tours

                                Papal Power

                                Considero a visita do papa Ratzinger como a do Dalai Lama: ambos têm todo o direito a fazer turismo religioso, a encontrarem-se com os seus à sombra de uma azinheira, a pregarem a  fé que move as suas vidas e lhes faculta o ganha-pão. O servilismo do Estado é que me dá cabo da paciência, sobretudo quando vejo os responsáveis por uma republica laica, muitos deles declaradamente não-católicos, a persignarem-se e a fazerem a genuflexão com a maior desfaçatez. Fica-lhes bem mostrarem-se corteses para com as visitas, beberem com elas um cálice de Porto, oferecerem-lhes até um CD da Kátia Guerreiro ou do padre Borga. Já lhes fica muito mal mostrarem-se tão servis, exibindo sem pudor essa ausência florentina de convicções que é própria da realpolitik à maneira do século XXI.

                                  Apontamentos, Atualidade

                                  A força da memória

                                  memória

                                  De acordo com um inquérito divulgado pelo diário online Público.es, três em cada cinco cidadãos espanhóis querem que os crimes do franquismo sejam investigados e não fiquem impunes. Uma boa resposta à perseguição judicial revanchista movida contra o juiz Baltasar Garzón. A notícia pode ser lida aqui.

                                    História, Memória