Mudando de planos

O mirone

Comprei o tal número da Playboy portuguesa com o objectivo de um dia o doar, em conjunto com uma colecção completa da Gaiola Aberta e números avulsos do Mundo Ri, a uma qualquer biblioteca pública ainda não subjugada ao império do digital. Coloquei também a hipótese de fazer passar pelo scanner, para ilustrar este post, uma daquelas fotografias, pespegadas na revista, de um Cristo com aspecto de baixista dos Delfins acompanhado de uma menina «estrepitosa» (como se dizia na era da Gaiola Aberta e do Mundo Ri). Puro equívoco: a arte ostentada é medíocre e, Jesus Christ!, não vale a pena desfear um blogue que tanto me custa a polir.

    Devaneios, Etc.

    A escolha

    O teutónico polvo Paul, bem como um crocodilo e um panda ligeiramente menos mediáticos, escolheram a Espanha. Um periquito indonésio decidiu-se pela Holanda. Como sempre, tomarei o partido dos mais fracos.

      Devaneios, Etc.

      E a luta continua

      cubanos

      É de saudar a notícia da libertação de 52 presos políticos cubanos, mas ao mesmo tempo é lamentável que tenha sido apenas a igreja católica local a anunciar a medida, que aqueles que forem sendo libertados se vejam forçados pelo governo de Havana a sair do país (Yoani Sánchez fala claramente de «deportação»), e que muitos outros detidos por motivos políticos não sejam contemplados (167, de acordo com um relatório divulgado esta semana pela Comissão Cubana de Direitos Humanos). Já agora, uma palavra para quem insista ainda em dizer que não existem prisioneiros de consciência em Cuba, mas apenas desordeiros a quem a «legitimidade revolucionária» coloca no lugar que merecem: esta medida confirma o reconhecimento público do delito de opinião e da sua sistemática punição. E comprova a enorme falta de confiança do regime na capacidade de discernimento político do seu próprio povo. A luta de muitos cubanos corajosos continua.

        Atualidade, Democracia

        Arte e espionagem

        Olga com Albrecht Schoenhals

        Antony Beevor tem articulado sempre a solidez de investigação histórica com uma capacidade narrativa fluida e atraente. É este, aliás, um dos motivos do êxito de obras tão merecidamente reconhecidas como Paris Após a Libertação (escrito a meias com a mulher, Artemis Cooper), Estalinegrado, A Queda de Berlim, A Guerra Civil de Espanha e o mais recente Dia D. Saído em 2004, este O Mistério de Olga Tchekova não foge à regra, embora possa, graças em parte ao título escolhido, ser tomado pelo leitor mais distraído como obra de ficção. Na verdade, o escritor e historiador britânico oferece-nos aqui um magnífico fresco, sedutor mas sempre bem documentado, no qual se entrelaçam a história da União Soviética e a da Alemanha durante as décadas que decorreram entre as vésperas da tomada do poder pelos bolcheviques e o avanço do Exército Vermelho sobre Berlim.

        Dois irmãos de ascendência russo-alemã, sobrinhos de Anton Tchekov, são as personagens nucleares, em redor das quais se desenha a trama intensa e dramática dos grandes acontecimentos do tempo, mostrando ao leitor o modo como as duas grandes experiências totalitárias do século passado partilharam importantes momentos de uma história com muito de comum. Olga Tchekova (1897-1980), instalada a partir de 1920 na Alemanha, teve aí um percurso fulgurante como actriz de cinema, tornando-se, logo após a tomada do poder pelos nazis, próxima de Hitler e de Goebbels, e mesmo um ícone do regime. O seu irmão, Lev Knipper (1898-1974), foi um antigo guarda branco arrependido que construiu uma notável reputação como compositor durante as décadas de afirmação do realismo socialista e se tornou agente especial do NKVD, com um papel provavelmente decisivo no recrutamento de Olga como «agente adormecido» dos soviéticos em plena capital do Reich. O epicentro dos acontecimentos narrados situa-se, no entanto, na União Soviética, a partir da relação da família Knipper-Tchekov com os episódios da revolução russa e da guerra civil que se lhe seguiu, com o alastramento incontrolável do terror estalinista e com a invasão nazi, sendo a «conexão alemã» uma consequência destes.

        O recurso à «pequena história» e ao testemunho individual, comum nos livros de Beevor, é determinante para assegurar o interesse deste livro, permitindo ao autor contornar o pesado muro de silêncios e de omissões que foi arquitectado pelo sistema de informação soviético em redor das actividades subterrâneas de Olga e de Lev. Esta valia é ainda reforçada pelo facto de ambos pertencerem a uma destacada família da antiga intelligentsia russa, que usufruíra de um prestígio considerável durante as últimas décadas do czarismo e por isso deveria, em condições normais, ter sido varrida no decurso da revolução ou do violento processo de «construção do socialismo» Pode assim observar-se de que forma uma parte deste importante mas vulnerável sector social conseguiu sobreviver – sem dúvida através de laboriosos processos de adaptação ou de dissimulação – aos longos anos da autocracia estalinista e aos pesados constrangimentos por esta impostos aos intelectuais soviéticos. [Antony Beevor, O Mistério de Olga Tchekova. Trad. de Rita Guerra. Bertrand Editora, 280 págs. Publicado previamente na revista LER.]

          História, Olhares

          A atitude

          Nozolino
          Paulo Nozolino - A mão

          Não irão faltar os jograis prontos a desqualificar, apenas porque configura uma pequena afronta ao actual governo da nação, a atitude de Paulo Nozolino ao decidir devolver o dinheiro do Prémio da Associação Internacional de Críticos de Arte/Ministério da Cultura de 2009 em repúdio por lhe ser exigido o pagamento de IRS sobre o total da importância recebida, mas não é todos os dias que alguém do campo das artes recusa receber 10.000 euros e exige que o seu nome nem sequer conste, de futuro, da lista dos premiados. Acontece, muito simplesmente, que um prémio por mérito artístico é um prémio por mérito artístico e não um serviço prestado em troca dos respectivos emolumentos. Pelo menos para quem não avalie tudo pela óptica do contabilista. Fica registada a atitude frontal do fotógrafo.

          Adenda – Podemos conhecer aqui uma explicação detalhada do próprio Paulo Nozolino.

            Artes, Atualidade, Fotografia

            Do Dr. Goebbels a Eminem

            música

            Acaba de sair por cá o número de Julho-Agosto da revista literária Books (estranho nome este para revista francesa, sinal definitivo de mudança). Domina-o um dossiê, «Le pouvoir de la musique», no qual se enunciam e debatem muitos dos problemas relacionados com a dimensão social e política da produção e dos consumos musicais. Recorda-se, por exemplo, que de Goebbels e Jdanov a Khomeini e aos talibãs, «o poder da música não deixou de preocupar os arautos do Estado totalitário», cujo coração balançou sempre entre o controlo e a interdição. Refere-se a propósito aquilo que Goebbels escreveu numa carta dirigida a Wilhelm Furtwängler, então maestro-titular da Orquestra Filarmónica de Berlim: «A música deve preservar a sua forma original e nenhuma inovação pode ser admitida, uma vez que ela transporta sempre consigo grandes perigos para o Estado. Sempre que as formas musicais se alteram, as leis fundamentais do Estado mudam também». Descreve-se também de que forma o estalinismo se serviu das obras de Prokofiev e de Chostakovitch para ao mesmo tempo as condicionar, ou como foi a rumba «domesticada» em Cuba pelo castrismo. Fala-se do modo como a música serviu para humanizar um pouco a vida e a morte em alguns dos campos de concentração nazis. Viaja-se até às origens do reggae e do seu potencial subversivo, esclarecendo-se ao mesmo tempo de que maneira o disco-sound serviu na década de1970 a afirmação da identidade gay e como, em menos de vinte anos, o hip-hop passou de cultura de rua a modalidade de contracultura e depois a instrumento do capitalismo global. Mas há ainda bastante mais, em dezenas de artigos nos quais por vezes se abre espaço à controvérsia.

              História, Música

              Cura de modéstia

              Albert Camus

              Releio pedaços de Actuelles, a compilação de textos políticos quase todos eles escritos por Albert Camus para o jornal da Resistência Combat – que tenho numa reimpressão velhinha e amarelenta da Gallimard –, e dou de caras com um passo surgido numa crónica de Fevereiro de 1947: «A democracia não se separa da noção de partido, mas a noção de partido pode passar muito bem sem a democracia. Tal acontece quando um grupo de homens imagina deter a verdade absoluta. Eis a razão pela qual a Assembleia e os deputados têm hoje necessidade de uma cura de modéstia». Gosto da ideia – uma cura de modéstia – porque vejo esta qualidade, tomada no sentido de decência, de despretensão, de clareza, como esquecida, abandonada, sistematicamente trocada pela bazófia, pela arrogância, por uma guerra de absolutas certezas que tende a distanciar as democracias de quem as legitima e de quem elas devem servir.

                Atualidade, Olhares

                Problemática albanesa

                Hoxha

                Depois do post anterior sobre Ismail Kadaré e (um pouco) sobre o seu último livro, retorno à problemática albanesa, uma vez que esta não me sai da cabeça. Não por ser problemática, mas por ser albanesa. Acontece que sempre me pareceu profundamente injusta a menorização – por comparação com o impacto do exemplo chinês – da influência do «país das águias» na projecção, à gauche do PCP, de uma alternativa ao regime caduco do «Salazar que ri», como alcunhava o povo a Marcello Caetano. Mas a verdade é que para muitos marxistas-leninistas-maoístas, esvaziada por uma vez a Grande Revolução Cultural chinesa, Enver Hoxha é que estava a dar. E se ninguém se proclamava hoxhista era só porque a palavra soava mal e podia prestar-se a confusões pouco conciliáveis (ou talvez não) com a moral proletária. Muitas horas de nocturno descanso foram consumidas a ouvir a onda curta, vociferada em português do Brasil, que começava assim: «Aqui Rádio Tirana, voz do Partido do Trabalho da Albânia e do marxismo-leninismo, a sua doutrina sempre jovem e científica». Ao que se seguia invariavelmente uma versão bastante singular da Internacional, umas frases do camarada Hoxha «sobre a situação política mundial», as últimas novidades da guerrilha do Araguaia e 15 minutos de música folclórica do distrito de Gramsh, província de Elbasan.

                No que me toca, a problemática albanesa teve ainda um outro impacto, associado a um certo virar de página. Em Abril de 1977 veio a Portugal uma delegação do Partido do Trabalho da Albânia – episódio já mencionado pela Ana Cristina Leonardo na sua Pastelaria –, destinada a ornamentar o primeiro comício público do PCP(R). Num último assomo de convicção pessoal na força da tal «doutrina sempre jovem e científica», ainda fui de camioneta até ao comício no Campo Pequeno para saudar os camaradas albaneses. O momento parecia festivo: muitas bandeiras vermelhas, faixas com palavras de ordem como «os ricos que paguem a crise» e «abaixo a democracia burguesa», música do GAC, julgo que também alguns retratos de Estaline, de Mao e do camarada Hoxha. Mas a festa esmoreceu rapidamente com a entrada em cena da delegação albanesa: um pequeno grupo de idosos de rosto impassível, com chapéus à Al Capone, lenços de Cachemira impecavelmente dobrados no pescoço à maneira dos galãs dos anos 40, e enormes sobretudos cinzentos a contrastarem com o sol de Abril, que conservavam abotoados enquanto batiam palmas daquela forma compassada e aborrecida que podemos observar agora no You Tube. Uma viagem no tempo em forma de pesadelo. E nós que tanto desejáramos encontrar antigos guerrilheiros de porte enérgico e uniforme de partisan, se possível de cartucheira a tiracolo, prontos a esmagar «o imperialismo e o social-imperialismo», empenhados em dar-nos a força da qual tanto precisávamos para resistir à longa ressaca do 25 de Novembro! Creio que o meu entusiasmo esmoreceu logo ali um bom pedaço. E meses depois tinha-me convertido num «independente de esquerda» um tanto problemático. Graças, em parte, à falta de graça dos camaradas albaneses. A juventude não perdoa. Na época dir-me-iam que a «ideologia de classe» também não.

                  Devaneios, Memória, Olhares

                  O viajante albanês

                  Ismail Kadaré

                  Ler romancistas russos, ainda que estes tivessem escrito e publicado na era pré-soviética, já foi neste canto da Europa um acto de resistência. Não parece ter sido possível, mas a verdade é que aos catorze anos devorava Turgueniev, Gogol, Dostoievski ou Tolstoi no convencimento de ler autores proibidos. Ou pelo menos perigosos. Apesar do mais novo de todos eles, precisamente o autor de Guerra e Paz, ter morrido em 1910, quando Lenine ainda passava temporadas a transportar a bagagem e os apontamentos entre Paris e Praga. Algum tempo depois vivi algo parecido com Ismail Kadaré, o mais conhecido escritor albanês.

                  Na minha ignorância, pelos meados dos anos setenta li o seu primeiro romance, O General do Exército Morto (de 1963; traduzido para o francês em 1970), convicto de estar a fazer um merecido favor aos interesses do país do camarada Enver Hoxha, que à época tomava por uma águia. Justamente, soube-o só bastantes anos depois, quando Kadaré tentava conciliar a sua obra, nada subversiva mas também nada conformada aos cânones do realismo socialista, com a capacidade que o regime tinha de a tolerar. O escritor recordava-o há meses ao Nouvel Observateur: «Se você fosse reconhecido, tornava-se uma figura hostil. Porque era senhor num reino, o da literatura, que não era aceitável por um regime autoritário. Você era como um contrapoder que era preciso destruir. Ou então perdia a sua autoridade tornando-se um escritor ridículo, servil, e nesse caso o poder aceitava-o». Aquilo que Kadaré a dado momento fez, como ele próprio reconhece, foi de certo modo degradar-se, tentando demonstrar ao Estado que dele nada tinha a temer. Em retribuição, o governo deixava-o levar uma vida dúplice, passeando pelo mundo a sua reputação de escritor de talento, mas regressando regularmente à sua «vida estalinista» decorrida entre Tirana e a Gjirokastër natal.

                  Em 1990 fartou-se, refugiando-se em França antes ainda do socialismo albanês colapsar. Regressou apenas em 1999. Acusado algumas vezes de ter colaborado com as manobras dos seus compatriotas estalinistas, defendeu-se afirmando, noutra entrevista, que «a dissidência era uma atitude que ninguém podia tomar, ainda que por apenas alguns dias, sem correr o risco de enfrentar um pelotão de fuzilamento», mas considerando, apesar disso, que os seus livros tinham constituído «uma forma muito óbvia de resistência». Sem conhecer o suficiente da vida, da obra e sobretudo das atitudes cívicas de Kadaré para poder ter uma qualquer certeza a este respeito, uma coisa posso, todavia, garantir: que o seu último romance, Um Jantar a Mais, agora editado pela Quetzal, tem a forma de um claríssimo e tragicómico libelo contra o lado perverso do regime de «democracia popular» sob o qual teve de viver a maior parte da vida. Evocando o seu rosto intolerante, violento, persecutório, contra o qual, agora em liberdade, se afirma agora sem margem para dúvidas. Um belo pequeno romance, já agora. Como seria de esperar – embora estas coisas precisem sempre de confirmação – de alguém com o longo e reconhecido trajecto literário do autor. [Ismail Kadaré, Um Jantar a Mais. Quetzal. Trad. de Ana Cristina Leonardo. 176 págs.]

                  «A entrada em cena de dois juízes incumbidos do inqué­rito cortou rente a vaga de especulações. Chamavam-se Shaqo Mezini e Arian Ciu, ambos naturais da cidade e regressados de fresco de Moscovo, onde tinham acabado de se diplomar pela Escola de Administração Interna Dzerjinski. Os seus ros­tos eram pálidos, o nó da gravata bem apertado, os sobretudos estranhamente compridos (dizia-se que o chefe da polícia secreta de quem a escola moscovita herdara o nome usava um capote do género, atribuindo-se-lhe também estas proverbiais palavras: o comprimento do vosso capote será inversamente proporcional à vossa piedade…).»

                    História, Memória, Olhares

                    Obscurantismo e pulhice humana

                    Devil

                    Raramente personalizo as críticas mais extremas. Interessa-me sempre contestar actos ou ideias dos quais divirjo, ou que me repugnam, não tanto agredir directamente as pessoas que lhe dão rosto. Salvo no caso destas, pela sua evidente dimensão pública, serem confundidas com as concepções ou princípios dos quais discordo. Mas nenhuma destas duas possibilidades ocorre no caso do padre Gonçalo Portocarrero de Almada, «licenciado em direito e doutorado em filosofia» e vice-presidente da Confederação Nacional das Associações de Família. Nos textos da sua autoria que regularmente saem no Público não há ideias das quais divirja, mas apenas enunciados recorrentes de ódio e de cegueira. Daí tornar-se impossível dialogar com as suas posições ou dar-lhes sequer uma dimensão que transcenda a esfera da atitude individual despropositada, difícil até de aproximar daquelas que, no interior das mesmas barricadas nas quais ele se entrincheira, pessoas mais ponderadas e argumentativas são capazes de expressar.

                    Portocarrero é um ultramontano primário – neste caso o pleonasmo é justificável – que se crê predestinado a endireitar o mundo, nem que para tal seja necessário enfiar umas boas bordoadas verbais em que, na sua opinião, o faz torto. Não se limita a combater o uso de métodos contraceptivos, a interrupção voluntária da gravidez, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a homossexualidade, o ateísmo, o divórcio, o socialismo ou a esquerda. Todos identificados com o mal mais absoluto. Terá como guia, sem dúvida, o arcaico Syllabus da encíclica Quanta Cura, onde em 1864 o papa Pio IX enumerou os «80 principais erros do nosso tempo». Entre muitos outros, o panteísmo, o naturalismo, o racionalismo, o indiferentismo, o liberalismo, o socialismo, o comunismo, a defesa da imperfectibilidade da Igreja, a separação desta em relação ao Estado, o laicismo, o questionamento do carácter sagrado do matrimónio ou «a civilização moderna». Segundo o padre Portocarrero, para os ímpios que persistem no erro ou no desvio, não há salvação possível e não há comunicação a estabelecer, considerando até condenável que os «verdadeiros cristãos» com eles aceitem dialogar sem a necessária firmeza.

                    Na sua cólera insana e ininterrupta, atira-se agora à memória de José Saramago. Proclama de início um farisaico «paz à sua alma», admitido apesar das «reincidentes irreverências literárias» do escritor. Mas logo o surpreende que «em ocasiões desta natureza, entre as carpideiras habituais do regime laico, se oiçam também algumas lamentações cristãs», vindas dos «fiéis politicamente muito correctos fazem questão em homenagear a ‘coerência’ do defunto». Contra estes, afirma então que «a ‘coerência’ no mal não é virtuosa, mas defeituosa e, nesse caso, o único comportamento moral digno de louvor é, obviamente, a rejeição do mal e a opção pela verdade e pelo bem». Ajuntando que «se errar é humano, perseverar obstinadamente no mal é diabólico». No final do artigo, comete a suprema ignomínia de insinuar desejos para o que julga dever ser o futuro de Saramago perante o tribunal da eternidade: «Queira Deus que não tenha comparecido impenitente ante a Face que perdoa os contritos de coração». Nesse caso, esperá-lo-iam umas merecidas e convenientemente excitadas chamas do Inferno. Um triste espectáculo de obscurantismo e de pulhice humana em forma de letra. Em pleno ano de 2010 d.C.

                      Atualidade, Olhares, Opinião

                      A Biblioteca e a petição

                      No dia 8 de Junho a direcção da Biblioteca Nacional de Portugal anunciou o encerramento, já a partir de Novembro e por quase um ano, dos serviços de Leitura Geral. Os Reservados fecharão por cerca de 5 meses. Anunciada desta forma, sem aviso prévio e por tanto tempo, a decisão traduzir-se-á em prejuízos incalculáveis para os investigadores e os estudantes, para quem aquele espaço é imprescindível uma vez que dele depende o andamento dos trabalhos com prazo-limite que têm em mãos. Uma petição a correr online pede que se reconsidere o plano de transferência, no sentido de se atrasar o encerramento da Biblioteca para depois de Junho de 2011 e de se fasearem os trabalhos de modo a reduzir o tempo de encerramento integral. Pode conhecê-la e assiná-la aqui.

                        Atualidade, Etc.

                        Cândido

                        Soldado norte-coreano

                        O comentador inocente parece francamente admirado durante o jogo de futebol Coreia do Norte – Costa do Marfim: «Mas os jogadores norte-coreanos jamais discutem um decisão do árbitro! Seja ela qual for!»

                          Apontamentos, Etc.

                          Waterloo II

                          Napoleão
                          Napoleão abdicando em Fontainebleau, óleo de Paul Delaroche (1841)

                          A desastrada participação da França no campeonato mundial da África do Sul está a assumir proporções tão grotescas quanto preocupantes. Os jogadores têm dramatizado a situação servindo-se de palavras fortes como «catástrofe», «traição» ou «desespero». Atitude que só lhes fica bem, uma vez que ninguém espera de um soldado derrotado que regresse a casa trauteando o Juanita Banana. Os jornalistas franceses agem em conformidade, dando eco à vergonha que cobre les Bleus, falando em «fim do mundo» e acusando tudo e todos. É normal esta dramatização, pois quando falta o circo a nação treme, e na pátria das barricadas há sempre que temer o pior. Afinal, foi em França que nasceu Nicolas Chauvin, o soldado do exército napoleónico que nunca se conformou com a derrota de Waterloo e, apesar de considerado um tanto aparvoado pelos seus contemporâneos, se tornou o primeiro chauvinista. De acordo com o Dicionário da Academia das Ciências, este passou a ser considerado «um personagem belicoso, dotado de um nacionalismo exacerbado e irracional.»

                          O problema é que esta espécie de doença atingiu agora quem tinha a obrigação de reduzir o futebol à sua dimensão de divertimento, mas prefere transformá-lo num problema de todos os franceses. Nicolas Sarkozy exigiu assim, nesta quarta-feira, que se apurem as «responsabilidades» pelo «desastre», anunciando um projecto de renovação do futebol no país que será da iniciativa do Estado. O presidente de todos os gauleses reuniu-se entretanto com o primeiro-ministro, François Fillon, com a ministra dos Desportos, Roselyne Bachelot, e com a secretária de Estado para o Desporto, Rama Yade, para «fazer um balanço da infeliz participação da selecção francesa» no Mundial. E pediu ainda, em comunicado oficial, «garantias aos ministros de que os responsáveis assumam rapidamente as consequências pelo desastre». Um precedente perigoso de transformação do futebol numa prioridade do Estado. Num assunto muito sério que deve ser sempre tratado de forma grave. Não vá o mundo pensar que a França é uma pátria de frouxos e que já não dispõe de um lugar central no concerto das nações.

                          Adenda: o outro lado do desastre [em francês; merci, SN e CGS]

                            Apontamentos, Atualidade

                            Andam aí

                            Panopticon

                            Está em preparação legislação europeia destinada a vigiar e a combater os cidadãos suspeitos de manterem «opiniões radicais». Nesta intenção se englobam as pessoas organizadas em grupos de «extrema-esquerda ou extrema-direita, nacionalistas, religiosos o antiglobalização», em particular os «apoiados em ideologias fundadas no recurso à violência». A estratégia de prevenção do terrorismo na Europa, inicialmente concebida para fazer frente ao perigo real imposto pelas organizações islamitas mais intransigentes, é assim alargada de um modo discricionário, passando a aplicar-se a cidadãos e a sectores com posições políticas muito diferentes entre si, identificados na documentação preparatória de forma vaga e insuficiente. Ou mesmo a pessoas isoladas, uma vez que se recomenda a vigilância individual e a investigação dos sentimentos de pessoas «culpadas» de militarem em «grupos suspeitos» ou de, muito simplesmente, se darem com pessoas a eles ligadas. Isto significa que está em curso a oranização de processos repressivos destinados a espiar e a punir de uma forma sistemática todos os que defendam uma alternativa política não-reformista. Concebe-se um antídoto contra o radicalismo, justamente quando a crise geral do capitalismo e o crescimento das bolsas de pobreza alargam o número dos descontentes. Tomam-se medidas preventivas destinadas a matar à nascença, sem atender aos seus contornos, o combate por um outro mundo possível. A escola do barão de Haussmann, que depois dos acontecimentos revolucionários de 1848 procurou impedir através da reorganização urbanística da cidade a manutenção de uma Paris favorável à revolta, ao levantamento de barricadas e ao confronto das classes, conserva os seus discípulos.

                              Atualidade, Democracia, Olhares

                              Lembrar Terezín

                              Terezín

                              Em Terezín, uma localidade checa que cresceu à volta de uma fortaleza mandada construir a 60 quilómetros de Praga, em 1780, pelo imperador José II, Hitler fez erguer «uma cidade para judeus» que pretendia modelar. O seu objectivo continha uma dupla face: por um lado, a cidade servia para mostrar, às autoridades dos países neutrais ou a alguns aliados dos nazis que pudessem mostrar-se mais sensíveis às primeiras informações sobre a natureza da Solução Final, a forma como os judeus viviam bem sob a protecção de um «benevolente» Terceiro Reich; por outro, permitia a concentração de mão-de-obra particularmente qualificada, uma vez que os judeus destinados a habitar a cidade, agora baptizada Theresienstadt, eram em regra pessoas com uma formação superior. Muitos deles eram músicos, actores, artistas, escritores, jornalistas, ou membros destacados de organizações políticas entretanto ilegalizadas. Logo, pessoas perigosas mas «apresentáveis» e temporariamente úteis. ler mais deste artigo

                                Democracia, História, Memória